Água com Sal

Minhas mãos sangrentas e feridas seguraram um bebê que chorava contra o peito. Algo dentro de mim me suplicava desesperadamente para soltá-lo e entregá-lo a sua mãe, mas já era tarde demais para aquele pedido poder ser realizado.

A mãe havia falecido, passando seus últimos momentos no planeta olhando ternamente para sua filha. As notícias foram que ela sorriu em seu leito de morte ouvindo seu choro, Bianca. Ali ficou claro para qualquer um o quanto ela a amava antes mesmo que você nascesse.

Muitas pessoas ficaram chocadas com a morte dela, mas eu já sabia que isso havia acontecido há quilômetros de distância, antes mesmo do estrondo da bomba, antes mesmo que seu nome fosse pronunciado através do walkie-talkie de um dos meus seguranças. Algo além de votos de casamento nos unia, como um fio de compreensão mútua.

Mesmo assim, quando a notícia de fato chegou a mim quebrou meu coração em dois, destruindo toda a esperança dos meus pressentimentos estarem errados. Aquela era a mulher que eu havia amado com toda a alma desde que podia me lembrar. Ela, e justo ela, havia sido ferida mortalmente enquanto tentava ajudar outras pessoas a evacuarem o plenário e chegarem a um lugar seguro. Recém-operada, ainda durante o resguardo. Frágil. Mesmo assim ela deu tudo o que tinha, protegendo os que pôde com seu instinto de mãe. Protegendo a você.

Não me lembro direito de como cheguei lá, o trajeto até os escombros da Sala do Conselho de Segurança permanece como um borrão na minha mente, exatamente como se a notícia tivesse me tirado os sentidos. A Assembléia Geral havia acabado há apenas cinco minutos, e eu havia sido separado dela somente durante a curta entrevista com a imprensa internacional, na área externa da Sede das Nações Unidas.

Foi o suficiente.

Foi o bastante para que um ataque terrorista que tinha como alvo a minha vida matasse sua mãe e outras oitenta e sete pessoas. Cinco minutos.

Apenas cinco.

Tudo o que me lembro quanto àqueles momentos é apenas de ouvir alguém dizer o nome dela. No momento seguinte eu já estava ali parado observando o que restara dos escombros da Sala de Assembléia das Nações Unidas em montes de concreto no chão. Tremendo, suando frio, enquanto ao meu redor o fogo lambia a estrutura; ameaçando tomar os outros andares do prédio.

Antes mesmo que alguém me dissesse o que havia acontecido eu já sabia. De alguma forma, de alguma maneira eu sempre soube. Desde que apresentara meu desejo pela guerra, eu sempre soube. Sempre existiram e sempre vão haver os bárbaros, incapazes de separar a política da paz. Afinal, o que é a paz além de um resultado de uma guerra?

Eu paro e me pergunto ‘por quê?’. Eu paro e me pergunto ‘quem?’. Eu simplesmente paro e me pergunto.

“Verônica...”

Sinto crescer dentro de mim, o medo de ter te perdido pra sempre.

“Verônica, onde você está...?”

Como eu poderia viver sem você?

“Verônica, onde?!”

Eu estaria só. Completamente só.

“VERÔNICA!!”

Eu não teria ninguém sem você.

“Senhor...”

A voz de Alan, o chefe da minha segurança, sumiu no meio da balbúrdia e do som de pessoas gritando. Se eu olhasse em volta veria que não era seguro permanecer ali, procurando o que com certeza seria o cadáver de Verônica, sua mãe. Mas no momento eu ainda estava surdo e cego para o exterior, meus olhos procurando apenas pela forma dela, minhas mãos revirando pedras, meus ouvidos ouvindo apenas meus próprios gritos de desespero. Sem resposta.

Meus dentes cerraram visivelmente. Me atingiu o pensamento de que eu veria Verônica de uma forma que somente velhos decrépitos em seu leito de morte deveriam ficar... Ao pensar nisso um sentimento de afogamento consumiu o meu coração, e me senti dormente, desequilibrado, como se de alguma forma meu ponto de sustentação estivesse fora do lugar. Tentei imaginar minha vida sem meu maior amor, minha melhor amiga, minha esposa, minha melhor diplomata, e não consegui. Meu cérebro rejeitou essa ideia.

