Dois
Luís chegou em casa e cumprimentou Amanda com um beijo. O dia no trabalho fora cansativo, como são quase sempre os dias no trabalho para todo mundo. A diferença é que tinha uma casa que era seu oásis, onde recarregava as energias, meditava sobre os dias passados e planejava os que viriam. Quase sempre, fazia chegar à mulher seus pensamentos, ouvia atentamente seus juízos e refletiam juntos sobre alguns problemas em comum. Foi o que aconteceu naquele dia, na cozinha, enquanto ela preparava o lanche.
- Não é fácil se encaminhar à superação e formar uma família diferente do comum quando os parentes não fazem a menor ideia do que significam nossos propósitos. Ainda não consegui esquecer o problema do último domingo...
Seu temperamento agitado era logo chamado ao equilíbrio pelas doces palavras de Amanda: Continuar lendo.
- É o jeito do seu irmão, meu amor. Ele não faz por mal. Pense que enquanto você tirava boas notas e passava a juventude nos livros, ele estava sempre se divertindo. Você mesmo disse que só estudava por necessidade, e em cima da hora. O que pode exigir dele?
Convém lhes dizer que no domingo anterior, o casal em questão comemorou em casa o sétimo aniversário do filho - Tony. Estavam todos os parentes por lá, inclusive o irmão do Luís, Eduardo, que é de quem estamos falando agora. Seu excesso foi desautorizar a ordem do pai - arrumar os brinquedos do quarto - na frente do filho, alegando que o garoto deveria dormir e “não se preocupar com essas coisas, porque afinal vai brincar de novo amanhã; é melhor já deixar tudo fora do armário”. Sabendo disso, podem compreender a resposta do Luís:
- Só exijo o mínimo: respeito. Eu nunca desautorizei uma ordem dele aos filhos. Ainda mais incentivando as crianças à falta de organização. Ele precisa entender que na minha casa, na nossa casa!, não existe desleixo.
- Talvez ele nunca entenda. Mas o Tony pode entender. O que o seu irmão fez está errado mesmo, eu concordo, mas deu uma oportunidade para você reforçar alguns bons conceitos. Por que não explica a ele mais um pouco sobre a importância de manter as coisas em ordem? É sempre bom recordar essas coisas.
Amanda tinha essa característica: suavizava os ímpetos do marido colocando a ele oportunidades. Sabia que ele prezava pela razão, e por isso empenhava-se em expor seus pontos racionalmente, sem imposições e com aquele conteúdo sensível comum a ambos; neste caso, o amor pelo filho.
Naquele dia, o Luís ensinou então mais algumas coisas ao garoto a respeito do quanto os ambientes limpos e organizados faziam bem às pessoas que o habitavam, e que um quarto bem arrumado não era coisa de uns poucos dias de trabalho, mas algo a ser conservado pela constante atenção dedicada a ele. Sempre cuidava para usar palavras de fácil entendimento nessas conversas, mas deixando passar uma ou outra que fosse nova e mais difícil. Desse modo, estimulava a inteligência do filho, que já sabia ler e usar o dicionário.
Colocou então o filho para dormir e foi para o escritório, um quarto da casa onde figuravam duas mesas e as estantes com livros. Amanda estava desligando o computador, após escrever algumas páginas de sua tese.
Não pense o leitor que esse casal jamais briga, porque isso não é ingrediente do casamento perfeito. Para que não acusem o escritor de ingênuo, e para deixar claro que este conto não é apenas sobre a educação de um filho, faço-os discordar agora. O motivo será a Cecília, uma ex-amiga (se podemos chamar assim) de Amanda.
Desde que se conheceram, no colégio, Cecília sempre foi possessiva e mimada. Não era o arquétipo da ruindade, porque ainda lhe sobravam umas qualidades até que valiosas: dedicava-se muito ao trabalho, sem indolência. Porém, quando não se tratava de sua vida profissional, essa energia toda era direcionada a fazer com que as pessoas gostassem dela. Jamais aceitava uma negativa, mesmo que muito bem justificada. Chegava a usar de manipulação e mentiras para conseguir suas vontades.
Quando Amanda se cansou de sua difícil personalidade, ainda nos tempos em que estudavam juntas, percebendo que havia passado o ponto da tolerância, decidiu romper os laços da amizade. Cecília ressentiu-se de tal modo que passou a fazer de tudo para mostrar sua aparente indiferença, enquanto se esforçava para formar uma aparência de garota feliz e realizada. Coisas da pré-juventude. Amanda pouco se importou, mesmo com as duas ou três pequenas historietas inventadas para difamá-la. Não era pessoa rancorosa; porém, junto com essa bondade veio um defeito: a ingenuidade. Depois de um tempo de afastamento, esquecia-se das mágoas, como é certo, mas também das imperfeições alheias, e passava a crer que todos eram tão bons quanto ela.
Pois bem, encontraram-se na cafeteria e atualizaram-se nas notícias. De um lado casei, tive um filho e estou para concluir o Mestrado; do outro não casei, mas virei diretora de empresa e muito bem sucedida, rica. Trocaram promessas de um novo encontro.
Luís sabia da ingenuidade característica de Amanda e falou, já em tom de voz um pouco alterado pela surpresa da notícia:
- Não me diga que conversaram tudo isso!
- E por que não conversaríamos? Eu já superei o que ela me fez. Deveria virar-lhe a cara?
- Se ela fosse um pouco pior, sim. Mas neste caso, acho que bastava cumprimentá-la. De que assuntos trataram! E ainda pretendem se ver novamente?
- Ela puxou papo. Não é para tanto, vá! Que mal há nisso?
O marido estava a ponto de soltar-lhe uma enxurrada de argumentos sobre a inveja e a perfídia dos infelizes, suas tentativas de derrubar os felizes com propagandas de seu decadente estilo de vida, mas conteve a reação. Sabia que a esposa era muitas vezes a responsável por trazê-lo de volta à sensatez, mas sabia também que não poderia contar com isso quando o problema era exatamente com ela. Deu uns passos pelo quarto e a fez conhecer algumas de suas razões.
A princípio, ela também reagiu negativamente, mas como o marido, sabia que se ambos tentassem meramente impor suas opiniões contrárias - seja pelos gritos, pela provocação do sarcasmo ou pela humilhação do que pensa o outro - estariam repetindo os erros de todos os outros casais e pervertendo o propósito de conservar a felicidade no casamento e na família.
Em respeito à verdade, devo dizer que Amanda era dada ao autoconhecimento, e a falha apontada pelo marido era já uma velha inimiga, contra a qual ela lutava constantemente, colecionando já algumas vitórias. O Luís sabia disso. Viu que não precisava insistir, que a mulher logo perceberia o erro. Logo encerraram a conversa e foram se deitar, preparando-se mentalmente para o dia seguinte. Assim, esses dois enamorados encararam dois novos acontecimentos que mais lhes aproximavam; que no fim das contas não é só o quanto se discorda, mas também como se-o faz que importa.