O Silêncio dos Amantes

O encontro havia sido marcado para as 22 horas e, como de costume, chegara mais cedo, para tomar duas doses de Vodka com limão e gelo. Acendi um cigarro para pigarrear e percorrer meu inconsciente, refletir sobre momentos vividos, minhas obras. Faz sete anos que encontro-me, em alternadas noites, na mesma hora e no mesmo bar, com o pecado, com a desvirtude moral humana. Desdenho o conhecimento esdrúxulo sob tal postura, mas o abstenho, por completo. Pondera sobre mim não o amor, mas uma sensação irresistivelmente carnal, que sobressai a qualquer julgamento ético ou moral.

Distraído toca-me o ombro mãos macias, de sedosa pele cultivada por importados cremes e loções. Seguro firme sua mão e pelo toque logo a conheço. Abraça-me por trás e suspira um tom fresco, penetrando em minhas narinas seu odor, teso. Por um instante permanecemos abraçados, eu ainda sentado sob uma cadeira alta encostado ao balcão, ela de pé, curvada sobre meu pescoço. Sinto um aperto em seus braços incomum, um suspiro preso. Viro-me e percebo que lágrimas escorrem-lhe o rosto, um rosto adocicado, triste, avermelhado de tristeza e dor. Comovo-me e dou-lhe um abraço ainda mais afetivo, sem dizer nenhuma palavra, seco suas lágrimas, tento expor toda minha sutileza e empatia naquela mulher que parece sofrer.

Márcia Müller é casada há nove anos com um defensor público, advogada, professora universitária, mãe de um adolescente, cujo pai fugiu ainda na juventude. Do seu relacionamento matrimonial, marcado por altos e baixos, resta a compaixão por seu ente, que tanto desconhece e que nada parece dele obter.

“Por tudo o que passo e que já enfrentei em minha vida é que me entrego a você, esqueço de problemas que tive e que tenho, você me serve de escape” – sussurrou muitas e muitas vezes em meus braços, quando o remorso não ameaçava os momentos de prazer, reclamando da inconstância e insignificância do seu marido.

Miguel Arranjo conheceu Márcia quando estavam na faculdade, loira, de bustos largos, olhos claros, dona de uma beleza descomunal e de uma inteligência fascinante. É quatro anos mais velho e cursava o último ano da faculdade Vicente de Mauá, interior paulista. Depois de algumas saídas em restaurantes caros e investidas de Miguel, Márcia cedeu ao encanto e começaram a namorar e com pressa e insistência logo casaram, vindo morar no sul do Brasil, na capital Porto Alegre, para onde Miguel fora transferido.

E foi na mesma capital Porto Alegre que a conheci. Eu, um solteiro de trinta e dois anos, amante de bares, MPB, artista desde a infância, filho de pais que me educaram para ser um sobrevivente e amante da arte.

Andava descalço sob o por do sol numa tarde de domingo na orla do Guaíba, como de costume, quando a percebi, sentada de pernas cruzadas, coluna ereta, a ler um livro intrigante do Nelson Duarte, intitulado de Mãos Atadas, recorde de venda na época. Sentei num banco há alguns metros e fiquei a cuidar aquela mulher, enfeitiçando-me com sua beleza num tom intelectual. Fiquei ali por alguns minutos e resolvi me aproximar.

“Olá, estava prestando atenção em você”. Falei pausadamente, sentando-se ao seu lado, suspirando, tenso, aguardando sua resposta.

“O que te fez prestar tanta atenção em mim”. Retrucou Márcia, que não levantou os olhos do livro, escondido em óculos escuros.

“Não sei, deve ser o jeito como pega o livro”. Brinquei.

E logo estávamos num bar, tomando vodka com limão e gelo, trocando confidências até então secretas. Confidencias sinceras.

Sentia em Márcia um carinho, uma carência obsoleta, uma vontade de gritar ao mundo seus sentimentos reprimidos, sua angustia.

Nos encontramos mais algumas vezes, sempre no mesmo bar, quando o relógio marcava 23 horas, momento este em que o marido a deixava quatro vezes por semana para jantar com amigos, sócios e clientes.

Márcia era sincera, pura. Eu contava-lhe todos meus segredos, minhas idéias e culpas. Confiava em sua pessoa como nunca havia tal firmeza.

Com o tempo foi apoderando sob mim uma vontade física, uma atração por aquela mulher, creio que recíproca. Não demorando mais alguns encontros terminados em motéis da cidade, depois de noites de sexo e carinho.

E assim foi, durante sete anos de nossas vidas, encontrando-se as escondidas em noites iniciadas em bares e terminadas em motéis, numa paixão avassaladora, numa troca de confidências. Sentíamos-nos aliviados em nossas noites.

Agora, naquele exato instante, algo acontecera de errado, não tinha dúvida.

Márcia ainda chorando, falando baixo, sussurrando murmúrios disse-me que não queria mais me encontrar, mesmo me amando, pois estava recebendo ameaças do marido, desconfiado de traições pela esposa que deixou de lado.

Apenas balancei a cabeça num tom negativo e abracei-a forte, emitindo meu intenso calor, tentando consolá-la. E neste momento deu-se um estampido forte e minhas mãos, que acariciavam suas costas, inundaram-se de sangue quente, sangue da mulher amada, morta com um tiro pelas costas, nos braços do amante que tanto a amou.

Chorei por dias e noites, tendo dentro de mim a culpa, coberto de dor.

Enlouqueci e vaguei por ruas desertas, falando seu nome, o nome da mulher amada, que morreu aos meus braços, de amor.

Não pude conter e, coberto de culpa e ressentimento, puxei o gatilho, na mesma hora e no mesmo bar em que nos encontrávamos todas as noites, na mesma hora e no mesmo bar em que desfaleceu nos meus braços a mulher amada.

Fui encontrá-la e morri de amor.