"e se Alice lesse..." Cap 1
"Por que deixar passar a felicidade, e por que a angústia de viver só, já que sozinhos, segundo a vontade de Deus, pereceremos?"
Por muito tempo que estou aqui sentado, nessa cadeira de balanço tão velha quanto eu, rangendo com cada movimento que faço, desintegrando a cada pensamento meu. Sei que abdiquei de minha vida quando resolvi permanecer aqui, sentado, pelo resto dos meus dias, apenas esculpindo esta estatueta que nem ao menos sei no que irá se tornar. Porém, antes que você, leitor, me condene por minha decisão, saiba que tive motivos para fazê-lo e, deles, eu não me arrependo. Tenho setenta anos agora, e desde os trinta que me sento aqui. Claro que naquela época era com menos frequencia, isso é verdade. Era bem mais vigoroso, e o esboroar da esperança de um jovem me fazia acreditar que um dia mudaria minha vida. Trabalhava na madeireira de meu pai, acreditando que faria dela a maior madeireira do país, fazendo móveis tanto para os nativos, como para os que ali chegavam. Algo que nos anos quarenta era bastante comum, momento em que as famílias procuravam o melhor lugar para viver e criar seus filhos.
Não estaria mentindo se dissesse que Lagoa do Ouro era um dos lugares mais cogitados pelos forasteiros. A cidade era um tanto mágica, ou assim eu acreditava. O alvorecer era uma das coisas mais belas alguma vez já vista, com o sol a brilhar as cores assombrosas em todas as tonalidades intermediarias, através das árvores e dos seus reflexos no rio. O anoitecer por sua vez, um dos mais românticos. E as pessoas, bem, estas já não eram tão fascinantes quanto à natureza, mas também tinham sua magia. Viviam cada um a sua maneira e, com isso, a cidade crescia e desenvolvia tornando-se ainda mais mágica para mim...
Mas as coisas passam, meu amigo leitor... E com elas, foi-se também a magia. A magia das coisas, da natureza... das pessoas. Nunca entendi ao certo o por que de tudo ter seu começo e seu fim, mas tudo se foi, tudo o que eu conhecia, com exceção de mim, claro. Eu permaneci. A razão sei perfeitamente. Lembro-me de todos os motivos e acontecimentos como se tivessem acontecido há um dia atrás. Ontem mesmo. Estão tão vivos em minha mente, que até posso sentir o cheiro do verão no dia em que a vi pela primeira vez. Tão formosa, tão bela... tão majestosa...
Havia saído para pescar naquela manhã. Tinha vinte anos na época. Era um sábado e eu não tinha trabalho na madeireira, e por não ter o que fazer, resolvi sair. Claro que minha intenção era apenas distrair e refletir um pouco sobre o meu futuro, talvez até escrever algo, gostava de escrever poesias nos momentos em que meus sentimentos esboroavam a mais pura nudez. Nunca passou-me pela cabeça encontrar uma pessoa como ela algum dia, especialmente, num dia como aquele, onde minhas roupas fediam a peixe e minhas botas estavam encharcadas de lama. Mas acredito que as coisas são mesmo assim, sem explicação. Apenas acontecendo da maneira que tem de ser. E para o terror de todos, sempre nos momentos em que menos esperamos.
O dia estava belo e o sol reluzia através de um céu sem nuvens. Não havia obtido muita sorte nas primeiras meia hora em que ali estive a pescar, então, desisti, e aproveitando o dia e sentido aquele aroma que apenas as cidades litorâneas possuem, fui navegando sem destino através dos caminhos circulares que serpenteavam o rio. Então, sem perceber, acabei adentrando uma província particular. Não que houvesse problemas, mas a cidade por ser um lugar pequeno, e por todos se conhecerem, as pessoas procuravam se respeitar a medida do possível. Subitamente num ato instintivo virei o leme para o lado oposto e me preparei para da à volta no barco. Foi então, nesse momento, que a avistei pela primeira vez. Ela estava à beira, cuidadosa para não molhar os sapatos, enquanto observava, provavelmente, as pedras lisas e coloridas que havia na beira do rio. Tinha os cabelos loiros presos e um guarda-chuva de algodão a proteger-lhe a pele macia do sol.
Senti um sobressalto interior, não vou negar. Nunca havia sentido algo assim antes, eram sensações desconhecidas que me avassalavam por dentro, deixando-me tímido, com um grande e receoso medo de agir, de fazer seja lá, qualquer movimento que fosse.
Estático por sua presença, ali permaneci, parado, apenas observando a graciosidade com que sorria. Impressionante o quanto meu coração palpitava bruscamente, como o de um pássaro a ser pego pela primeira vez numa gaiola. E palpitou ainda mais forte quando ela voltou seu olhar para mim e acenou. Caro leitor, para os céticos, este pode ter sido um dos momentos mais vulgares acontecido entre um rapaz e uma garota em uma manhã de verão. No entanto, para mim, foi um dos momentos mais doces e tocantes de toda minha vida. Momentos que mesmo com setenta anos, ainda lembro perfeitamente. Comovendo-me com cada contorno seu, com cada brilho do seu olhar, com cada delírio meu.
Ela então virou-se de costas para mim e seguiu para os degraus de madeira que a levaria para dentro de casa e para longe do meu olhar. Precisei de alguns minutos enquanto meus pensamentos deambulavam sem um propósito comum, para retornar a realidade.
Quando cheguei a casa, no entanto, deixei-me distrair. Fiquei sabendo assim que comentei sobre a casa, que pertencia a uma família que para ali se mudara fazia alguns dias e, segundo os boatos, havia vindo para ficar. Foi então que descobri seu sobrenome. Monteiro...
Alice Monteiro, saberia mais tarde...
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