AMOR NASCE EM QUALQUER HORA... QUALQUER LUGAR..
Ao sair da biblioteca, apressado para um compromisso, Hermes deu um encontrão numa jovem que passava. Os livros que ela carregava nos braços foram ao chão. Constrangido e se desculpando, ele abaixou - se para apanhá - los, no mesmo instante em que ela também o fazia. Quando o fez, ele a olhou e viu quanto era linda, olhos grandes e negros, cílios longos, sobrancelhas bem feitas e lábios bem delineados, num rosto oval de pele perfeita. Quando se levantaram, o decote da blusa que ela usava desceu levemente, mas o bastante para ele perceber o colo alvo, onde uma pequena tatuagem perfeita se destacava, no lado esquerdo: Um sabiá com os olhinhos bem vivos e o peito amarelo. Ele ficou pálido e ela percebeu. Perguntou a ele se estava tudo bem, respondeu que sim, apenas ainda não havia se alimentado e passava horas, do almoço. Ela disse chamar - se Doroty, apresentando - se, e ele fez o mesmo. Doroty lhe disse que também estava sem almoçar; aproveitando a chance, ele perguntou se poderia esperar por ela, então tomariam um café, juntos, numa lanchonete ali perto, pois o serviço era muito bom e os lanches saborosos e bem feitos, além de que, era discreta e aconchegante. Ela hesitou por uns segundos, mas acabou aceitando, caso ele não se importasse que demorasse uns minutos, pois eram vários livros a ser entregues. Ele pensou no compromisso que tinha, mas lembrando - se da pequena tatuagem, sorriu, dizendo que "Tudo bem, eu a espero". Assim que ela entrou, ligou para a empresa, adiando - o para mais tarde. Era importante, mas felizmente, podia fazer isso, já que ele mesmo havia marcado. Ao chegarem à lanchonete, ela se encaminhou direto para uma mesa de canto, encostada a uma janela, dizendo - lhe que aquela era a "sua" mesa. Ambos sorriram e ele se sentiu como iluminado, pelo sorriso dela, ao comentar que pelo visto, já conhecia muito bem, o local. "Conheço, sim, trabalho aqui perto e é onde faço minhas refeições, apenas acho estranho nunca tê - lo visto, por aqui." Ele comentou que conhecia o local, que algumas vezes havia ido ate lá, mas que não era cliente assíduo. O garçom os atendeu, sorrindo para ela, cumprimentando - a cortesmente. Fizeram seus pedidos e continuaram conversando.
- Você tem um leve sotaque francês... - Observou Hermes.
- Sim. Sou francesa, mas vim para a Itália quando era ainda muito jovem.
- Também sou francês, mas continuo na França; só estou aqui a trabalho. Quando a guerra terminou e fomos resgatados de um dos tantos campos de concentração, fui colocado num abrigo com muitas outras crianças, cujos pais pudessem estar ainda vivos e poderiam ser reencontradas, por eles. Meus pais decidiram continuar na França, onde por muita sorte, apenas parte do velho casarão, herdado dos meus avós, por minha mãe, havia sido destruído, e em qualquer outro lugar, seria quase impossível encontrar outra casa ao menos parecida, e para não contrariá - la, meu pai cedeu aos seus pedidos e, com os anos, conseguimos restaurá - la.
-Você também viveu num campo de concentração? - Perguntou ela, com expressão penalizada.
- Esse "você também" quer dizer que ... - Inquiriu, deixando a frase a meio.
-Sim... São horrores dos quais não gosto de me lembrar... Levei muito tempo, para me recuperar dos traumas que vivi e presenciei, acontecimentos dantescos, inenarráveis... - Respondeu ela, olhos vermelhos e lábios trêmulos.
- Está bem, não falemos mais sobre isso. Realmente não nos faria bem e quero vê - la sorrindo. - Falou ele, apaziguador e sorrindo para ela. - Tem um belo sorriso, mas acho que já sabe disso.
Interrompidos pelo garçom que chegara com os pedidos, pararam de falar e começaram a saborear os deliciosos lanches, em silêncio. Após terminarem, trocaram algumas poucas palavras, elogiando- o e, de repente, Dorothy começou despedir - se.
- Quero lhe agradecer pelo convite, foi gentil e sua companhia muito agradável. Agora preciso ir, pois ...
