Paixão de Outono

PAIXÃO DE OUTONO

“As paixões são como as ventanias que incham

as velas do navio. Algumas vezes o afundam,

mas sem elas não se pode navegar” (Voltaire)

Conheci Maria Clara quando ela estudava medicina no Rio de Janeiro. Morávamos numa pensão em Santa Tereza num velho sobrado de janelas azuis, esmaecidas pelo tempo. Dividíamos um pequeno quarto, com paredes forradas de papel de estampas desbotadas, tendo por mobiliário duas camas patentes e um armário alto e pesado.

A riqueza do local era um janelão que dava para um terraço suspenso entre o céu e a montanha. De longe, avistávamos o mar em toda sua grandeza. No jardim, atrás do casarão muitas árvores e pássaros sobrevoando as roseiras. A natureza alegrava nossas vidas.

Um ano depois, ela formou-se e viajou para o Exterior. Vez por outra, nos correspondíamos, recordando a juventude. A amizade continuou sólida até hoje, mas nossas vidas seguiram rumos diferentes. Ela especializou-se em geriatria e eu fiz concurso público, casei, e dou assistência ao Conselho Federal dos Idosos.

Ontem à noite depois do jantar, lendo o programa do Congresso, vi Maria Clara no bar, rodeada de jornalistas. Lentamente retornei ao passado e lembrei da mulher pequena, morena, cabelos pretos e olhar expressivo. Era a mesma face, tranqüila e distante.

Deixei o salão e fui caminhar pela praia. Tirei as sandálias. Gostava do contato das espumas brancas beijando os meus pés: uma espécie de gozo sensorial. A tépida noite de verão era o melhor dos tranquilizantes. Teria muito trabalho nos próximos dias. Estava em Camburiu, participando de um Congresso de Geriatria.

Quando retornava para o Hotel, vi Maria Clara de braços abertos vindo em minha direção. Envolvemo-nos naquele gesto de carinho onde corpo e alma se integram. Rodopiamos como criança. A alegria do encontro nos contagiava. O acaso nos reunira. Ela não sabia do meu trabalho com idosos. Nunca tive a oportunidade de dizer-lhe.

Saímos de mãos dadas e fomos para o bar do hotel. As palavras nos atropelavam, cada uma queria saber mais da outra. Fizemos um brinde à amizade que o tempo conservara como o vinho. Ela continuava a mesma mulher de rosto tranqüilo e belo. Fisicamente mudara, o corpo estava arredondado, afinal passamos do meio século. Depois da terceira taça de champanhe, nossa bebida preferida, esgotados os assuntos profissionais e familiares, ingressamos para o amoroso.

Perguntou-me se ainda gostava de escrever histórias de paixão e erotismo. Respondi que sim. Eram as minhas preferidas. Fitando o líquido borbulhante quis saber se eu tinha conhecido a paixão no ocaso da vida. Respondi com outra pergunta: por que ocaso? O coração é sempre jovem e o corpo quando motivado responde plenamente aos estímulos, principalmente nas mulheres que são as receptivas no ato sexual. Estamos sempre prontas para o amor.

Maria Clara, saboreando o vinho me contou a sua mais nova aventura. No último Natal, resolvera viajar para Paris. Iria rever alguns amigos e passar as festas de final do ano. Tomou o avião em São Paulo e logo começou a ler. A cadeira ao lado estava vazia.

Adormeceu e sonhou que estava caindo. Apoiou-se com força na cadeira para se proteger e assustou-se ao sentir uma mão forte segurando a sua. Abriu os olhos e na penumbra viu um sorriso de dentes perfeitos e um homem, jovem, pele bronzeada e cabelos escuros. Ela riu e pediu desculpas. Pensava que estava só.

Ele disse que escolhera aquele lugar, por ser mais confortável e poder esticar as pernas. Ficara em silencio em respeito aos seus sonhos. Riram e se apresentaram. Daí, até chegar ao destino final foi um desnudar de emoções. Algo pairava entre eles. Seu corpo, há muito adormecido, vibrava igual a um violino tocado por mãos mágicas.

Foram tantas as loucuras que não sentiram a noite passar. Ela estava admirada. Nunca lhe acontecera algo semelhante. Com o amanhecer vieram as primeiras apreensões:corpo gasto, idade, rosto cansado,tudo junto fazia uma mistura de medo e pudor. Por que o sexo despertara de forma tão violenta? Lembrou da louca paixão quando se entregara a primeira vez. Fazia tanto tempo! Sentiu as faces rubras de vergonha.

Seu vizinho, dormia. Não era tão jovem como pensara. O rosto trazia as marcas do tempo e os cabelos estavam mesclados de tênues fios prateados. Quando abriu os olhos, os dela estavam fixos nele e mais uma vez enrubesceu.

O sinal de desembarque foi avisado e veio a maior surpresa para Maria Clara. O seu companheiro de viagem iria passar uma semana tratando de negócios e perguntou se ela poderia ciceroneá-lo. Pediu o telefone do hotel.

Ela pensou: assim talvez se acostumasse com a idéia de ter uma senhora gasta pelo tempo para acompanhá-lo. Despediram-se com um forte aperto de mão, ele dizendo que esperaria ansioso reencontrá-la.

Perguntei para Maria Clara, e você procurou-o? E ela marotamente respondeu: nunca tive uma semana de tanta paixão e erotismo. Um homem meigo e carente, uma criança deslumbrada, que encontrou nela a mulher experiente, uma fonte de ternura e prazer.

Paris, cidade afrodisíaca, onde já vivenciara grandes paixões, ofereceu-lhe dessa vez uma outra visão do amor erótico e da atração que une homem e mulher, ambos maduros e cansados da vida. Não sabia dizer se voltariam a se encontrar., apenas tinha certeza de que a vida vale pelos bons momentos vividos.

Maria Clara e eu nos abraçamos, demos boa-noite e subimos para o apartamento. Teríamos quatro dias de intenso trabalho quando seria discutida a qualidade de vida do idoso no terceiro milênio.