O casamento
Naquela tarde Malu saiu da Editora decidida em procurar a cartomante que colocou o anúncio no jornal.
"Descubro todo o seu Futuro", era este o anúncio, e Malú precisava sim de uma resposta para sua vida, uma direção,por que já se passavam alguns meses em que visitou um mago em outra cidade, deu todo o seu salário e não conseguiu ver nenhum resultado.
Desta vez, não seria enganada,iria na cartomante e ela sim lhe revelaria tudo o que estava oculto.
Parou o táxi na rua principal,tinha hora marcada e o pagamento foi feito por depósito bancário no dia anterior.
Malu chega até o endereço combinado.Uma casa baixa com muros muito altos e se podia ouvir os miados de alguns gatos, como se os mesmos estivessem agonizando.Sentiu medo e ao mesmo tempo uma curiosidade enorme de adentrar naquela casa e descobrir tudo o que estava por vir.
A porta estava entreaberta e sem pensar duas vezes foi logo entrando e se envolvendo naquele mundo tão mágico e secreto.Do portão já conseguia sentir um cheiro fortissimo de incenso de almiscar.Gostava de incenso e tinha uma coleção enorme, mas aquele aroma era indescritivel,parecia ter vindo dos astros e movia Malu para um outro plano que ela desconhecia.
Foi passando pelos corredores e sem reparar nos móveis antigos ao seu redor, nas luzes avermelhadas e brilhantes, se deparou com uma senhora de meia idade sentada em uma poltrona de couro. Morgana, este era o seu nome.
- Pelo menos ela tem estilo-pensou Malu ao reparar na sua excentrencidade ao usar jóias de ouro puro sem nenhum medo de ser assaltada.
Malu também reparou em sua maquiagem carregada e no seu longo vestido branco que cobriam até mesmo seus pés e antes que lhe dissesse uma palavra, foi convidada a se sentar e entregar-lhe as finas palmas da mão para uma consulta.
Com os olhares fixos na palma de sua mão a cartomante descrevia alí todo o destino da jovem que ouvia tudo sem esboçar nenhuma reação.
Malú saiu daquela consulta arrasada e com um sentimento enorme de arrependimento de ter posto toda a sua confiança e dinheiro nas mãos daquela mulher,daquela farsante.
A menina não podia se conter de tanta raiva.Ouvir que vai encontrar um amor, e que os dois teriam uma história linda é roteiro pra novela das oito.Malú queria era saber de sua vida profissional,queria a vaga de colunista da revista "Kiss", queria que saísse logo o dinheiro da herança do avô pra poder comprar seu carro e a tão sonhada casa e consequentemente ganhar assim sua liberdade.Agora amor...Com isso ela nem sonhava.
Havia acabado a três meses o seu namoro com Gustavo e estava em uma nova fase em sua vida.A fase de curtir, de passear,de farrear e conhecer muita gente bonita,não de se amarrar a ninguem e pior ainda,de sofrer por este alguem.Até porque sofrimento era uma palavra que não cabia em sua vida, sempre feliz e realizada, com uma familia maravilhosa e ótimos amigos não tinha tempo pra ser infeliz.
Lembrou da infancia.Era medrosa,tinha medo de tudo que era subliminar.Não assistia a filmes de terror e nem seriados de suspense.Não sabia explicar como na adolescencia começou a se interessar por quiromancia e astrologia, se quando criança não gostava de ler nem as histórias dos personagens do Folclore.
O que Malu sabia era que não podia viver sem seu mapa astral e só saia de casa depois que lia seu horoscopo.Parecia um vicio, uma mania impregnada que não saia de si nunca, ao contrário era mais fortalecida, por mais que ela se decepcionasse com as previsões.
Chegou em casa cansada.A mãe estava ainda na escola dando seus cursos de artesanato e o pai deveria estar perdido em alguma praça do bairro jogando conversa fora.
Jogou a bolsa em cima da cama e foi tomar seu banho. Um banho quente estava precisando, e com direito a sais por que estava carregada. O ambiente na Editora a deixava descontrolada e ansiosa,precisava relaxar.
Depois do banho que durou trinta minutos,Malú foi até a cozinha beliscar alguma coisa, sentia fome, e reparou no bilhete na porta da geladeira de que o livro que havia encomendado na Livraria já tinha chegado.
