Tem que ser Moon River?

Gostava de sentar-se sob a luz das estrelas, o terraço do prédio lhe proporcionava um prazer indescritível; nunca aprendera o nome de uma constelação, nem mesmo de um só astro, mas confidenciava com eles.

O apartamento imediatamente inferior era seu, sendo assim, o som que ouvia do alto do mundo, não incomodava ninguém...ela nunca reclamou de si mesma.

Os pombos, no local, a incomodavam um pouco, mas jurava para eles que, ganhando dinheiro suficiente, montaria uma empresa de comunicação; também não consultou os moradores dos prédios vizinhos para saber se teria uma clientela significativa. Convencida de que, tal empresa nunca se materializaria...um devaneio.

Sempre achara que Moon River era a indicação musical para aquele ambiente...certo que um pouco fora de sua faixa etária, mas adequada ao pano, não ao fundo, mas ao alto. Sempre ouvia suas músicas prediletas incontáveis vezes...não se cansava.

Como gostava de salame fatiado, queijo em cubos, uma garrafa de vinho, tudo ao som de Moon River, tudo afastado de todos.Ou de quase todos, ela que se sentia uma Edith Piaf cantando (Piaf cantava Moon River?), cantando junto com seu aparelho de som, de repente se viu interrompida por uma voz senil, mas autoritária: “Você não sobreviveria se dependesse do canto”. Algumas vezes, por si só, já se convencera que não era um talento cantando, mas aquela interrupção do seu canto que montara no mundo, foi um golpe profundo, doeu.

Ela sentava-se, sempre, à borda da mureta que separava o alto do prédio do vácuo, os 27 metros que distavam do chão, e aquele comentário maldoso quase a derruba no vazio. Voltou num ímpeto, com vontade de esganar, mas sua interlocutora era tão, aparentemente, frágil, que ninguém com ela ousaria gritar.

-Posso tomar um cálice de seu vinho? Não era ela, inesperada visita, muito petulante?

-E como eu conseguiria um cálice aqui, para lhe servir?

-Eu trouxe um, respondeu ela de pronto, eu a vi subindo com a cesta, e tinha certeza de que uma garrafa de vinho a acompanhava.

O cálice atrevido foi servido, e a intrusa sorveu um gole, degustando o prazer de interferir e quebrar privacidade, mas juntou-se ao cenário, não destoava.

-Menina, a que momento ele chegará?

-A quem se refere, eu não espero ninguém? Apenas aprendi a ver o mundo através das estrelas, comendo salame e queijo, regado a vinho, ao som de Moon River.

-Engana-se, Deus lhe deu a ceia, a penumbra, as estrelas, você só escolheu a música, alguém aqui a encontrará. Que pintor a retrataria, se não houver um sorriso em seus lábios?

Até que a fragilidade da anciã lhe trouxe um carinho espontâneo, mas tudo que não precisava era de uma agência amorosa, estava apaixonada pelas estrelas, pelo silênciao, pelo torpor do vinho e pelo melodioso som, que se fizera ambiente.

-Minha senhora, eu não espero por ninguém, não quero compartilhar meu mundo, sou ilha, e Deus assim me fez.

-Quando alguém canta para as estrelas, não é ilha perdida sozinha, é um arquipélago a se formar.

-Não deveria eu procurar em salões, ou em cruzeiros outras ilhas para comigo compor?

-Queijo, vinho, música, sem que isto passe pelo seu pensamento, a coloca bem dentro do firmamento...espere, que seu amor chegará.

Que não fosse ela um profeta, nem visionária ou poeta, um outro alguém se aproximava, com nova garrafa, com pão italiano e um violão.

Já eram vizinhos há 3 anos, e ele nunca a cumprimentara, do que, honestamente, ela nunca reclamou. Ele morava no apartamento sob o seu, tocava, ininterruptamente, Chico Buarque e Vinícius de Moraes, sem trégua e sem poupar as preferências musicais da moradora do andar de cima..

Ele foi delicado, ofereceu de seu pão e de seu vinho às mulheres, em respeitosa eucaristia, e também aceitou do queijo que lhe fora ofertado, a ceia ganhava um novo assento.

Todos tinham algo para contar, laços começaram a se firmar, como se em desígnios divinos fossem tramados.

Amores foram recontados, segredos foram revelados, um ou outro astro foi identificado, o vinho foi todo consumido, o mundo se colorindo com nuances de vinícolas. Mistério marcou a data, aquela que fez o vaticínio não adiantou que desapareceria, ela que anunciou a chegada, desapareceu. Mãos se tocaram, olhares se cruzaram; sentaram-se para ouvir Moon River, desta vez ela calada, mas estiveram de pé para cantar, juntos, Valsinha do Chico Buarque

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 27/11/2009
Reeditado em 28/11/2009
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