Réquiem

Naquela cama de hospital, ela tinha olheiras roxas e profundas combinando sadicamente com o rosto magro. Aqueles cabelos muito negros e desgrenhados contrastando pele muito pálida. Ela respirava quase imperceptivelmente, e era a própria imagem da morte. Ele, com olheiras insones, cabelo arrepiado, o terno amassado, e a roupa desabotoada; lembrava o desespero. Esta era a situação dos dois, nenhum deles fugia dela. Na cama do hospital ela sabia com uma dura franqueza o próprio destino, e ele também sabia.

- Que bom que estás aqui, querido, eu vou morrer hoje. – disse ela em um tom de bom dia, com o sorriso que o corpo lhe permitia.

- Quer que eu chame nossos filhos? – perguntou ele assustado.

- Mais tarde, antes quero conversar a sós com você.

- Como sabes que vais morrer?

- Intuição, mesmo que eu não acredite nisto.

- O que quer falar comigo? – Ele estava temeroso, o algo que ela lhe revelará no leito de morte não lhe parecia boa coisa.

- Que eu te amo – disse ela pensativa, sem mostrar maior emoção.

- Também te amo - disse ele tentando ser amoroso.

- Não, não é isso. – disse ela em seguida, e fez-se um silêncio por alguns instantes.

- Mas eu real....

-...realmente me ama. Eu sei, mas não é isso que quero falar. – interrompeu, ela, com um tom seguro, mas com a incerteza de como se expressar. O silêncio momentâneo que prosseguiu era para ele insuportável, e sua própria cara de insegurança e medo o diziam bem. Ela falou então:

-Eu quis morrer por boa parte dos meus dias, nunca gostei de estar viva...

-... mas depois de tantos anos, só hoje eu quis realmente estar viva, e isso me prova que eu posso morrer.

Com olhos cheios de água ele começava a sentir que todo o sofrimento dos últimos meses estava em seu cume. Entendeu que deveria começar a aceitar a morte da esposa, e pensava se era ou não um sortudo de poder fazer isto com ela viva.

-Não é que eu tenha entendido o sentido da vida, porque a vida não tem sentido, mas perto da morte eu percebi que quero viver, eu percebi as coisas pequenas que me faziam viva, mesmo sem eu saber... – parou ela pra chorar

-... sim, isso me deixa pronta pra morrer, porque acho que no fundo, com você, com as crianças, eu sempre estava atrás disto: de saber porque eu estava viva. E eu descobri o porquê, descobri o que me manteve covarde pra me matar. E por ter descoberto o que eu tanto procurei eu posso morrer. – Ela começou a chorar descontrolavelmente, o marido não lhe ia enxugar as lágrimas, pois ele bem sabia que ela não precisava de ajuda nem de conforto. Era um momento dela com ela, e ele não interromperia.

- O que te manteve viva?

- O procurar um porque pra viver.

- Porque você quer estar viva hoje, então?

- Porque não me interessa saber o porquê viver. – disse ela sorridente, mas ainda chorando. Ele segurou a mão dela, olhou-a nos olhos e declarou todo o seu amor a ela sem nem mesmo dizer algo.

O silêncio de troca de amor mútuo durou alguns minutos que passaram em segundos, as lágrimas sumiram, os semblantes deles ficaram mais vívidos. O fantasma da morte rondava ironicamente apenas o marido, que às vezes em meio à serenidade do momento pensava ora ou outra que ela talvez não estivesse ali amanhã.

- Não quero levar para o túmulo, eu já te traí. – disse ela repentinamente, quase cuspindo cada palavra.

- Como?

- Uma única vez, pra nunca mais. No México, com o italiano que tu achavas chato. – disse ela tentando não pedir piedade.

- Eu sabia. – disse ele com ar conformado, mas ainda trágico.

- Sabia?

- Porque acha que eu e as meninas ficamos tanto tempo na praia aquele dia?

- Como assim?

- Quando você não estava no quarto, fui com as meninas para a piscina, pra você não saber que eu vi que não estavas no nosso quarto.

- Como sabia que eu te traí?

- Eu apenas sabia, não tinha certeza. Coloquei um detetive atrás de você quando voltamos, por quatro anos, mas ele não descobriu nada. Resolvi esquecer.

- Foi só aquela vez no México, mas não posso pedir que creia em mim.

- Porque não me contou? Medo?

- Pelo mesmo motivo que sei que não posso pedir que creia em mim.

- Gostou? - perguntou ele, tentando não ter rancor, mas a pergunta era ácida.

- Gozei – disse ela, e riu. Ele não conseguiu mudar o semblante confuso e irritado.