-Pudera! pensou-Faz duas semanas que encomendei o livro,já paguei a fatura do Cartão de Crédito e ele só foi chegar hoje.
Decidiu ir buscá-lo no dia seguinte com medo de que a vendedora se esquecesse e acabasse vendendo para um outro leitor.
A noite foi chegando, os pais de Malu chegaram e se reuniram para mais um jantar em familia.Este era um poucos momentos que a familia tinha de se se reunir e conversar sobre o dia que passou, e por isso Malu fazia questão de sempre estar em casa para realizar a refeição junto com os pais.
- Filha e como foi lá na cartomante? perguntava dona Rose entusiasmada, sabendo do interesse que a filha sentia nessas coisas
-Ah mãe,nem quero falar sobre isso.Mais uma farsante que aparece. A mulher põe lá um anuncio no jornal,cobra um valor exorbitante,mora lá "aonde Judas perdeu as botas" e vem me dizer que eu vou arrumar um namorado e que no vamos nos casar.
-Ela pode estar certa minha filha.Retrucou o pai beliscando a bandeja com batatas gratinadas.-A previsão é muito óbvia eu sei, mas não descarte essa possibilidade.
-Já descartei paizinho,aquela mulher me enganou, mas não levará meu dinheiro nunca mais.E eu na melhor das intenções,cheia de expectativas fui lá pra ouvir ela falar sobre meu futuro,meu emprego,a herança do avô, por que se ela mexe com essas coisas, deve ter lá o seu contato com os mortos e deve estar sabendo de alguma coisa, como por exemplo se o vovô está mexendo os pauzinhos lá no paraiso para a herança sair logo e ele descansar em paz
O jantar é interrompido pelas gargalhadas dos pais que acham graça na justificativa da filha.
-Malú é mesmo muito engraçada,acha que o sobrenatural pode interferir nas coisas aqui da Terra.Quanta ingenuidade!pensou o pai enquanto ajudava dona Rose a retirar os pratos da mesa .
No dia seguinte Malu acordou indisposta, com uma terrivel dor de cabeça e no estômago.Não tinha condições de trabalhar.Era ansiedade demais e muito estresse em pouco tempo.
O término de seu namoro com Gustavo, a vaga de estágio na Editora e a pressão pra conseguir a vaga de colunista na revista acarretaram num surto de estresse,não tinha tempo nem para as amigas e havia deixado o seu cachorro sem tomar banho por tres semanas, puro esquecimento.
-Não quero casar não Dona Sara.Oferece essa simpatia de Santo Antonio pra faxineira lá de casa,a Dulce.Ela sim dorme e acorda esperando o dia em que o Aroldo a pedirá em casamento.-Responde Malú a senhora enquanto caminha no calçadão da praia.
-Mas Malú minha filha,estou te aconselhando porque quero seu bem,ninguém nasceu pra viver sozinha.Você precisa namorar,noivar,casar e ter filhos, como todas as moças da sua idade.Hoje em dia está na moda"ficar",mas olha,quando o falecido ainda era vivo,eu,ele e o Juninho éramos uma família muito feliz.
-Quem é o Juninho?-pergunta Malú fingindo interesse na conversa.
-Juninho?E´o meu filho.
-Ah sei.Mesmo assim dona Sara.Eu entendo que a Senhora foi muito feliz ao lado do "falecido",qual é o nome dele?
-Astoupho.
-Isso,ao lado do seu Astolpho.mas dona Sara,eu não tenho o menor talento pra relacionamentos e não tenho paciência pra lavar cueca de homem,pra ter que assistir aqueles programas horrorosos de comentários futebolísticos,pra ter que encarar a sogra,pra sair catando toalhas molhadas em cima da cama e mais um monte de coisas que se eu descrever aqui,vou passar a noite inteira com a senhora só falando.
Malú achou engraçado em como as pessoas associam a felicidade a casamento, a amor ao outro.
Não basta ter amor próprio?pensou. Sabia bem que a dona Sara no auge dos seus sessenta e seis anos era filha de seu tempo e Malú até a compreendia.Em sua época não existia muitas opções para se divertir e o casamento precoce não era exceção,era regra.A moça aos quinze anos já tinha que estar preparada para subir ao altar com todo o seu enxoval pronto e bordado com as iniciais dos nomes do casal.
