Inabaláveis sentimentos...
Inabaláveis sentimentos...
Debruçara-se no parapeito da janela. A última vez que fizera aquele gesto era quase uma menina. Inundada de lembranças era como se fosse rumo à porta íngreme que a separava de outro tempo. Aquela fora a cidade do seu habitar e aquelas lembranças que salgavam sua boca e luziam seu olhar haveriam de ter sido as que mais a fizeram saber-se viva. As casas de outrora não haviam dado lugar aos espigões. Parecia incrível mas eram exatamente como antes, só o desgaste oriundo tempo.Intactas,ela quase podia ver-se a caminhar nas velhas calçadas de pedras. Se fechasse os olhos, por um instante o aroma adocicado das flores invadiria o seu rememorar.
Pousou uma das mãos vincadas no rosto apoiando-se no cotovelo de pele fina e avermelhada, arrumou no rosto os óculos de aro desgastado e pesadas lentas, arranjou os ralos cabelos prata. Suspirando penetrou na memória que permanecia inabalada. Intacta.
Quando se fora da pequena vila próxima da orla tivera uma razão, os pais partiram em um naufrágio e os irmãos órfãos foram distribuídos pelas famílias que lá veraneavam. A ela coube uma pequena sacola, um sem número de indagações íntimas, um quase não entender os porquês e a partida para a cidade com D. Goreti.Naquela hora era como se partisse de seu próprios sonhos.
Com os anos passando estudou, aproveitando a imensa generosidade de sua protetora, sem nunca esquecer, no entanto seu lugar e as fantasias de menina que ficaram para trás. A vida a conduziu para outro rumo e achava-se cada dia mais perdida de seu amor de infância. Muitos anos e soube que Pedro casara, tivera filhos e a vida qual rio seguiu seu curso. Sua vez de casar e ter filhos também veio. Foi feliz em família, encaminhou os filhos, mas nunca encaminhara o seu secreto querer. Adiara-se. Quase cancelara seu íntimo segredar.
Havia de saber de Pedro.
Depois da viuvez e muitas negociações recuperara a casa que fora de seus pais. Ela havia sido reformada. Seu primeiro gesto fora restaurá-la de modo a fazê-la qual tinha sido na infância. Com a ajuda de fotografias, pesquisas e bons profissionais a casa 12 da Rua das Flores ficou igual. Perfeita. Tornou-se razão da admiração dos transeuntes, tamanha a beleza do trabalho empreendido, mas fazia gosto olhar as cores e formas originais, as flores no jardim, os graciosos portões de ferro trabalhados, os azulejos coloniais, o brasão da família na parede principal os lampiões ornando a frente e acrescentado todo um romantismo e ao final as flores no jardim, das mesmas espécies florais daquela época.
Ficara linda, permanecera fechada enquanto o jardim era cuidadosamente recomposto. Um zeloso guardião cuidava com acuidade de cada detalhe.
Quase um ano depois e ela lá estava, sozinha levando alguns pertences e suas regressas lembranças. Nenhum morador dos arredores a conhecia ou reconhecia, era tudo muito igual na arquitetura, paisagismo, mas as pessoas muito diferentes.
Ele acaso estaria vivo?
Nada, nada sabia, seus parentes tinham mudado de lá. Era quase impossível, mas não podia recusar um pedido que viera daquele velho e esperançoso coração. Ele a conduzira para lá. E lá pretendia findar seus dias. A doença que lhe fora anunciada era degenerativa e sem volta. Mas se sentia bem. Só em estar de volta renovava algo em seu olhar.Não fazia aquilo por Pedro. Era por ela que tinha suplantado dificuldades, estranhamentos e opiniões que divergiam do seu querer.
Naquela janela diariamente estaria. Lá no alpendre em sua cadeira preguiçosa lia seus velhos livros, tecia suas artes em tricô e crochê, rascunhava as flores do jardim em algumas telas, caminhava na orla ao amanhecer. Ao fim da tarde punha-se na janela.
Seu tempo seria pouco, porém útil e calmo, suas dores de certo amenizariam, as físicas e as emocionais. O mundo lhe seria melhor, agora trocava com ele generosidades. Sua breve vida teria mais sabor, se um dia desses, qualquer dia visse Pedro passando.
Tinha certeza, o reconheceria. Seus olhos jamais se enganariam, sua intuição lhe dizia. E dizia tanto que ali estava ela.
Seria mesmo um intuir?
Ou a voz, a fala da experiência?
Eu aqui de fora, arrisco numa palavrinha pequena, um sentimento agigantado que habita nossos corações e dispensa palavras.