Conto do moço morto

Para Raphael Araújo

Sabe, um dia eu o vi passar. Senti ele passar pesado porque ele passava pesado, pesadíssimo, pesadérrimo. Eram passos simples de quem estava decidido, estava com a resposta certa, a questão e a resposta concluídas. Mas era um passar pesado.

Ele olhava o relógio e o céu, e a rua... tentei me colocar no lugar dele, mas não me imaginava de forma alguma com aquele pesar de certeza. E ele ia indo, e eu indo, e ele ia indo, e eu indo, mas ele ia andando, e eu indo observando... ele dobrou a esquina e minha cabeça maquinava hipóteses, teorias e revoluções sobre o-que-é-andar-pesado-de-certeza.

Curto, mas intenso... foi assim o barulho, uns 5 minutos depois.

E então eu pensava que um dia eu pensei naquela certeza do pesar, com força e certeza tanta que era forte e certa que um dia acabei pensando e me dei o direito de ter medo e não continuar a pesar. E decidi policiar tanto, medrar tanto, recalque pobre, que acabei esquecendo das minhas certezas. Daquelas, ao menos.

Um dia conheci um cara. No meu contexto histórico, conhecer um cara estava sendo conhecer mais um. E eu tinha cansado de conhecer mais um, mais um: cansei de ser mais um. E então, passei a não conhecer mais ninguém, apenas deitando com um monte de desconhecidos (certa vez arranquei uma gargalhada de um estranho, que após gozar me perguntou o nome, disse “qualquer um”), mas conheci um cara. E conhecer um cara era uma novidade.

Por meses esqueci o que era conhecer um cara, o que me deixou esquecido de como me proteger de conhecer caras, mas conheci um cara. E ele me envolvia os cabelos, os lábios, as palavras, os braços... algo me dizia estranho que ele era estranho porque ele não sabia abraçar. Sentia uma coisa nele com aquela falta de abraço dado com vontade, uma falta de se dar, uma falta de carinho, uma falta de tato que eu tanto me... comecei todo a sacudir e transbordar o que nele faltava, dando e ensinando como quem repara uma porra de um liquidificador de sentimentos quebrados. Sabe o que é? Uma porra de um liquidificador de sentimentos é onde processamos em micropartículas emocionais, mais digestas, para uma pessoa comum aprender a sentir e então, gostar, e então, se dar, e então se dando, amar, e amando, ser estranho, mas digno. Ou seja, não é nada, teoria pra sentimento? Sou uma porra de um liquidificador de sentimentos sem utilidade, e não tem diferença se quebrar ou se não tiver utilidade.

Enfim, aquele abraço mal dado era compensado por beijos, muitos. Mas não eram beijos sinceros, pensei, às vezes não havia língua. A língua, o componente que ninguém vê num beijo de duas bocas, mas que trabalha fundamentamente na transmissão de gostos e sensações... a língua, comunicação dos corpos, como não ter língua? Que Abuso!

Mas eu estava conhecendo, sabia nome, idade, onde morava, com quem, que fazia da vida, qual e tal... conhecer, se abrir de frente e de costas, e eu me abri de costas, me abri o dorso e a bunda, ele aceitou, mas não aprendia as coisas que eu dizia, ou se aprendia, desaprendia logo, por querer ou não saber prender consigo. Ele aceitou, mas não me aceitou, afinal, entendi porque não sabia abraçar.

E vaguei por aí, pensando, pedindo ou mendigando respostas... pedia próximo de horas e dias favoráveis coisas coisadas de coisar com coisos ou pedia companhia, porque admitir pedir companhia às vezes é coisar tanto por orgulho que ninguém entende, mas ele entendia e não respondia...

E divaguei subindo, divaguei descendo, tanto morro, tanta rua, vila, avenida e eu lá vagava e divagava, questões vinham e iam e vinham e iam, caralho, quanta questão eu via ir e vir e a porra do cara não me entendia, se entendia, não respondia... comecei a achar tão foda-se, tão merde-se, tão cole-se, embrulhe-se e jogue-se que eu me colei, embrulhei e me joguei no chão do quarto aos prantos, porque reencontrei meu pesar.

“amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada”, ela me dizia, “que tudo o que eu ofereço é meu calor, meu endereço”, ela me alfinetava, então troquei a música, “não te vejo e não te escuto, meu samba está de luto”, trocava, “essa pele de criança, essa rima pra esperança, tão antiga e nova”, troquei de novo, quanta gente sem minhas respostas; “você não sabe, mas é que eu tenho as cicatrizes que a vida fez... e tenho medo, de fazer planos de tentar e sofrer outra vez”...

Parei nela... acho que o diálogo começou. Senti um deglutir denso, meio viscoso, parecia catarro, mas era medo: alguém me entendia? Ou coisa minha?

Mas segui em frente, tinha vontade de seguir... e eu vi o que me esperava. Relembrei daquele andar firme, relembrei minhas questões e minha resposta.

Perguntei tanto pra vida: “se todos nós existimos para o amor, por que algumas pessoas simplesmente não o conhecem?”

A vida me responde sempre que algumas vezes, algumas pessoas enxergam muito e sentem pouco.

Segui adiante, tomei um banho, a roupa no corpo, um pouco de perfume e um pouco de música, subi a ladeira para ir a qualquer lugar. E uma música linda começou a tocar, e eu comecei a sentir uma purificação daquela coisa do pessimismo, uma coisa meio-esperança-meio-inocência, parecia que estavam me preparando para algo, e o refrão grudava no ouvindo e no coração, o sorriso ia abrindo, meu passo ia ficando mais lento, porém mais firme, “baby, it’s been a long time waiting”, algo brilhava, “such a long, long time, and I can’t stop smiling”, e eu começava a sorrir e sentir meu passo firme, tal como daquele cara, sabe?

Sabe? Aquele cara do começo... nossa, entendi, ele estava sentindo aquilo? Comecei a indagar sobre aquilo e eu sentia aquilo, aquilo era amor, era alguém indo em busca do amor... e subindo a ladeira, eu sorrindo, o brilho na alma, o olhar tão encantado olhando o céu, eu no meio da rua, passo lento e firme, indo em busca do amor... “Do you hear my heart beating? Oh, can you hear that sound?” , começava a notar as pessoas, alguém tinha que ouvir aquela voz dentro de mim gritando, esperneando pedindo atenção, sei lá o que era... “and then I looked up at the sun and saw the sky, and the way…” ,

Eu, maravilhado com as coisas que ouvi, comecei a olhar ao redor com um pouco de seriedade, pressenti que o mundo conspirava de repente, havia uma seriedade no som, no ar, na luz. O brilho foi tão brilho que me ofuscou, foi só um solavanco, sabe? Só um, arremessei uns 10 metros contra a parede, o caminhão desgovernou após o impacto e entrou em uma casa na descida da ladeira, as pessoas me olhavam, eu tremia muito, de dor e de amor, de emoção também, me notaram, me notaram, pensava contente, sangrava muito, o barulho do golpe foi seco, curto e intenso, me lembrei do cara na esquina que eu perdi de vista, a música terminava, “and the way that gravity pulls on you and I, On you and I”, enquanto eu terminava também.