A Lenda Pássara

Era o outono no começo. Lua cheia... Noite clara... Sossegada... Beira mar...

O acaso quis a praia quase vazia, não desejava muitas testemunhas, antevendo a lenda.

A apresentação das criaturas foi breve, mas definitiva. Imediatamente, entrelaçaram-se as fibras, do ventre, do estômago, do coração. A conexão foi perfeita, intensa.

Discretamente foram se aproximando e se afastando do grupo humano. Sem dar por isso, foram subindo, subindo involutariamente, ao mesmo tempo em que interceptavam as vibrações um do outro... A linguagem era a da pele. Usaram poucas palavras, para não estragar o assustador que acontecia. Algumas horas juntos e já se sabiam com nitidez, com veracidade, com voracidade. As auras saudavam-se, brincavam alegremente com as cores, daquilo que acabara de se reconhecer.

Foi espontâneo, irracional, inevitável.

Lá no alto, afastados dos pensamentos da aldeia, subitamente perceberam-se pássaros... Com naturalidade voaram lado a lado sobre o encanto do mar noturno, pela primeira vez. Não se classificaram como mutantes. Eram idênticos, espelhavam-se. Não perderam a lembrança da condição humana, sabiam que teriam que voltar, antes que a noite acabasse. Antes que o grupo se dispersasse. Antes que soasse o alarme.

Apesar de estupefatos, estavam tranquilos, pois intuíam que estava escrito, que aquilo se repetisse. De novo se encontrariam e o “improvável” teria continuidade.

Voltaram discretamente para o grupo. Ninguém havia percebido coisa alguma.

Tiveram reações diferentes: o mais novo, mais inseguro, ergueu muros pra se prender, porém baixos o suficiente para serem transpostos sempre que a urgência se evidenciasse.

O mais velho escondia-se na encosta da montanha. Precisava identificar o que estava acontecendo. Enquanto isso tentava, a todo custo, voar tão alto quanto naquela noite, sem conseguir. Era como se tivesse um peso, uma rede invisível que não o permitia naquela altitude. Decidiu afastar-se do povoado sem chamar muita atenção, pois sabia que, de alguma maneira, nunca mais se encaixaria. Enquanto isso, dedicou-se a aprimorar os vôos rasteiros, implantando abusadas coreografias, com a intenção de, algum dia, poder mostrar aos outros o leque de possibilidades que, a todos, a Criação comtemplou. Além do que, de alguma forma, alçaria ao lugar do primeiro encontro. Era sua única certeza.

O mais novo tomou rumo diverso. Sentia-se culpado, excluído, foragido, perseguido, por essa estranha e inebriante sensação desde aquela lua, que - pudera ! - estava gigantescamente cheia.

Nunca havia desfrutado de uma “viagem” assim, e já experimentara múltiplos alucinógenos, mas nada sequer comparável ao vôo, à identidade pássara.

Temia o outro. Temia ser abandonado lá em cima. Temia espatifar-se no asfalto negro da ignorância humana que certamente o assolaria, imediatamente após a queda. Não podia arriscar. Tratou de se infiltrar em tantos grupos quanto lhe foi possível. Precisava realicerçar sua condição humana tão abalada desde então.

Ia à praia, à noite, escondido para se lembrar, para reviver o que nunca mais haveria de se repetir. Vez por outra, não resistia e sucumbia à vontade de ir à montanha rever o objeto de sua enorme confusão. Algumas vezes levantavam vôo, contornavam a baía, atendendo aos apelos de sua natureza mais íntima, revelando-se sobre o mar. Voltava logo, assustado, visivelmente alterado, A aldeia não se incomodava com seu comportamento, pois o tinha como um desajustado. Era só mais uma fase má, acreditavam as mentes céticas e concretas.

O mais velho a tudo assistia, sem poder agir, a não ser tentar semear e espalhar pelo ar a energia necessária, para ao outro encorajar. Tinha como aliados alguns elementais, fiéis depositários do seu intento. Muitas vezes, pensou em desistir, em voltar a ser apenas humano, mas era caminho sem volta. Então se escondia e sofria. Implorava ao universo uma saída, nem que fosse a derradeira. Invocou sua morte, até tê-la por companheira, confidente. Passou a viver cada dia como se fosse o último. Conversava com os jovens, supostamente interessados em sua teoria, que intimamente, ele estava seguro de sua aplicabilidade. Talvez houvesse alguma falha na execução, no acabamento, mas a base tinha que estar correta.

O mais novo batia a cabeça nos seus próprios muros, sangrava os pulsos e progressivamente ia perdendo aderência ao chão. Deu voltas mentais inteiras pelo planeta, tentando encontrar uma solução, sempre desaguando em desilusão. Mesmo sem intenção explícita, cada vez mais inclinava-se em direção ao companheiro aéreo, a princípio inconscientemente, depois ...

No outono seguinte tomou a decisão : iria aproximar-se devagar, sondar o caminho, analisar os atalhos, uma sua característica, testaria todos os itens à exaustão. Isso porque nada lhe parecia exatamente real. A situação talvez o surpreendesse negativamente, o desapontamento o visitasse e o sonho desaguasse em pesadelo. Todos esses riscos eram mais que visíveis.

