O cavaleiro e a borboleta (conto)
- Camille! Postura!
A sala parecia pequena para os sonhos da jovem bailarina. As sessões de treino eram intensas e cansativas. A distração era inconcebível e seus esforços, por vezes, surreais.
Camille repetia o arabesque pela oitava vez.
- Camille, não!
O “não” da professora entrava certeiro no peito de Camille. Suas pernas tremiam, seu coração batia acelerado e descompassado. Tão descompassado como seus pensamentos naquela fria tarde. Onde estariam seus pensamentos? Não estavam na força dos pés, Camille caiu pela quarta vez em menos de uma hora...
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- Posição de pés, Carl! Pés e cabeça, para uma mira perfeita.
Pés e mãos, não trêmulos. Talvez fosse melhor optar por uma vida mais tranqüila, Carl imaginava, sem grandes pretensões.
O treinador percebeu a sua desmotivação:
- Quer beber uma água e voltar depois?
Carl nunca tremia, não desistia, não exalava nenhum sentimento inconstante. Ergueu seu olhar, posicionou-se corretamente:
- Quero continuar...
Os pensamentos e acontecimentos externos não lhe afetavam tão cruel e explicitamente. Poderia, naquele instante, esquecer até mesmo a morte de seu melhor amigo, há duas semanas. Talvez parecesse frio, sua profissão era colocada acima de todas as outras coisas e isso o tornara exímio perfeccionista e imperfeito companheiro.
O disparo foi certeiro.
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- O que há, Camille?
A jovem não respondeu à professora. Continuou calada e perplexa.
- Quer parar, Camille?- Preocupou-se a professora, já segurando suas delicadas mãos.
Camille estendeu seu olhar em direção à janela, admirava o céu azul, quase escuro.
- Não posso parar... É que por alguns segundos senti uma dor no peito. Foi como se algo me cortasse ou estilhaçasse o coração...
A professora permanecia assustada, apoiada na barra, ao lado de Camille. A jovem sempre foi sua melhor aluna, talvez por isso fosse tão incompreensível que, naquele dia, cometesse tantos erros.
- Camille... Vaga teus pensamentos, por onde?
Camille deixou rolar umas duas ou três lágrimas e continuou a olhar o céu, magnífico para um dia tão frio.
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- Punho firme, músculos ventrais sob controle e respiração, equipe!
Carl se distanciou do treino, por segundos, observando o azul impetuoso do céu.
- Carl, está prestando atenção? – Perguntou o treinador.
- Sim, senhor! – Sabia fingir. Não poderia parecer corruptível ou sentimental. Talvez, técnicas demais lhe deixaram mais averso a sentimentalismos e emoções.
- Vamos tentar, mais uma vez. – Sugeriu o treinador.
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- Camille, demi-plié... Sissone!
Camille já não tinha mais forças nos pés. Suas emoções, nunca conseguira contê-las e, por isso, parecia tão ansiosa:
- Posso ir embora, senhora Merie? – Perguntou, abatida.
A professora segurou suas mãos, respondendo:
- Pode! Vá e descanse. Sei que hoje não estás em um de seus melhores dias. Quer conversar?
Camille negou, movimentando a cabeça. Continuava com os olhos marejados e distantes. Se despediu e saiu da sala.
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Todos foram embora do pátio de treinamento, mas Carl permanecia, num esforço quase sub-humano. O treinador gritou do corredor:
- Vamos embora, Carl?
Carl não respondeu. Continuou concentrado e irredutível. Pensava em fazer sempre melhor, em parecer melhor no dia seguinte. Concentrou-se em seus mais secretos pensamentos, sorriu e disparou pela última vez, naquele dia.
- No peito! Perfeito!
Não costumava ser sarcástico, mas, horas, se tornava tão sóbrio e gelado. Dava para sentir sua respiração, seu coração pulsando compassadamente. Não se importava com os sonhos, se neles naõ houvesse o mérito da profissão. Repetiu, mais uma vez:
- Perfeito!
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Camille trocou suas roupas, despediu da professora e desceu a enorme escadaria do teatro. Seus pés ainda doíam e seu coração batia forte e único.
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Carl guardou o uniforme no armário e desceu, arredio, para a garagem. A respiração controlada, um auto-domínio impressionante.
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Ao entrar no carro, apoiou suas mãos ao volante e inclinou a cabeça sobre ele. Chorou, compulsivamente, num gesto de desespero e dor.
Embora tentasse esquecer, se lembrou de Camille e de seu amor extremo e incontido. As palavras dela surtiam como disparos em seu próprio coração. Abstraído por tudo isso, Carl continuou ali por vários minutos, sem perceber que o céu, antes claro e limpo, se encobrira de nuvens cinzas e densas.
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Camille também se distraíra tão longamente que não percebeu os primeiros pingos de chuva em seu casaco. Continuou andando, ora entre lágrimas ora recordações, tão distante deste mundo material.
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Talvez os pensamentos dos dois viessem a se unificar e responder a questões que suas almas tanto suplicavam... Tão simples respostas, tão difícil retorno. A verdade era profunda: nunca haveria um retorno. Talvez por isso as lágrimas não pudessem ser contidas, embora escondidas. Talvez não quisessem assumir que o amor os tornaram ainda mais mortais. Carl tentava fingir. Camille precisava fugir de seus sentimentos. Tudo estava claro. Suas vidas opostas e, milimetricamente, distanciadas. Olhavam-se, todos os dias, mas não tinham mais nada a dizer. Dois personagens de um inapagável destino. Duas almas que se perderam, antes mesmo de se encontrarem. Ou se encontraram tão rápida e furtivamente que não perceberam, nem conceberam a dimensão de seus sentidos, sentimentos. Agora, recordavam o passado com dor e pesar...
Camille continuaria inconstante e frágil. Guardava as últimas forças para o ato final: grand croisé. Seus pés buscavam a perfeição que somente as mãos de Carl pareciam possuir. Seus olhos vertiam oceanos que, também, somente Carl poderia conter. Quem sabe, a esperança da última palavra, do último abraço, do último movimento de redenção... _______________________________________________________
- Postura!
A palavra ecoava como ordem de extermínio, iminente. Postura é o contrário de se deixar ser. E Carl seria, eternamente, posturalmente perfeito... Enquanto Camille nunca aprenderia, mesmo com tantas quedas e estilhaços no peito. Continuaria sonhando, olhando a imensidão pela janela, das ruas vazias e negras... Como os caminhos de seu coração apertado, desatinado, adverso de seus olhos amendoados.
Encontraria Carl, mais uma vez? Encontrariam-se em olhares e, instantaneamente, se entenderiam. Mas o instinto de defesa seria, sempre, mais ameaçador e impetuoso. O guardião dos sentimentos: a perfeita postura. Preferiam a submissão dos quereres à explosão dos desejos. Inacreditavelmente, fortes e dissimulados.