-Que coisa mais antiquada!pensou.Com vinte e quatro anos de idade,formada em Jornalismo e dona do próprio nariz,não queria pensar em outra coisa a não ser viajar,se divertir e cuidar de si mesma.
Não sentia falta de uma companhia e nem andar de mãos dadas.Gostava de morar sozinha,de ter sua liberdade,de não ter que dar satisfação a ninguém.
-Dn malú, será que posso entrar na internet só um pouquinho,já terminei todo o serviço?
-Claro Dulce,fica a vontade.Mas me conta...As aulas de informática lá na Ong ta dando bons resultados né?Estou vendo que já aprendeu a digitar,já sabe até a entrar na Internet.Mas Dulce,o que é isso?Essa aí da foto não é você?-perguntou Malú intrigada.
-Sou eu sim Dn Malú.A simpatia que a dona Sara me indicou pra casar não deu certo,o Aroldo terminou comigo ontem a tarde.Mas olha dona Malú,eu não sou de ficar chorando por homem nenhum e logo dei um jeito na minha vida,me cadastrei num site de relacionamentos.Aqui eu vou encontrar meu par ideal.Homem com a idade entre trinta e quarenta anos,que more nas proximidades da comunidade,que trabalhe com carteira assinada,que tenha plano de saúde e vale alimentação.
-Para que vale alimentação Dulce?perguntou Malu curiosa.
-Para as compras do mês.A cesta básica sua mãe já me dá,com o vale a gente compra o leite e os biscoitos das crianças.-Fala Dulce empolgada.
-Pára tudo!!!!Meu Deus,é um absurdo o que estou ouvindo...Não pode ser verdade,é um sonho,melhor, estou delirando.Espere,vou buscar o termômetro.-Ironizou Malú surpresa com as coisas que ouvia.
Como se não bastasse as novenas e as simpatias para arrumar um marido, a faxineira já estava fazendo planos com o vale alimentação do coitado.
-O que aconteceu com as mulheres deste século?Estão se tornando cada vez mais burras?pensava Malu enquanto escolhia a roupa para a balada.Era sexta feira e não ia se depilar, ia sair com as amigas e encher a cara.
Casamento não podia ser a realização de um sonho e casamento não é a representação de tudo.
E Malu entrou no elevador poderosíssima com seu tubinho preto que disfarçava muito bem seus quilinhos a mais,a maquiagem carregadíssima e o salto agulha de quinze centímetros.Dividiu ainda o espaço com o entregador de pizza que via diariamente entregando pizza de margueritta no apartamento de Dona Sara.
Para quebrar o clima,malu resolveu fazer um comentário:
- E', dona Sara se amarra numa pizza não é?
- Sim,ela gosta muito.E essa é a preferida dela,a de margueritta.
-Pronto,chegou.Prazer,Malú.
-Prazer,me chamo Astolpho.
Astoupho.riu Malú consigo mesma.Não duvidava nada que a dona Sara pedia pizza só porque o nome do entregador era o mesmo que o nome de seu falecido marido.
E Malú dançou a noite inteira,bebeu cerveja,vinho...passou dos limites.
Não se sabe como e de que forma conseguiu chegar na portaria de seu prédio.Estava lá o entregador de pizza,encostado no muro conversando com o porteiro.
No estado em que se encontrava,não podia rejeitar qualquer ajuda e pelo menos o entregador de pizza já não era mais um estranho,sabia seu nome,e um nome muito estranho por sinal,Astoupho.
-Então Astoupho,desculpe a inconveniência mas da onde sua mãe tirou seu nome?-pergunta Malú excedendo na brincadeira.
-E´o nome do meu pai,já falecido.-responde o rapaz percebendo que a moça tinha bebido muito.
Malú acordou no dia seguinte com a cabeça latejando.Sua sorte é que era sábado.Olhou no calendário:Sábado, dia 12,mês de junho.Dia dos Namorados.
Tantos acontecimentos nos ultimos tempos que se esqueceu até mesmo das datas comemorativas.
-Dia idiota-pensou-Pelo menos vou economizar uma grana.Dia dos namorados,sinônimo de consumismo.
-Dona malú,toma,é seu...
