As bailarinas

Ouvi uma música bonita e lenta. Na verdade, de tão calma, triste. E seguia aquela melodia na mente e na memória, como se fosse um prelúdio. E era.

Surgiram, ao deitar na cama, os personagens daquela agradável música... era uma dança, um ballet. O ballet dos meus desencantos. Como uma caixinha de música, meus sonhos bailavam no palco, um a um: primeiro, minha desilusão, veio vestida de branco. Porque ela é fruto da minha ingenuidade. É o preço que pago por crer na humanidade. Ela já dança comandante, veio como referência coreográfica, pois adquirindo certa experiência - mesmo com um certo desagrado pela monotonia - , da apresentação nunca fugiu, nunca deixou sua responsabilidade de veterana. Graças à ela, minha ingenuidade, as outras bailarinas coreografam.

Surge em seguida a desilusão, de verde musgo, apenas reproduzindo os passos; ao seu lado, meio atrás, a experiência da morte. Comumente associariam o negro do luto, mas minha bailarina veio de cinza metálico reluzente. Essa bailarina foi fundamental para minha queda e lenta recuperação de superação, ainda em possível curso. Cada giro no ar e eu me golpeava. Minha experiência como filho veio das mãos e cuidados afetivos dos mais velhos, meus avós, e essa bailarina sempre os tirava para dançar em meus momentos mais críticos de existência. Cada giro, uma queda, uma doença se sucedia, até que eles se foram. Ela, a bailarina da experiência de morte, a cinza metálica, era genial... implacável, fria e onipresente, cinza reluzente.

A quarta, de azul púrpura, é o amor bandido. O seu beijo, para ser mais específico. Era um azul púrpura tão lindo de seu vestido que atraía, e com dançar meio e angelical, encantava hipnoticamente. Era uma dança tão geometricamente calculada, tão precisa, hora certa dos plies e dos saltos, sempre feitos com muita maestria, giros e pausas pontualíssimas, tais como os que vieram e me roubaram o íntimo, e se foram com um pouco do amor que lhes devotara. Ela os beijava em cumplicidade e eles sumiam de mim, como que sugados por uma outra e nova e melhor dimensão, indefinível.

Começo a me encolher na cama, um certo frio nas extremidades, um certo medo dessa dança coreografada de todas elas no mesmo palco, ao mesmo dia. Parecia uma apresentação especial. Não durmo, mantenho-me em vigília. Estendo um pano verde no meu leito, concentro meus planos e desejos de transcendência e evoco o fim do ballet. Já não suporto ver a quinta bailarina, de vermelho rosa, sangrando seus delicados pés em vão, pois a única que ainda se mutila desajeitada a dançar... meu amor-próprio.