Um conto e nada mais...
Camille entrou no quarto eufórica, vestida de branco. As pontas dos cabelos molhadas e a cauda do vestido, ainda, úmida pelas poças entre as pedras da capela. Chorava o óbvio e logo o encontrou sentado, amedrontado e secreto de si mesmo. Olharam-se por poucos segundos. Olharam-se e se encontraram habitados d’uma mistura de ódio e prazer. Até que Carl resolveu quebrar o silêncio mortal:
- Você mentiu para mim. Mentiu sempre e ainda mente. O que está fazendo aqui?
Camille, arrancando a tiara presa ao véu, se embargou em mais lágrimas, antes de responder baixinho:
- Não menti para você... Menti para mim. Mas não me arrependo.
Continuou, sem permitir que Carl interviesse:
- Não me arrependo. Tive coragem na vida, embora não devesse tê-la, tão vorazmente. Não me arrependo de ter olhado no mais íntimo de teu olhar, a primeira vez, e me revelado... Outras não conseguiriam, simplesmente. Não me arrependo de ter podido ouvir teu coração bater junto ao meu, por poucos e intensos instantes. Não me arrependo da paz e do toque de tuas mãos nas minhas; do teu beijo calmo, do teu ar de pavor, ao encarar a mistura densa dos sentimentos de medo e de prazer...
Carl permaneceu imóvel e sereno. Camille prosseguiu:
- Você se arrepende? Você não precisa se arrepender, porque você, de fato, não existe mais. Você, talvez, nem tenha existido quando nossos olhares se cruzaram; você era espectro, no momento em que ousei revelar-te meus segredos; você não tinha um coração para bater junto ao meu, embora eu tenha-o sentido; você nunca tocou minhas mãos, mesmo quando nossas mãos se tocaram; e teu beijo não foi, exatamente, teu em mim. Pois você não foi você, definitivamente. Aquele era outro. Outro que habitou tua alma rasa e fria por poucos dias, tornando-a profunda e ardorosa. Mas aquele morreu, tão precocemente e restou...somente você. Você e teus medos. Você e tua firmeza inconstante, teu discurso ditatorial. Você... apenas e mais nada.
Carl já havia se desmaterializado. Mas a cama permanecia quente.
Camille se estendeu sobre ela e chorou amargamente. Chorou pelos desejos ora contidos, ora revelados; chorou pelo, simples e efêmero, gasto da ilusão desmedida. A pretensiosa chorou por horas, até se cansar. Adormeceu.
Aos primeiros raios de sol, após despertar, o espelho refletia luz e desolação. Camille caminhou até ele e se contemplou, por alguns instantes. Os cabelos escovados, perfeitamente arrumados, a calça jeans habitual e uma blusa bonita, porém comum. Espantou-se. Onde estaria o vestido ornado, a cauda coberta de brilhantes e chuva? Onde estaria a tiara em pedrarias e seu delicado véu?
Camille não questionou, estava evidente. Foi um sonho, quase real; porém, sonho. Ou tivera sido um surto, daqueles que arrebatam sentidos e sentimentos.Ousou em chamar, mais algumas vezes:
- Carl? Carl, onde está você?
Mas “Carl” não respondeu. Não responderia, nunca mais. Pois Carl não houve, como nunca mais haveria. E se houve, foi tão rápido como relâmpago. Se houve foi como um estalo inconsciente. Se houve, já não há.
Embora Camille acreditasse que houve, que ainda houvesse e que continuaria. Coitada!
Estava sozinha e amordaçada pelo silêncio inanimado ao seu redor. Estava, ainda, se recuperando... dos sonhos ou dos pesadelos.
Onde estaria Carl, naquele instante? Numa rua qualquer? Na arrogância do ser que ignora seus próprios atos ou, apenas e intensamente, ainda, no coração de Camille?
Camille se perguntou, num último gesto de pouca lucidez:
- Por que menti para mim? Menti sempre e ainda minto. O que estou fazendo?
E, ainda se reerguendo do sono, dos sonhos e das ilusões, se respondeu:
- Estou tentando fingir, mais uma vez, que enterrei “Carl” para sempre, que apaguei-o de minhas lembranças... Mas me esqueço que ele nunca existiu... E como apagar algo que nunca existiu, apesar deste, ainda, estar em mim? Oh, Deus! Me ensina a esquecer. Me ensina, como ensinaste, tão eficaz e rapidamente, a ele!