QUASE UMA VERTIGEM
QUASE UMA VERTIGEM
Assim como há gestos muito simples que fazemos distraidamente, mas que são modificadores de aspectos importantes de nossa vida, como, por exemplo, olhar para os lados ou simplesmente não olhar, ajeitar a bolsa à tira-colo no ombro, afastar os cabelos do rosto, sacar da bolsa o celular e ligar para uma amiga, aconchegar ao peito o blazer desabotoado, pedir um café expresso e acender um cigarro, são, enfim, atitudes prazerosas, quase uma vertigem, inconsequências, coisas que se dissolvem...
Ercilia
23/8/2009
 
Quase uma vertigem
“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem.”
Fernando Pessoa
Num fim de tarde de inverno, eu caminhava pela Avenida Paulista após assistir a um filme num dos cinemas de um Shopping Center. Meu destino, uma livraria onde uma amiga faria o lançamento de seu terceiro livro.
Nesse fim de tarde friorento, mas com um céu azul, azul de inverno, eu caminhava pela avenida sem cuidados nem certezas, mantô aberto, deixando à mostra a echarpe de lã inglesa envolta em meu pescoço, o vento a fustigar-me o rosto e a esvoaçar meus cabelos. Eu os ajeitava com uma das mãos, e com a outra segurava o celular ao ouvido – consultava a veterinária de minha gata, Nikita, sobre as vacinas a serem dadas neste inverno. Minhas mãos estavam muito frias e a ponta de meu nariz congelado. Parei a espera da luz verde do semáforo e guardei o celular na bolsa. O semáforo abriu para pedestres e eu atravessei a avenida com a certeza de estar caminhando rumo à novas surpresas que o destino sempre nos prepara. Cada momento que passa é o preparo para o próximo tempo. É sempre uma incógnita!
Assim como há gestos muito simples que fazemos distraidamente, mas que são modificadores de aspectos importantes de nossa vida, como, por exemplo, olhar para os lados ou simplesmente não olhar, ajeitar a bolsa à tira-colo no ombro, afastar os cabelos do rosto, sacar da bolsa o celular e ligar para uma amiga, aconchegar ao peito o blazer desabotoado, pedir um café expresso e acender um cigarro, são, enfim, atitudes prazerosas, quase uma vertigem, inconsequências, coisas que se dissolvem...
Parei na banca de jornais, folheei algumas revistas e comprei uma de atualidades. Paguei-a ao jornaleiro e segui em frente. Neste instante de atitudes inconseqüentes, distraída, pensamento disperso, ao dobrar uma esquina da Avenida Paulista, eu o vi.
Ele estava parado em frente a uma das vitrinas da livraria, emoldurada por colunas de pau rosa, à procura de algo de seu interesse. Tranquilo, quase em abandono, cabelos castanhos bem penteados, sobretudo de lã preta, echarpe de lã branca ao pescoço, uma pasta de couro preta entre os dedos da mão direita, ao longo do corpo esguio, e, do lado esquerdo do corpo, o laptop pendurado no ombro. Vi seu reflexo na vidraça da vitrine, juntamente com edifícios, copas de árvores desfolhadas e transeuntes apressados, a olhar interessado os livros expostos em prateleiras. Assim estava ele, o homem da minha vida, pensei! - um flash insano!
Um último raio de sol, a aquecer o toldo e a formar uma nesga de claridade na vitrine repleta de revistas e de livros, completava a paisagem. Empurrei a porta de vidro e entrei na livraria para o que eu esperava ser um momento marcante, um antes-de... e um depois-de ..., na minha vida.
Parei à porta para dar um tempo e acalmar a emoção, equilibrar a sensação de queda livre por espaço desconhecido, de pés em areia movediça, de corpo em levitação, de consciência da existência da alma. Tive ímpetos inesperados, sucessão de prazeres nos lugares certos, palma das mãos úmidas, desejo de toques e afagos. Inconseqüência. Vi apenas o seu reflexo na vitrina e já o amei. Atração, química, sexto sentido alerta, não sei dizer! Imediatamente previ eventos modificando o meu momento, produzindo um novo e eletrizante capítulo de um hipotético livro escrito pelo destino.