-Oh Dulce,obrigado.Quanta gentileza,não precisava ter se preocupado.
-Não dona Malú,não fui eu que comprei não.Com o salário que seu pai me paga não dá pra comprar rosa não,foi aquele menino lá de baixo,qual o nome dele mesmo Malú?-pergunta Dulce tentando lembrar o nome do rapaz.
-E' o rapaz com o nome engraçado? fala a mãe interessada no assunto.
-QUEM???? O entregador de pizza?O Astoupho?
-Isso mesmo.Astoupho.Olha Malú minha filha,o rapaz é de boa índole, mas aquele nome deixa o coitado tão engraçado.-Opina o pai enquanto folheia seu jornal.
-Era só o que faltava...falou Malú furiosa.
-Tenha dó minha filha, não vá maltratar o pobrezinho,tenha consideração pela mãe dele.-implorava dona Rose mediante a insatisfação da filha.
-Mãe dele?Vocês estão ficando malucos?O que eu tenho a ver com a mãe desse sujeito?-indaga Malú secamente.
E oito meses depois Malu entrou na igreja,de vestido branco,com véu e grinalda,de braços dados com o pai, ao som da música do filme Titanic.
Observou as madrinhas.Eram doze,pôde contar.Em sua mão esquerda uma aliança dourada reluzia.
Na hora em que jogou o buquê foi um desespero entre as amigas e primas que queriam ter a mesma sorte que a sua.Podia ver as mulheres tropeçando uma nas outras para conseguir pegar o buquê.Quem conseguisse podia ter a esperança de conquistar um amor e realizar o sonho do "e foram felizes para sempre".
A Lua de Mel? Foi em Búzios,claro.
Quer lugar mais paradisíaco para se viver um amor?
E foi assim que Malú percebeu que a ioga,a malhação,a carreira eram importantes sim,mas que as meias no chão,a tampa do vaso sanitário levantado e as alterações de humor também faziam parte da evolução do ser humano.
E',teve que dar o braço a torcer.Dona Sara estava certa e pior do que assumir que Dona Sara tinha razão,era descobrir que Dona Sara era na verdade a sogra, a sogra que Malú tinha que encarar com a síndrome do ninho vazio.
-Ah,então Astolpho era...
Isso mesmo,Astoupho na verdade era o Juninho,o único filho que Dona Sara teve,pro desespero de Malú que foi obrigada a levar a sogra pra morar com eles, antes que ela os acusasse pelo crime de abandono de idosos.E Astoupho ou Juninho não era entregador de pizza.Na verdade ele trabalhava como professor universitário e era um amante incondicional de pizzas.
Como um bom paulista,Astoupho teve que aprender a fazer suas próprias massas e recheios em casa.A grana estava curta,tudo por conta da reforma do apartamento.Dois bebês estavam a caminho,faltavam menos de duas semanas.
E chegou Malú muito nervosa em casa,queria estrangular o marido.
-Astoupho Júnior-Gritava histérica dentro de casa enquanto jogava as roupas do esposo pela janela da sala, sem nem se preocupar com os vizinhos que assistiam à cena morrendo de rir-Quem te autorizou a bloquear meu cartão de crédito?
E Astoupho assistia a cena tranquilamente,sabendo que dias depois a esposa a agradeceria por não tê-la deixado mergulhar em dívidas.
Malú pegou então uns aperitivos na geladeira:queijo,azeitona e salame.
Foi ao teatro assistir a peça Dom Casmurrro de Machado de Assis.Levou Dulce para fazer companhia.Foi Dulce que tempos atrás pegou o buquê no casamento de Malú e Astoupho.
E quer saber?O site de relacionamentos deu certo.Conheceu Brian,um inglês viuvo de meia idade que havia se mudado recentemente para o Brasil.Iam se casar em breve,mas Dulce queria impressionar,queria ler bons livros,assistir a peças teatrais,ir a concertos.Não queria ser dona de casa não, queria ser independente,dona do seu próprio nariz.
Malú chega em casa.Toma um banho de imersão e deita ao lado do marido para assistir ao filme de sua série preferida.
Não há mais tempo,Astoupho tira o carro da garagem,enquanto Malú e dona Sara vão ansiosas para o Estacionamento carregando duas lindas bolsas de bebês.