Sleepwalker
Colocou o pé no primeiro degrau da escada de mármore. Seu alvo vestido, sonho de qualquer moça e, no entanto, seu rosto não abrigava sorriso algum. Nos olhos azuis trazia um brilho apagado de lágrimas derramadas na alcova na noite anterior. No peito, uma dor dilacerante.
O véu cobria sua face, suas olheiras profundas e sua palidez fria. Seguiu pelo carpete vermelho e imperioso.
Seu caminho ia reto até o ponto onde tudo seria perdido. No altar bonito, branco e repleto de imagens sacras, onde figuravam uma cruz e uma Bíblia, ela teria as testemunhas do mais doloroso de todos os sacrifícios: o do seu coração.
As lágrimas lhe correram pela face. Se a vissem teriam pensado que chorava pela emoção do dia tão esperado, mas ela jamais esperara aquele momento e nunca desejara estar ali.
Quando se aproximava do local marcado pôde vê-los, carrascos que lhe sorriam como se a quisessem bem.
O medo surgiu mais forte. Não o medo do que viria, o medo de perder o que passara.
Atirando o ramalhete de rosas brancas sobre o chão, ela virou-se e fugiu. Correu, descendo as escadas com rapidez. A chuva fina começou a molhar o tecido alvo e a terra começava a tocar a barra da saia.
Livrou-se dos sapatos caros e correu como o vento pela floresta. Iria casar naquele dia, mas seu casamento não seria celebrado numa igreja, com festas, música e bebida.
Correu por entre as arvores. Enfim, chegou a um silencioso recanto.
Entrou na pequena sala, vazia. Não havia viva alma no recinto.
No centro desta, porém, sob um leito de madeira escura, dormia pálido o sonho que ela há muito tivera.
Aproximou-se. Os pés alvos sujos de terra tocaram as frias pedras do chão. E lentamente ela saboreou aquele momento.
Quando olhou para o rosto adormecido, frio e branco como uma estátua, seu coração palpitou com força, lembrando-se de horas belas entre rosas e belos jardins, e poemas e canções.
Sua trêmula mão aproximou-se do rosto que ela já conhecia de cor e tocou a pele gélida. Afastou as mechas de cabelo escuro que cobriam os olhos cerrados. Olhos que, ela lembrava-se bem, eram de um verde profundo. Olhos que jamais se abririam novamente para saúda-la nas madrugadas furtivas passadas no relento do jardim.
Retirou o véu longo, descobrindo seu rosto, e pregou seus lábios aos dele. O sabor daquele beijo era salgado pelas lágrimas que lhe corriam pela face e amargo por ser uma despedida: o último beijo daquele amor tão mal fadado, destinado a morrer tão cedo.
-Senhora, devo levar o pobre infeliz! - Disse o coveiro, que perturbara a sala. - Antes que apodreça!
Ela assente com a cabeça. Observa o homem fechar a caixa que guardará para sempre o resquício físico de algo querido e amado demais para se poder explicar.
O coveiro levou, com ajuda de outros dois empregados, o caixão até o lugar de repouso eterno. A terra foi jogada por cima dele, enquanto, ao longe, os olhos dela acompanhavam aquele movimento de pás e terra.
A lápide foi encerada, com o nome e datas escritos, enquanto ela ainda ali continuava.
O coveiro e os empregados foram embora, mas ela ficou.
Aconchegou-se ao túmulo de pedra fria. Retirou o véu, largando-o no gramado.
Colocou a mão dentro do corset e lentamente, prateada e bela, sua aliança de compromisso revelou-se, afiada.
Ela sorriu mirando a superfície bem amolada.
Lentamente, fechou os olhos e sorriu enquanto a lâmina era enterrada em seu coração.
O coveiro seguiu até lá.
-Pobre dessa moça, que tão cedo perde um ente querido! - Pensou enquanto ia até ela.
Precisava fechar o cemitério e ela ainda estava lá. Quando chegou, viu que estava debruçada sobre o túmulo. O véu cheio de flores sobre o túmulo.
Aproximou-se com cuidado e colocou a mão no ombro dela.
-Senhora? - Chamou.
Estava ela fria.
Ele segurou-a pelos dois ombros e a afastou da lápide cinzenta.
Seu alvo vestido estava manchado de sangue, e um punhal de prata estava cravado em seu peito. Ela sorria, tranqüila e doce, como um anjo adormecido.