Ele entrou na livraria e eu a sua sombra. Aproximei-me. Num momento em que a proximidade foi concreta, pude sentir o perfume de sua loção de barba e quase sentir seu hálito. Ele pegava um livro, folheava-o e lia atentamente as orelhas. Suas mãos eram lindas! Deviam ser firmes e macias também. Mãos que, talvez, produziam textos, calculavam, desenhavam, planejavam e, provavelmente, percorriam suavemente o corpo de uma mulher e...
Tocamos o mesmo livro e nossos olhares se cruzaram. - Desculpe-me, você já leu esta autora? Perguntou-me. – Sim, eu li todos os anteriores, gosto do estilo, uma visão feminina sobre o problema social enfocado, Patrícia Melo, ela é jovem e talentosa, respondi-lhe. Aprecio também o estilo de Saramago, na forma e de conteúdo crítico, seu modo de ver e julgar a vida, a política e os problemas sociais de seu país, um cidadão engajado, seu livro mais recente...
Ofereci-lhe meu cartão, passaporte para o imprevisível, e o convidei para o lançamento, naquela mesma livraria, algumas horas depois. Ele agradeceu, colocou-o no bolso interno do sobretudo e sorriu-me gentilmente. Um gentleman!
Caminhei para a saída da livraria e empurrei para frente a ansiedade que teimava em me abraçar. Impressão de algo inacabado, talvez ao retornar mais à noite, quem sabe...
Eu precisava vê-lo de novo, pois a casualidade não me permitira mostrar-lhe o melhor de mim. Não tivera oportunidade de lhe mostrar meus cabelos soltos e enfeitados, meu melhor vestido. Ele não sentira o meu perfume e nem sentira o calor de minhas mãos. Fora uma aproximação por mim premeditada, um olhar atento, movimentos contidos, as mãos impressionáveis, um discurso apropriado ao momento. Somente poucas e furtivas palavras, o suficiente para não causar desconforto, tudo sugerido nada explícito. Jogo de sedução, nenhum sobressalto. Nada que me levasse a pensar que não haveria um retorno. Saí da livraria ansiando por caminhos curtos e livres.
A noite cai aveludada e fria. Os neons, nas fachadas das lojas, brilham entre o azul, cinza e vermelho. No alto dos edifícios, os outdoors emitem convites vários. As janelas dos belos edifícios da Avenida Paulista pipocam luminosidade e os bares abrem as portas para o happy hour. Os restaurantes se preparam para receber executivos que, entre um e outro drinque, finalizam negócios entabulados durante o expediente. Casais se encontram nas portas dos cinemas, trocam beijinhos e seguem abraçados.
A caminho do meu apartamento, apenas acenei com os dedos a uma amiga que passava, oi, tudo bem, depois a gente se fala, não poderia perder tempo. O apartamento em preto e branco e aconchegante foi um convite à espera. Liguei o computador, conectei-me à Internet e esperei. Nada mais a fazer.
A campainha tocou, era o vizinho, sinto muito, vejo você amanhã. O celular tocou, atendi, era uma amiga, te ligo amanhã. Nada a perturbar aquele momento, nada a interromper o doce sofrimento da espera, nada a se interpor entre mim e o inevitável, nada a romper a linha que costuraria o meu ao destino do homem da livraria. Queria curtir o momento, massagear o local dolorido da expectativa, soprar a angústia dos minutos que passavam lentos. Sentia ainda no rosto o calor e nos olhos o fogo da fascinação - distanciamento da realidade.
No sofá da sala do meu apartamento, recostei-me à espera de algo que modificaria minha vida. Lufadas de vento frio entravam pela janela entreaberta. Eu havia cochilado. Acordei com Nikita, indiferente e alheia aos meus anseios, deitada entre os meus joelhos. Ela me aquecera. O tempo passara, mas não me convencera ainda de coisa alguma.
Aberto em meu peito, em simbiose adequada e perfeita, o livro de poemas de Florbela Espanca :
...“Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!”
