Até que veio o outono
Isadora anda perto de ser mulher. Os desejos, outrora contidos, mostram-se mais fortes, sequer os controla. Desconhece a vida. Inocente e pueril sabe que é. Novas sensações sabe que experimentará, certa de que serão as mais intensas. Talvez devesse seguir seus instintos, permitir que o destino simplesmente aconteça. Sonha apenas com a manhã que virá e junto com ela seu bem.
Que beijo ela ganhou! Tão ardente! Tão puro! Quase desfaleceu. Mas...
A noite veio. Escura. Que beijo ela ganhou! Frio! Congelou sua alma. Quase morreu. Como poderia ser? Ao sol, ganhou o céu; à lua, desceu ao inferno, quase de Dante.
Imensamente triste ela ficou. Dias de tormenta viveu. Mas...
A manhã veio. E o sol trouxe-lhe a luz.
Agora sabe: a vida é como o tempo, ora sol ora chuva, ora calor ora frio, ora nublado ora claro. O primeiro beijo foi ardente; o segundo, amargo. E agora? O que será?
A noite novamente. Longa . Sufocada pela ansiedade, chora copiosamente. Quando menos espera...
O sol mais brilhante que de costume. Apenas o barulho silencioso do mar e a companhia de seu bem. Tudo tão calmo. Quase inesperadamente um beijo.
A noite veio. A lua mais lua que nunca. Alva. Serena. Não mais só está. Nunca mais estará. Seu bem está lá. E Isadora? Feliz. Simplesmente feliz.
Entrega-se. Ainda pensa fugir. Não adianta. Não há escapatória. Fecha os olhos apenas. No dia seguinte...
Flores lhe são dadas. Os espinhos a ferem. Estava tão feliz. Um aperto no peito. Pensamentos terríveis a dominam. As mãos de seu bem a tomam e ela respira novamente. Já não sente mais dor.
Lembra de quantas lágrimas foram derramadas. Quer chorar inexoravelmente. Como dói o amor! Sofre apenas. Calada. E por fim...
Veja-a agora. Há tempos não a via assim. Quer seu bem. O que fez a ela, rapaz? Suas emoções clamam por seu bem. Quer fazê-lo feliz, amá-lo indefinidamente. Precisa amá-lo. Pena que não seja um poeta. Deseja o dom da palavra. Fragiliza-se a cada dia. Está definitivamente entregue. Pensamentos desalentadores dominam-lhe a alma. Recorda-se de sua bisavó. Lê um poema escrito por ela:
1
“Faz 33 anos que sofro
o martírio da despepsia.
O meu gênio tornou-se irracional
Só devido a neurastenia.
2
Foi na idade dos meus 20 anos
Que esta grande moléstia apanhei
Das mil drogas que existem na Terra
Todas ela em vão eu usei
3
O despéptico é um ente que vive
Isolado sem contentamento
Esquecido dos que lhe rodeiam
Por não crerem em seus sofrimentos.
4
O despéptico é um mal sem governo
Que não pode mais carga levar
Seu estômago não pede alimento
Só espera a morte chegar.
5
O despéptico é um pobre enfermo
Naufragado num mar de tormento
Meditando os horrores da morte
Colocados no seu pensamento.
6
O despéptico é um ente tristonho
Taciturno, que vive a escutar
A zoada que tem nos ouvidos
Parece-lhe o barulho do mar.
7
O despéptico não dorme, o assusta
Pesadelo de noite a lutar
A insônia enfraquecendo-lhe o cérebro
Não tem força para repousar.
8
O despéptico é um ente abatido
Que não tem impressões para falar
A tontura tira-lhe os sentidos
A fraqueza a desequilibrar.
9
O despéptico é um ente cansado
Não tem força para trabalhar
Tem preguiça involuntariamente
Não podendo seus passos firmar.
10
O despéptico é um ente sem vida
Que do rosto já perdeu as cores
Seu estômago já perdeu as cores
Seu estômago dilatado, treme
O despéptico é um Homem de dores.
11
Só quem sabe o que um despéptico sofre
Só quem sabe as angústias que tem
Só quem sabe a tortura que passa
É um outro despéptico também.”
O outono chega, o frio também. Observa as folhas que caem, são como as lágrimas que de seus olhos descem infindamente. Infinitamente. Saudades de seu bem. Teme perdê-lo. Deseja-o. Ama-o desesperadamente. Sente seu cheiro. Seu nome ecoa por sua mente. Olham agora em uma mesma direção. Um destino apenas. Vencida está. Entregue. Sexo e amor se fundem, se confundem. Pensamentos distorcidos. Bodas de papel. Traz em seu ventre o fruto de seu amor. Dores a tomam. Sangra. Desespero. É chegada a hora. Gêmeos. E Isa? Não houve salvação.
Seu bem entra no leito. Olha-a. Tão serena. Tão lua. Toma-a em seus braços. Copiosamente chora. Embala-a. Beija-a levemente. Jamais a esquecerá. Ela o amou tão desesperadamente, fez mulher em seus braços. Inocente. Pueril. Lembra de sua boca ciciando longamente seu nome. Fim de tudo?
Ouve ao longe um choro, dois choros. Ergue-se. Segue os choros. Sorri. Ainda um sorriso triste. Agradece a sua amada. Para sempre imortal agora. Sabe que os corações que choram amam até a última lágrima. Rolam em noites de insônia. Têm a alma-lírio, a alma-metade. Cantam seu bem. Sofrem por seu bem. Deixando no ar cheiro forte de amor, desabrochando flores, mantendo vivo o mundo.
Volta para casa. Leva consigo suas duas vidas. Lindas. Entra no aposento onde mais foi feliz. Ainda no silêncio do quarto ouve apenas o ciciar do respirar de Isadora. Descompassado? Não. Voluptuoso talvez. Tantos segredos vasculhados. E a lua? Não mais mor. Seu coração sangra, deflorado pela angústia, submerso num mar lacrimal.
Vê o lugar vazio. Nem os pássaros fizeram ninho. A lua veio mais cedo, pôs-se acima do sol, contrária ao sol, e expulsou o sol. Uma estrela brilhava solitária e na sua solidão piscava, piscava, piscava... até que também se apagou. E o quarto? Continuou vazio. Apenas lembranças escondidas nas lágrimas de um homem também vazio, naquele mesmo dia vazio.