- Calma, espere! - Ele teve a impressão de que ela estava fugindo, mas não imaginava a razão. - Gostaria de vê - la mais vezes, poderíamos...
-Não... Sinto muito, mas não... Eu... Eu não sou livre... - Interrompeu - o ela, rapidamente.
-Oh! Perdoe - me! Não sabia que era casada, por favor, desculpe - me! Não me tome por um desses "Don Juan" que se acercam de todas as mulheres, sem importar - se se são livres ou não; apenas, como não vi uma aliança em seu dedo e achei - a muito simpática e bonita, quis, após o transtorno que lhe causei, compensá - la, convidando - a para jantar, apenas para jantar e... Por que não confessar, conhecê - la melhor.
- Lamento senhor, e peço - lhe desculpas, também; mas não sou casada, porém assumi um compromisso comigo mesma, com relação a alguém e irei cumprí - lo até à morte! Adeus!
- Adeus... - Respondeu ele confuso, diante daquela revelação estranha.
Os dias foram se passando, transformaram - se em meses e a garota não lhe saía da cabeça. Evitara voltar à lanchonete e também à biblioteca, para não lhe causar constrangimento, mas chegou a um ponto em que não agüentou, mais, indo então até à lanchonete, no horário que ela lhe dissera que costumava ir lanchar. Dirigiu - se ao garçom que a cumprimentara com um sorriso e perguntou por ela.
- A Srta. Dorothy? Pois é... O senhor acredita que aquela foi a última vez que esteve aqui? Estranhamos, claro, mas nada pudemos fazer, pois sempre discreta, ao menos sabemos onde ela mora ou trabalha. - Respondeu o garçom, parecendo desapontado.
-Está bem, senhor, Obrigado, mas poderia fazer - me um favor? - Falou tirando da carteira um cartão e umas notas que lhe ofereceu - Se acaso ela aparecer, avise - me imediatamente, pois gostaria muito de reencontrá - la!
- O que deseja com ela, senhor, se me perdoa a indiscrição? - Perguntou o garçom, desconfiado.
- Quer conhecer um segredo? Não paro de pensar nela desde que a conheci! Quero que ela saiba disso! - Disse com calma.
- Guarde seu dinheiro, senhor! Seu cartão é mais que suficiente! - Falou sorrindo o garçom, após ler o que havia escrito nele. - Tenha certeza de que eu o avisarei, caso ela apareça, novamente.
Dorothy caminhava lentamente pela galeria, olhando com muita atenção para cada um dos quadros expostos na vernissage de uma amiga muito querida, artista plástica de um talento impressionante e que a deixava embevecida também por sua sensibilidade, exposta em cada uma das suas obras. De repente, ao voltar - se para olhar para um dos quadros por um outro ângulo, chocou - se com alguém. Levantando os olhos para pedir desculpas, mal acreditou no que viu e pensou que aquilo não era possível! Centenas de pessoas no local, e tinha que chocar - se justamente com... Ele?
Sentindo o rosto ruborizar - se, pediu desculpas e, coração acelerado, tentou afastar - se. Dois braços fortes a seguraram.
- Sinto muito, mocinha, mas você não irá fugir de mim, novamente. - A voz de Hermes soou suavemente firme, enquanto tenso, mas gentilmente, encaminhou - se, segurando - a, para o balcão de coquetéis. Fê - la sentar - se, aproveitando que ela se encontrava sem ação e que, discreta, evitava chamar a atenção dos presentes.
- O que deseja comigo? Já não lhe expliquei minha atitude determinada, minha situação? - A voz dela parecia contida, mas não ocultava a irritação.
- Acho melhor sairmos daqui - Sugeriu ele.
- Não irei a lugar algum, com o senhor! - Falou decidida.
- Ouça, Dorothy, eu apenas quero conversar, com você. É extremamente importante, para mim, conhecer a história de porque se comprometeu com alguém com quem não está, até à morte, porque não consegui esquecê - la! Apaixonei - me por você! Se me convencer de sua importância, prometo que a deixarei em paz para sempre!
- Promessa irrevogável de... Um homem de caráter? De um cavalheiro? - Ela pareceu ceder.
- Acredite que sim. Não tenha medo. Costumo manter minha palavra. Pode escolher o lugar onde deseja ir. - Respondeu ele muito sério.
- Está bem, senhor. Vamos até a praça, aqui em frente.