- Não só gozei, como nunca mais fui a mesma mulher.

- Sim, eu reparei na cama.

- Reparou que eu melhorei? - disse com alguma expectativa.

- Reparei que ficou tentando me agradar, e que já não queria o ter o teu próprio prazer comigo – disse ele em tom ríspido.

- Não, eu não achava que poderia ter prazer fora do casamento. É que eu queria te agradar apenas te agradar, por vergonha, culpa. Desculpe-me por isso, então.

- Eram as suas desculpas quando tentava me agradar, eu não posso aceitar mais desculpas.

- Quando eu acordei e olhei do lado, e vi na minha cama outro homem, eu me dei conta do que você representava. Ironicamente, o maior ato de amor que tive por você, foi com outro homem. – disse ela olhando para o teto e fugindo dos olhos dele, coisa que não havia feito antes.

- Me explique.

- Eu pude ter as dimensões que você representava, não só meu marido o meu amante, o par sexual, mas você, o meu amor. Me dar conta do que representava ter dormindo ao meu lado o meu amigo mais íntimo, o pai dos meus filhos e o senhor dos meus segredos. Depois de te trair, eu descobri o quanto dependo de você, e foi muito melhor que fosse assim, sem que eu precisasse te perder.

- Não posso ficar agradecido porque desonrou nosso casamento.

- Só quero que acredite que todos os meus “eu te amo” foram sinceros, como aqui no leito de minha morte, eu estou acreditando com sinceridade nos teus “eu te amo”.

- Não poderia me amar, do jeito “completo” que diz me amar hoje, sem me perder? – perguntou ele ainda ácido.

- Sinceramente, eu não conseguiria achar que te amava mais que só algo que me fosse imposto. Só pude ter certeza que isso era meu, quando percebi que ninguém além de mim mesma me impunha sentir sua falta naquela cama. Não foi culpa, não foi costume, não foi vergonha, eu realmente apenas me senti estranha, porque eu não senti que estava traindo você, mas que estava traindo a mim mesma.

- Isso quer dizer que nossas declarações de amor quando jovens eram mentiras?

- Quer dizer que você não me amava? – perguntou ela ardilosamente.

- É exatamente isto que eu quero contar. – disse ele sem culpa

- O que é que me aprontou? – perguntou ela em tom jocoso.

- Não aprontei, este é o problema. Eu ainda era apaixonado pela minha namoradinha de colegial, me casei com você por oportunidade, apenas.

- Então tudo isso foi obrigação? – perguntou ela agora preocupada.

- Não, digamos que eu aprendi a te amar.

- Como tem certeza que me ama, então?

- Do mesmo modo que tu descobriste que não me amava por imposição externa: Tendo medo de te perder. Foi durante aqueles quatro anos, nos indícios dúbios que ele me mostrava de tua traição, que não existiu de novo; eu sofri muito. Eu sofri e da mesma maneira que você, eu descobri que te amava. Foi doloroso para nós dois descobrirmos que amávamos um ao outro. Percebi, então, que só levei na conveniência no início, pois depois você passou a representar a minha amiga mais íntima, a mãe dos meus filhos, a senhora dos meus segredos... – disse ele sorridente usando as palavras dela.

- Posso dizer que nosso casamento foi como os arranjados? – perguntou ela com leveza.

- Não, porque eu acho que ninguém que se casa se ama realmente. – fez-se um momentâneo silêncio, banhado a olhares que muito tinham dizer sobre o que eles estavam prestes a perder.

- Parece que tenho o melhor marido do mundo... e que sou a melhor esposa. – disse ela alegre. – Eles se beijaram longamente em seguida, ambos deixaram escorrer lágrimas de seus olhos, mas olhando de fora, confesso sinceramente que não sei se é alegria ou tristeza, porque eles por mais que saibam da tragédia, se beijam sem a coragem de se despedir, se beijam com a pura alegria por perceberem o quão sólido era a relação dos dois. Após muito tempo, eles se separaram, e ainda curvado sobre ela, ele perguntou:

- Nós fomos felizes? – perguntou ele.

- Não. Mas fizemos o melhor, meu amor.

- Faltou algo, querida?

- Você me trair. – disse ela seguida por gargalhadas. E depois das gargalhadas, se olharam um pouco, e ela pediu que as filhas fossem chamadas.

- Tudo bem, mas antes de elas entrarem, tem algum desejo post-mortem para que eu realize?

- Adianta pedir pra você arranjar outra esposa?

- Não, não vou arranjar.

- Então faça com que eu não me sinta culpada em te abandonar.

- E se eu me sentir culpado por estar vivo sem você?

- Minta pra si mesmo, foi o que nos fez feliz.