Ocasião
Ocasião
A luz do micro iluminava a escuridão da sala,lá fora ouvia-se o som do trânsito anunciando o final de mais um dia quente.A cidade preparava-se para a madrugada,ao longe alguém assoviava uma canção popular .Através da tela ,letras saltavam compassadamente o pensamento de Clarice.As frases preenchiam o espaço no word evidenciando seus sentimentos submergidos.O relógio do micro marcava uma hora.Mas era cedo ainda para digitar tudo o que tinha planejado.Precisava registrar o que seu coração pulsava.Sua ansiedade a impulsionava...
Clarice era uma mulher de aproximadamente 40 anos,vivia com seu namorado a uns dois anos,tinha um filho de cinco anos e escrevia crônicas por hobby.Muitas amigas e incentivaram ,outras achavam aquilo tudo uma fase.Não importava muito o que pensavam,para ela era um prazer registrar o que se passava em sua mente e coração.Quando sentava-se em frente ao micro o tempo parava e somente seu espírito de escritora flutuava,naquela hora,embora solitária estava acompanhada de si e isto era o que mais necessitava realmente.Seu marido,Fábio não se sentia encomodado com estes momentos reclusos ,pois quando a conhecera fora numa livraria,ele também gostava de escrever,mas não com tanto afinco.Tinha 50 anos,possuía uma firma de informática e nas horas em que não estava com Clarice ia jogar futebol.Os dois se davam bem,sabiam aproveitar a companhia um do outro e embora não fosse o pai do menino de Clarice fazia muito bem a figura de pai.Tudo realmente estava indo muito bem na vida deles.Era um casal com uma razoável vida econômica,possuíam problemas normais de qualquer casal.Tudo era dentro do padrão.
Clarice acabou de escrever o final da crônica ,levantou-se espreguiçosa e dirigiu-se ao chuveiro.a água quente deslizava pelo seu corpo e uma sensação agradável inundava sua pele.Enquanto esfregava-se,cantarolava baixinho uma antiga canção que aprendera na escola.Fábio chegaria logo do encontro com amigos,sempre após o jogo eles iam a um bar jogar conversa fora.Enrolando-se na toalha ,foi até o quarto do filho,dormia sereno,era gorduchinho como ela e possuía um cabelo liso,lustroso,moreninho,um bonito menino.Sorrindo afagou a criança e foi ao quarto procurar um pijaminha.Deitou-se e sob a luz do abajur iniciou a ler.
Eram 6 horas da manhã quanto Clarice acordou,virando-se encontrou Fábio roncando,cutucou-o e foi a banheiro.Ele levantou-se ainda tonto,chegara tarde,havia bebido um pouco mais do que o normal.Chegando a porta do banheiro examinou Clarice,ainda possuía aquela sensualidade que o atraíra quando a conhecera,mas agora continha uma certa atitude,uma independência que ele não sabia como e quando surgira.Escovava os dentes e apontava em direção ao relógio,os dois tinham um compromisso logo cedo.Na cozinha enquanto tomavam o café,a babá chegara trazendo o jornal,Fábio o pegou e foi direto na sessão de anúncios.Clarice lavou a louça e foi se despedir do menino.Juntos no carro iam discutindo o roteiro do dia,Clarice ajudava o marido na firma e estavam assinando um contrato com uma empresa importante.Seria um ótimo negócio para eles.
No estacionamento,dentro do carro beijaram-se,ainda havia desejo e carinho.Subiram o elevador em direção ao andar da firma.Ao abrirem a porta encontraram a secretária já os esperando.Cada um foi a sua sala e iniciaram seus trabalhos.
No trânsito ainda calmo,Felipe escutava uma rádio ,preparava-se para chegar ao serviço e teria tempo de comprar um jornal.Na banquinha da esquina gritou ao rapaz que lhe desse o diário,ao pegar ,iniciou a sua leitura,um anúncio de uma firma de informática estava bem a frente com letras garrafais e uma foto dos proprietários ocupava quase todo o anúncio.Felipe direcionou os olhos e sorriu,”ainda continua bonita..”pegou a direção e seguiu até o prédio onde trabalhava,no elevador abriu mais uma vez o jornal e anotou o número da firma no celular.Ligaria para ela mais tarde.Gostaria de ouvir aquela voz e saber como ela estava.
Felipe era um homem de aproximadamente 45 anos,loiro,não muito alto,não era bonito,mas possuía charme e fazia sucesso com as mulheres,sabia muito bem agradá-las,mas não se prendia a nenhuma,preferia apenas curti-las.Quando conhecera Clarice não tiveram um relacionamento,apenas ficaram amigos,na época ele saia com uma prima dela,e os dois se deram muito bem,muitas vezes eles se encontravam para conversar e pegar um cineminha,mas nunca houve nada entre eles.Não que ele não a desejasse,mas ela nunca deixava claro que o queria.E como eram amigos ele a respeitava.Conheceram-se muito jovens , eram parceiros,confidentes ,amigos.
A sala de reuniões estava quente,a secretária corria de um lado ao outro tentando levar água e refrigerante para os ocupantes das largas cadeiras que ocupavam o escritório.Pensava em logo chegar o final do expediente e poder enfim chegar em casa e relaxar.Trabalhava a pouco na firma e não queria cometer nenhum erro.Seus patrões eram pessoas boas mas firmes em suas decisões.O marido ,muito calmo,sempre sorrindo,tratava os empregados com respeito,A esposa um pouco fechada,nem sempre sorria e quando se dirigia aos empregados era seca,não fria,apenas sem emoção,seus olhos eram vazios,como se estivessem em outro lugar.