Saíram, e ao passar por uma sorveteria, entraram e ele pediu dois sorvetes, oferecendo - lhe o de sabor chocolate e ficando com o de abacaxi (Ele adivinhara que era seu sabor preferido?). O calor era insuportável, aquela hora. Sentaram - se num banco de onde um casal acabara de levantar - se, sob uma árvore.
- Os deuses conspiram a nosso favor: Um banco sob uma árvore, sombra e lugar discreto, como você gosta - Brincou ele.
Ela sorriu, levemente, saboreando o sorvete, sem olhar para ele. Quando terminou, começou, sem preâmbulos, e sem, por um momento, levantar a cabeça, que baixara, a narrar sua vida. Por alguma razão a mais, que não explicava, sentia que deveria contar - lhe tudo.
- No campo de concentração para onde fui levada, havia meninos e meninas, jovens e velhos, todos amontoados como lixo; não raro alguém desaparecia sem deixar vestígios e todos sabíamos o que havia acontecido. Eu chorava e rezava, todas as noites, com frio, com fome, de cansaço, mas principalmente pela falta dos meus pais. Eu tinha quatorze anos e fôra arrebatada deles, que foram levados a outro campo, depois que todos os bens dos meus pais haviam sido "requisitados" pelo inimigo e nosso lar, onde vivíamos felizes e em paz, foi invadida e todos capturados e separados. Nossa única alegria, nesse inferno, era um garoto do qual eu nunca soube o nome. Uma vez, apenas, chegamos a conversar por algum tempo, mas ficava de longe, observando tudo que fazia. Deveria ter seus dezesseis, dezessete anos, pela altura, raquítico pela falta de alimento, como todos nós, e obrigado a trabalhar em serviços pesados. Como ele conseguia, até hoje ainda me pergunto. Mas o que me impressionava era o fato de ele trazer um sorriso constante, nos lábios, e estar sempre inventando coisas, brincadeiras para as crianças mais novas! De alguma forma, improvisara uma flauta e tocava, para elas. Certo dia, vindo da imensa mata que cercava o campo, um belo sabiá (na época eu não sabia que pássaro era), talvez atraído pela música, ou por magia, não sei, aproximou - se dele e pousou na flauta que ele, sem mostrar espanto, continuou tocando, e nem a algazarra das crianças, fez que o pássaro fosse embora, só o fazendo quando, brutalmente, um soldado ordenou que todos se recolhessem e parassem com aquela barulheira de gritos. Como todos conheciam o castigo para os que desobedeciam ordens, logo o lugar ficou completamente vazio, no maior silêncio.
Houve, então, uma época em que fiquei tão debilitada, que caí doente. Estava certa que iria morrer, pois como éramos apenas lixo, para eles, não havia médicos nem remédios, e muito menos, comida que ajudasse a nutrir e fizesse meu corpo reagir, aliás, o que eu mais fazia, agora que nem podia ver o garoto sorrindo e tocando sua flauta, era implorar a Deus que, através da morte, me tirasse rápido, daquele inferno, que não me deixasse ficar definhando até morrer. Como seria maravilhoso deixar meu corpo combalido, voar pelo espaço e experimentar toda a minha liberdade, entre as nuvens e o céu azul! Certa madrugada, queimando de febre, ouvi um leve barulho e, na claridade da lua, vi um vulto se aproximando de mim. Senti que algo fresco tocava minha testa, meu rosto e o alívio foi imenso. Em seguida, o vulto me deu água, levantando minha cabeça e pingando - a na minha boca, com um pano, para que eu conseguisse engolir sem tossir e fazer barulho, pois também tinha dificuldade, para engolir. Isso se repetiu por noites e mais noites sem falhar uma. Depois, quando viu que eu já conseguia beber a água, começou a me trazer uma espécie de sopa; no começo, o gosto era ruim, mas fui me acostumando e com o tempo, me sentindo mais forte, já conseguia falar e até erguer a cabeça. Eu não tinha noção de tempo, só sabia quando era dia e noite pelo claro e pelo escuro. E então, o vulto do qual eu jamais vira o rosto (e que ou por desejo de que fosse, ou intuição, eu achava que era o garoto da flauta), começou a me levar alimentos sólidos e deliciosos, que desde que eu estava lá, sabia apenas que fazia parte da mesa dos nossos carrascos. Uma noite questionei