Até que eu realmente a vi.

Por um minuto fiquei completamente cego, minha visão embaçada por água que contornava os meus olhos. Lágrimas que a princípio não tinham força para cair.

Ali entre os escombros seu corpo feminino estava retorcido em meio a sombra do que um dia foram poltronas. A única coisa que me dava certeza de que ela era realmente ela era a cor inconfundível de seus cabelos, a primeira coisa que havia me atraído quando nos conhecemos. Vermelho-fogo. Como o fogo que nos cercava.

Em um impulso a mirei com o olhar, o rosto dela vazio, como uma estátua de pedra. Sabe, como aquelas gárgulas de bronze em prédios antigos, que a poluição ácida corroeu as faces.

Eu já vira cadáveres durante meu tempo como Fuzileiro Naval. Muitos deles tinham uma expressão no rosto que poderia até confundir, fazer pensar que se tratava apenas de uma pessoa dormindo. Apenas dormindo... Como se a qualquer momento pudesse acordar. Mas Verônica não, ela não parecia estar apenas dormindo. Ela parecia realmente morta.

“Senhor, o senhor precisa sair daqui. O prédio corre o risco de desabar!”

Caí no chão, dado que o Edifício Sede da ONU começara a tremer e eu não tinha equilíbrio para permanecer de pé. Rastejei até ela, a garganta seca, choro sufocado em tragadas de ar. Me aproximei tentando retirar as pedras em volta dela, tentando libertá-la. A pele dos meus dedos começou a se soltar conforme eu empurrava os escombros, mas não parei. Ao ver o sangue pingar das minhas unhas Alan colocou a mão no meu braço, tentando me afastar e impedir que eu prosseguisse, mas eu o repeli.

“Ela está morta.” Eu disse, mais para mim do que para qualquer outra pessoa, agonia preenchendo a minha garganta. “Ela está muito morta, não é?”

“Está, Senhor.”

A voz do meu segurança ressoou nos meus ouvidos em confirmação. Uma onda de ódio passou por mim, frustração engarrafada em raiva. Eu a puxei ferozmente através do resto dos escombros, fazendo com que o algo que os braços dela ainda seguravam rolasse de seu colo e caísse no chão. Som de choro além do meu pôde ser ouvido. Mas não por mim. Eu ainda estava preso demais à minha dor para ouvir qualquer outra coisa.

Segurei o rosto dela em frente aos meus olhos de forma bruta, o sentimento que me cobriu era como se ela tivesse ido embora sem nem ao menos ter me dado adeus. Sem nem ao menos permitir que eu me despedisse. Como Verônica ousou ir antes de mim?

“Eu te odeio... Eu te odeio!” O prédio tremendo abaixo de nós fez com que a cabeça dela chacoalhasse de um lado para o outro, como se estivesse negando o que eu dizia. E eu podia sentir a mim mesmo chorando e soluçando, podia ouvir, mas era em algum lugar muito distante. “EU TE ODEIO!!”

“Senhor...”

“Eu te odeio...”

Verônica parecia realmente morta ali nos meus braços. Mas mesmo assim, eu ainda queria que ela acordasse, que se levantasse, que sorrisse para mim. Eu não queria a mudança, queria que as coisas fossem como sempre foram. Queria a mesma Verônica que sempre conheci. De repente não pude suportar a constatação de ter sido tão cruel ao ponto de dizer que a odiava. Ao ter mais uma vez ferido-a com palavras.

“Eu... Eu não te odeio... Me desculpa, eu não...”

Som de choro além do meu. Meu chefe da segurança atrás de mim sem saber o que fazer. Eu segurando Verônica com tanta força que seria necessário um pé-de-cabra para me separar dela.

“Me perdoa, eu não te odeio de verdade... Eu só de vez em quando esqueço como te amar quando você me machuca como agora...”

Eu a havia deixado para trás para dar meras entrevistas insignificantes, enquanto uma bomba endereçada a mim explodira sobre ela... Será que momentos antes de morrer ela havia duvidado do quanto eu a amara? Será que ela sabia que o meu mundo girava ao redor dela, que o fogo que havia em mim só ardia por ela?