Fechei o livro de poemas e coloquei-o na mesinha ao lado do sofá. Tirei a minha gata Nikita, suavemente, de meus joelhos e levantei-me. Eu não poderia chegar atrasada ao evento mais importante da vida de minha amiga. Escrever um livro e apresentá-lo ao público é uma realização da maior importância na vida do escritor. É como fazer amor, engravidar e trazer um filho à luz. A sensação é semelhante.
Fiz-me bonita. Retoquei a maquiagem, soltei os cabelos, uma nova echarpe, gotas do meu perfume predileto nos ombros. Calcei minhas botas, vesti a pelerine e coloquei uma boina sobre os cabelos. Peguei as luvas e saí para o que eu ansiava ser o meu melhor momento, uma noite da maior importância.
A caminho da livraria, já com a noite a envolver meus sentimentos, senti-me confusa. Havia criado expectativa em torno do encontro que talvez não ocorresse. Quem sabe ele iria, ou não iria! Havia deixado o convite, ou não havia? Queria acreditar ter deixado. Voltaria à livraria para sofrer um pouco mais.
Minha amiga estava à frente de sua produção, feliz, sorrindo e distribuindo autógrafos. Muitas pessoas, apenas vultos sem rosto.
Lancei um olhar acima de prateleiras de livros e de gente circulando com taça de vinho branco na mão. Garçons circulavam solícitos com bandejas de copos, taças e salgadinhos. O espaço me pareceu sem fim. Procurei por ele. Por aquele que certamente não percebera a forte impressão causada. Seduziu-me e não iria consertar os estragos. Com que direito alguém pode causar esses estragos e não ser punido? Eu já não o sentia próximo. Sentia-o uma sombra, apenas alguém que passou pela minha vida sem deixar rastros. Eu nada sabia sobre ele, nada de sua vida, nem de seu trabalho, de seu caráter. Seria um professor, um acadêmico completando seu doutorado? Qual a marca da sua loção de barba, a marca do seu carro, onde comprava suas camisas? Estaria hospedado em algum hotel nas redondezas ou estava simplesmente a caminho de casa e sua família o aguardava!
Dei-me um tempo, que me pareceu longo, mas relaxei. Um garçom passou por mim e ofereceu-me uma taça de vinho branco. Foi bom! Eu estava precisando de algo que me aquecesse o corpo e a alma.
Uma calma morna tomou conta de meus sentidos e meu coração aos poucos foi se acalmando. Circulei mais um pouco pela livraria. Não encontrei ninguém, nenhum amigo que me tirasse do torpor causado pelo vinho.
Cheguei à mesa onde minha amiga, com o olhar iluminado e com um largo sorriso, recebia para os cumprimentos. Autografou seu lindo livro para mim – “Você faz parte destas linhas. Com carinho, Khazzon” - e agradeceu-me a presença com um carinhoso beijo. Fiquei mais algum tempo e depois...
Abracei o livro autografado pela minha querida amiga e saí para a noite gelada.
A caminho de meu apartamento, já me sentia com os dois pés na realidade. Conscientizei-me de que fora apenas uma impressão, um delicioso momento, uma deliciosa paixão, sexto sentido mal interpretado por mim. No momento, minha capacidade de discernimento não estava preparada para definir uma atração inexplicável. A emoção extremada turva a inteligência e a razão, ela altera o senso de realidade.
Depois desta noite de emoções extenuantes, passei a esperar todos os dias que aquele Ser fugaz passasse novamente pela vitrina e me fizesse um aceno, me oferecesse um olhar mais atento, um olhar brilhante e quente, um sorriso sedutor... e, quem sabe, me convidasse para um café, um aperto de mão – aquelas mãos lindas! Quem sabe, entrasse na livraria e esvaziasse minha ansiedade, agora diminuída de intensidade, e recolhesse o meu sonho e o separasse da realidade, tomasse entre as suas as minhas mãos e as enleasse com os fios da trama de sua vida. Ou simplesmente me beijasse no rosto, me contasse alguma coisa da sua intimidade, o porquê do desencontro... Ou simplesmente não dissesse nada e passasse por mim como se jamais me conhecera. A mim que o amara tanto desde sempre.
Esturato
23/08/2008