A reunião acabara tarde e Clarice estava com muita fome,ligou para casa e conversou com a babá,fez algumas recomendações e entrou na sala do marido,este estava colocando o casaco do terno ,iam almoçar num restaurante de um amigo.”Já estou pronto !Vamos?Meu estômago está urrando...”dando um beliscão no traseiro dela e sorrindo.No restaurante,numa mesa bem colocada em frente a um pequeno chafariz,almoçavam enquanto conversavam sobre o final de semana.” Podíamos ir a praia e alugar aquele chalezinho do ano passado.”Dizia ela engolindo um pedaço de carneiro e se deliciando com o sabor da carne em sua boca.”Melhor irmos a serra,quero descansar num bom hotel e comer chocolates”Falava ele fincando firme a garfo num camarão grande e suculento.Permaneceram ali por quase uma hora e cada um foi para um lado,ele de volta ao escritório,ela para a sua massagem .
Num café Felipe estava a brincar com o celular,repassando números ,encontrou o da firma,selecionou o número e ligou.Do outro lado uma voz bonita e cordial atendeu,ele pediu para falar com Clarice,ao que foi logo atendido.Quando ela atendeu ele se identificou e do outro lado uma suave e alegre voz lhe recebeu,depois de trocas de informações combinaram de se encontrar num restaurante perto da firma.Felipe pagou o café ,fez um charme com a caixa e sorridente dirigiu-se ao estacionamento.
Ao desligar o telefone Clarice rodopiou a cadeira sorrindo e abriu uma gaveta que mantinha chaveada,ali estavam uns retratos antigos e algumas anotações que fazia nas pequenas folgas no escritório para utiliza-las em seus textos.Pegou uma pequena foto,dois jovens abraçados sorrindo a olhavam,um rapaz loiro e uma moça morena,bonita,rechonchuda de cabelos curtos num parque de diversões junto a barraquinha de cachorro quente.Um tempo longe,um momento distante,mas muito feliz.Levantou-se e abriu a porta comunicando a secretária que não voltaria mais a firma.
No pequeno restaurante algumas pessoas iam chegando,ao fundo ,numa enorme parede havia um quadro de uma paisagem grega,um lindo mar azul recebia os clientes que por ali passavam.Num canto em uma mesinha com toalhas de estampa xadrez azul e um vaso com uma flor de campo estava Felipe,ansioso,olhando o celular e a porta de entrada do restaurante.De repente a avistou,vinha ela caminhando suavemente,com aquele mesmo sorriso,e olhar desafiante,estava um pouco mais gorda mas ainda possuía a mesma sensualidade e vestia uma blusa verde com um decote que a favorecia muito bem.”Então quem é vivo sempre aparece eim!?”Por onde você tem andado ?”Disse ela ,beijando-o e sentando em sua frente,deixando a vista o provocante decote.”Pois é resolvi rever os velhos amigos ..matar antigas saudades...Respondeu ele com um enorme sorriso .Foram trocando novidades enquanto jantavam e depois de certo tempo Felipe lhe informou que estava morando na cidade e havia conseguido um emprego perto do centro.Ela lhe convidou para ir jantar no apartamento e conhecer a família na próxima semana,lhe mostrou o retrato do menino,ao que ele se surpreendeu,não sabia que ela tinha um filho.A última vez que há vira fora há uns seis anos,ele havia vindo para um congresso e se encontraram numa festa de uma empresa qualquer.A conversa fluía divertida e entre boas risadas e um bom jantar o tempo decorreu e eles nem perceberam.Ao se despedirem combinaram de se verem na semana seguinte na casa dela ,para um jantarzinho informal.Cada um seguiu ao seu carro.Ela cantarolando pelo caminho.Ele assoviando.
O jantar decorria normal,Fábio muito simpático conversava com Felipe sobre futebol,pescaria e livros.Clarice observava o filho e de vez enquanto respondia as brincadeiras do marido.Felipe encantado com a casa e com o menino elogiava a amiga e dizia-se um azarado por nunca ter algo como eles tinham,sem dúvida era uma família feliz.Depois do jantar foram tomar um cafezinho na saleta de vídeos e Fábio colocou uns filmes do menino ainda pequeno.Ao ser informado que Fábio não era o pai da criança,uma curiosidade o cutucou..quem seria o pai?Não sabia de nenhum homem importante na vida de Clarice,mas como se afastaram por algum tempo ela bem que poderia ter conhecido alguém ....O menino tinha cinco anos,era muito parecido com ela,mas tinha algo familiar,os olhos,o jeito de sorrir e virar a cabeça quando lhe falavam....
Ao se despedir,comunicou ao casal que estava comprando um apartamento num bairro afastado da cidade e que logo que tudo estivesse organizado prepararia um assado num final de semana.O imóvel ficava perto de um lago e poderiam pescar o que agradou a Fábio.Todos foram dormir tranqüilos.Tudo correra bem.
De madrugada a luz do micro era a única coisa que iluminava a escuridão da sala.Letras,palavras,frases surgiam rapidamente formando um complexo bloco de informações,um relato,um projeto,um segredo....
Uma luzinha verde começou a piscar no canto da tela,ao abrir-se a janela,uma mensagem”Ele é meu?”
A resposta veio imediata.”Sim”
O micro foi desligado,e a escuridão ocupou todo o ambiente.Lá fora nenhum som de carros,ninguém assoviando,apenas o intenso silêncio da madrugada escura na cidade adormecida.
Violetta