“Me perdoa... Eu nunca mais te deixo sozinha, eu prometo... Nunca mais... Mas, por favor, acorde... Por favor...”

“Senhor Presidente...” Alan tentou me afastar pela segunda vez, e eu o repeli novamente.

“Não...”

“Senhor Arthur...”

“Não.”

Morrer é como ter que ir e nunca mais voltar. Este pode ser realmente o fim de tudo.

“Eu te amo... Sinto muito... Sinto muito por não ter te protegido, por ter falhado... Sinto muito por ter doído...”

Som de choro. Som de choro além do meu. E foi então que me atingiu. Meus olhos se arregalaram.

Era o choro de um bebê.

Coloquei o corpo de Verônica delicadamente no chão convulsivo, minha atenção instantaneamente direcionada para o som.

Senti algo se mover perto dos meus pés, o ‘algo’ que Verônica segurava tinha rolado para debaixo dela. Tremendo, eu a puxei, minha visão se deparando com um bebê que chorava.

Você...

Eu a peguei no colo, sentindo o calor do seu corpo pequeno. Abaixei o rosto até o seu, minhas lágrimas se misturando com as suas. Você aparentemente também sentiu o mesmo alívio que eu, puxando meu cabelo enquanto meus braços te seguravam com o desespero renovado. Você não havia morrido. E por um minuto eu havia me esquecido de você.

“Não chore… O Papai está aqui… O Papai vai sempre estar aqui para você...” Ao ouvir isso seu choro cessou por um momento, quase como se você entendesse o que eu estava dizendo. Contra toda a situação, um pequeno sorriso chegou ao meu rosto.

“Eu vou criar você. Você vai dormir em um berço na minha sala, enquanto eu trabalho até tarde da noite. E então, quando crescer um pouco mais, vou te ensinar a andar... a falar... Vou ouvi-la me chamar de ‘papai’, e vou sorrir.” Seus pequenos olhos abriram-se pela primeira vez para mim. Verdes. Como os dela. “Você vai entrar na escola e eu vou estar lá em todas as reuniões de pais. Vou te ensinar tudo o que sei... E aí...” Choro consumiu as minhas palavras, fazendo com que meu olhar vagasse para Verônica de novo. “Quando você virar adolescente vamos discutir o dia todo, discordando um do outro, mas mesmo assim... Mesmo assim vamos nos amar, como pai e filha. Eu vou levar você até o altar com muito orgulho... E aí... Um dia...”

Rugido. Um rugido sonoro que ainda não havia chegado aos meus ouvidos, assim como o seu choro antes. Rugido... Rugido...

...de uma segunda bomba.

Eu havia me esquecido o porquê de tudo. Minha proposta de declaração de guerra contra a Coreia do Norte por genocídio e conspiração causara um levante terrorista. Estávamos sendo atacados. Levantei, ainda com os passos pouco balanceados e inseguros, fazendo com que Alan tivesse que me ajudar a manter o equilíbrio nos primeiros segundos, e praticamente me arrastar pra fora.

“A paz é apenas um resultado da guerra... Não é, Alan...?”

Houveram outras duas explosões até que conseguissemos sair do prédio. A Sede das Nações Unidas em Nova York veria seu fim minutos depois, carregando consigo centenas, o túmulo final de Verônica e de muitos outros.

Eu saí com você nos braços, Bianca. Você nos braços e nada no coração.

Me perguntaram na última conferência de imprensa se o atentado terrorista de oito meses atrás ainda me afeta. Se ele foi significante para a minha renúncia quanto à proposta no plenário. Se isso me faz um covarde.

Eu apenas sorri, como Verônica faria, Bianca. Porque eu posso ser o Presidente, mas perdi uma pessoa que amava, tenho um país para cuidar, projetos para designar e uma filha para criar. Eu sou um humano como qualquer outro.

O que eu choro é água com sal.

Prisca Machado
Enviado por Prisca Machado em 10/11/2009
Reeditado em 19/01/2010
Código do texto: T1916382
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