O mais velho entendeu o jogo e aceitou. Submeteu-se a todos os testes, alguns cruéis, todos descabidos. Já se acostumara à mórbida curiosidade alheia. Sentia-se como uma atração circense; de luxo, mas do picadeiro... Tinha consciência que muito pouca gernte, levava-o realmente a sério. Todos deslumbravam-se com seus discursos, mas acreditavam ser impraticáveis. Ele entendeu que havia chegado o momento de provar na sua pele de forma indubitável, o que acreditava. Talvez, fosse esse o seu papel... E isso o agradava.

Vivia na mais compacta solidão humana e, a ela, já se conformara, até a bendita noite, até essa nova possível e magnífica oportunidade.

O mais novo conversava sobre o outro com as pessoas e todos diziam: “Ah, que pessoa boa , né? ... Mas é meio esquisito , não acha???...” Ninguém falava claramente mal, mas também ninguém o animava.

Fugiu por muitas madrugadas, atolando-se em álcool no vazio, nas fachadas, nas calçadas... Mas, naquele segundo março, algo dentro dele havia se movido, estava diferente, numa nova configuração. Amadurecera e alguns vislumbres do “todo” percebera, por isso havia decidido investir mais nessa loucura. Adorava um desafio, viver por um fio e acendeu o pavio!

Na outra extremidade o outro estava cansado demais do esperar, de ter que voar baixo, de se esconder na montanha. Havia o receio de apostar de novo e tudo perder ...Mas, nada mais havia a perder... Nunca houvera... Resolveu embarcar no jogo. Aconselhou-se com os encantados e pacientemente aguardou ...

A chama foi reacendendo bem lentamente, com calma, prudência e constância. Em algumas semanas brilhava alta. Quase não dava mais pra esconder, muito menos esquecer. Alguns aldeões perceberam e apostaram no desastre, na tragédia. Até porque era o cenário que parecia estar se desenhando.

Mas as circunstâncias ao redor de ambos conspiraram enfaticamente, pressionando os pontos nevrálgicos, cercando-os de infortúnios, povoando-os com dissabores, multifacetando as frustrações, minando as resistências. Tudo, simultaneamente, em algébrica sintonia, com a precisão dos mecanismos universais.

Subitamente pararam de se encontrar... O mais novo perdeu as forças, estava submerso aos seus, encarcerado em sua própria infelicidade.

Contam, que foi por causa de uma frente fria vinda do oceano, com ventania, muitas nuvens e uma estranha e inconsolável chuva, que o novinho cresceu, escapou, respirou fundo e dirigiu-se resolutamente à montanha. Encontrou o outro sucumbindo. Estava tão fraco que demorou a vê-lo no penhasco. Precisou chegar bem perto para reconhecer e entender. Havia chegado o momento do inconcebível afeto.

Não os separava mais o deserto.

Imediatamente uma névoa encobriu a montanha em cumplicidade ao segredo.

As fibras que os uniam, iluminaram-se e se encurtaram, aproximando-os sem ensaio algum. Todos os seus vórtices acordaram e giraram. Havia uma usina de energia no ar. A natureza comparecia, fazendo sua parte.

Olharam-se profundamente,

Demoradamanete,

Emocionadamente.

Reconheceram-se uma vez mais, deram-se as mãos e subiram... Subiram... Subiram tanto que se fundiram. Não se sabe de onde apareceu uma dúzia de aves brancas etéreas, pairando a uma distância segura., Ilustravam a cena.

A montanha clareou, a aldeia acordou e pasmou. Não distinguiam se eram dois ou um naquele esplêndido vôo: o mais perfeito que já se ousou.

Não se sabe quanto tempo passou... Dizem até que parou ...

Lentamente as pessoas foram voltando para suas casas, para o sono. Apenas os invisíveis comemoravam. Mas a aldeia já não era a mesma. Tudo adquirira um novo sentido, muito maior.

Na manhã seguinte, da mais espetacular história, não havia memória. Como num acordo mudo, nada se falou, nem se comentou.

Passaram-se meses, até que um ancião recordou na íntegra o acontecimento, quebrando o involuntário silêncio.

As pessoas desandaram a recontar como se tivesse acabado de acontecer. A princípio, à boca pequena, depois a lembrança foi tomando de assalto, até não existir outro assunto. E quanto mais conversavam, melhor se sentiam. Principiaram, então, a se desfazer de seus inúteis fardos e máscaras, Foram ficando mais leves ... !

Dos dois pássaros nada mais se soube. A última e marcante imagem foi a dos dois sobrevoando o oceano como se fossem um, até dispararem verticalmente em direção ao céu. Ficaram indistinguíveis e, finalmente, desapareceram.

Conta-se que continuam voando juntos em desconhecida dimensão.

Claudio Poeta
Enviado por Claudio Poeta em 18/09/2009
Código do texto: T1816932