quem era ele e como conseguia aquela comida. Sussurrando, ele respondeu apenas que era alguém que me queria viva, para casar - se comigo, um dia, porque me amava e sabia que eu o amava, que desde que lá estava, percebia como olhava para ele, e que por isso, estava entrando escondido no rancho dos alimentos e roubando o que era possível, sem que fosse notado, pela quantidade, e levando para mim. Depois de uma pausa, apenas perguntou se eu gostava de ouvir música de flauta e saiu, antes que eu respondesse. Nesse instante, eu tive certeza de que minha intuição estava certa. Senti uma felicidade infinita, ali, naquele estado, em meio aquele inferno, cercada por gemidos e gritos de dor de outras pessoas, adultas e crianças e chorei, chorei muito! Depois disso, não voltou mais e meu maior tormento começou, imaginando o que teria acontecido com ele. E quando pensava que havia sido apanhado roubando, para salvar - me a vida, e as consequências disso, também desejava morrer, mas me determinei viver, pois devia isso a ele. Quando estava quase totalmente curada, houve uma invasão das tropas aliadas e o inimigo derrotado. Fomos resgatados, levados para uma instituição e nossos nomes espalhados (dos que sabiam, dos que lembravam), assim como nossas fotos, para os que tivessem pais sobreviventes, fossem encontrados. Quando meus pais chegaram para me buscar, pensei que fosse morrer, mas dessa vez de alegria, por vê - los vivos! Depois de uns dois anos, os bens que sobraram da minha família, incluindo a casa, foram devolvidos, mas apenas porque um dos irmãos do meu pai era General e intercedeu por ele. Ficamos felizes, mas não de todo, pois um dos meus irmãos havia morrido na guerra e, depois de tudo que todos sofremos, sabíamos que nunca mais seríamos os mesmos. Eu já amava o garoto da flauta, mesmo sendo uma adolescente e sem ter noção do que era o amor, mas depois que me tornei adulta, sabia que jamais o esqueceria, que o amaria para sempre. E que nunca, enquanto vivesse, trairia o amor que ele não apenas declarou, mas demonstrou que sentia, com risco da própria vida. Durante anos, mesmo sem saber seu nome certo, tentei encontrá - lo de todas as formas possíveis, mas foi em vão. Certa noite, sonhei com o sabiá pousado na flauta, enquanto alegremente, ele a soprava, tirando um sorriso, um som de música da boca daquelas pessoas atormentadas. Quando amanheceu, eu havia tomado uma decisão que de pronto, coloquei em prática: Mandei tatuar um sabiá pequenino, pousado numa também pequenina flauta. Compreende, agora, senhor... - Ela levantou a cabeça e viu que, um pouco distante, em silêncio, lágrimas copiosas escorriam pelo rosto de Hermes, os olhos vermelhos, inchados de chorar, o corpo sacudido por soluços. Ao menos percebera que ele se levantara, tão concentrada estava nas lembranças daquilo porque passara. Levantou - se e dirigiu - se até ele, a interrogação expressa no espanto, na incompreensão da reação dele, diante de sua história.
- Senhor Hermes... - Chamou, bem baixinho, comovida e emocionada.
Ele se aproximou, quase tocando - a.
- Dot... Gosta de música de flauta e sorvete de chocolate? - Perguntou com voz dulcíssima, tirando algo do bolso da camisa e abrindo - a, para que lhe visse parte do ombro, onde uma pequena tatuagem mostrava um sabiá pousado numa flauta, enquanto mostrava numa das mãos, a flauta que ela tantas vezes ouvira, outras tantas sonhara e da qual jamais esquecera um único detalhe! Como um raio, lembrou - se da única vez que conversaram, e entre tantas coisas que sonhavam, no campo de concentração, ela dissera que, quando saísse dali, iria comer toneladas de casquinhas crocantes com sorvete de chocolate, que adorava, e ele dissera o mesmo, só que seria de abacaxi.
Ele percebeu, no olhar intenso com que o olhou, que a luz se fizera, em sua mente. Estrelas pareciam dançar à sua volta! E então não suportou, mais.
- Senhorita Dot... Aceita casar comigo para sermos felizes até que a morte nos separe?
O beijo intenso, demorado, apaixonado, que trocaram, foi sua mais eloquente resposta.
"E foram felizes para sempre!"