OUTRAS GUERRAS

“O amor é a arte do equilíbrio entre o perene e o eterno”

Nunca entendi esse olhar negro e, apesar de tantos anos passados, creio que nunca o irei entender.

As leituras que fiz dele, eram “psicológicas”, como tu mo disseste, quando te confrontei com todos os meus livros de psicologia, onde era suposto aprender o mundo, mas onde não era suposto o mundo perder-me. E foi o que esteve quase a acontecer...A mania de ler comportamentos baseados na minha experiência de vida adquiri-a mal comecei a ter alguma experiência sensorial, mas o hábito de os ler baseado em livros técnicos esse adquirira-o quando entrara para a universidade - Isso de se entrar num café, e desatar a observar toda a gente, e tentar reflecti-las nas páginas de estudo...Rica figura. Numa rápida introspecção observava-me a mim mesmo, no canto mais central, qual panóptico, onde a multidão sentada era fuzilada pelas teorias que me tinham enfiado pelas meninges abaixo, enquanto estava falsamente imerso numa revista politicamente correcta, isto é, nada mundana (havia que cuidar da imagem...) mas intelectualmente discreta (tipo Super-Interessante) para não levantar suspeitas do meu disfarce de “Sherlock Holmes” da mente.

E era quase sempre assim: Ao fim de algumas horas o trabalho de campo revelava-se proveitoso, já que tinha material suficiente para debater nas aulas. A coisa em si constituía uma parvoíce, mas os mestres gostavam, apreciando a dedicação extracurricular que me faltava na hora da verdade, isto é, dos exames…

Cheguei mesmo ao ponto extremo do vício.

Primeiro na rua, depois em casa, transformei-me num verdadeiro inquisidor sem palavras nem julgamento, apenas o fazendo na mente, onde naturalmente eu estava à margem, era intocável, ignorando o espelho forçado da minha consciência. Apesar dos dissabores desta atitude (os comportamentos que julgava previsíveis entre amigos ou conhecidos muitas vezes adquiriam caminhos que nunca imaginara), nada parou a mania. Nem mesmo quando fui a tribunal (pela recusa do pagamento duma multa considerada por mim injusta), ganhei a terreneidade. Olhei o juiz de baixo, mas, num “flash”, fotografei-o de tal ordem que o seu B.I ao pé da minha informação parecia um cartão de liceu comparado com qualquer base de dados de um serviço de informações que se preze -Marrão da turma, num altura em que as médias de entrada para a universidade ainda estavam altas, sofreu infernos às mãos dos cábulas mesmo depois de franqueadas as portas da faculdade, sendo desprezado, até concluir o curso com a excelente média dos dedicados. Pouco dado às coisas mundanas da sociabilidade, casara com a primeira que lhe farejou o futuro, tivera dois filhos e adquirira a estabilidade afectiva dos instáveis e frágeis, isto é, não lutara por ela, começando a entrar em pânico na altura dos primeiros cabelos brancos, e estimando a sua providencial e semi-amada esposa pela cama dada e afectos nunca claramente entendidos. Ela entretanto fartara-se do marrão, não arranjara emprego, mas sim um amante que compensava as longas noites do marido em busca da jurisprudência. Ele desconfiava, mas confiava na estabilidade aparente. O chegar a casa e ter alguém ao seu lado, era tudo o que lhe interessava a preencher o vazio afectivo que a idade ameaçava. Tornado amargo pelas causas e por ela, perdera o tino do direito julgando assim consoante as suas recordações e reminiscências. As semelhanças entre as caras dos arguidos e as que tinha dentro de si, constituíam o principal factor de culpabilidade ou de inocência. Como eu tinha cara de “gajo porreiro”, (dos tais que, mais batidos nestas coisas da vida gostaram do antipático marrão e lhe procuraram dar a mão) certamente estaria entre alguém que compreenderia a situação... Por isso julguei oportuno falar-lhe de igual para igual, com alguma sobranceria e condescendência à mistura, desprezando o “coitado do agente”, (tipos com a pinta dele certamente que tinham humilhado o juiz nos bancos de escola...) cujo excesso de zelo impedira-o de ver a minha razão.

O agravamento da multa e um raspanete público mostrou a não linearidade dessa razão. Era ele que a tinha e nada havia a dizer.

Jurando a todos os anjinhos e mestres que ambos ainda iriam cair no meu consultório, adquiri o antropocentrismo perdido por momentos, e reportei-os para o futuro próximo onde teria parte das suas mentes no meu divã.

Só quando te conheci compreendi até que ponto a minha ciência errara. O teu sofrimento, sem dúvida que lá estava, mas a sua profundidade extravasava-a.

Calada de início, com o tempo acabas-te por telegrafar parte da verdade que te ocupava o espírito, e te impedia de poderes transmitir de forma mais homogénea e de assim te aproximaras dum mundo ao qual te fecharas pelas dores que o anterior te deixara.

Foi numa noite de copos, igual a tantas outras, em que começámos a falar por mero acaso, devendo-te eu ter tocado em qualquer corda mais sensível com as minhas palavras pois ao longo dessa noite, hoje inesquecível, começas-te a desfiar o teu triste fado a espaços, entre lágrimas e copos soluças-te vires das cinzas da tua terra, onde uma guerra apagara os traços físicos do teu passado, e também aquilo que lá te tinham feito e que lá fizeras. Quando começara a ter pena de ti, com dureza disseste-me “nunca haver totalmente inocentes numa guerra”. Embora estivesse longe de concordar, o olhar não admitiu uma contra-resposta. Contaste-me mais tarde que tinhas sido vítima e culpada, e eu calei-me por adivinhar o que te tinham feito, e a tua terrível reacção.

Embora resistisse a todo o custo à típica avaliação, quando a fiz nada consegui. Se fosses doente, diria que tinhas personalidade dupla, entrando em regimes disfuncionais e dicotómicos, cada vez que achavas oportuno. Mas as coisas estavam bem longe de serem assim. Nesse mesmo olhar conseguia ver a mulher quase ideal (como o ideal não existe, desculpa, mas tinha que te acrescentar o “quase”...), mas também um monstro que estava longe de querer em casa. Mas acabei por o fazer, entrando na confusão eticamente evitável dos registos, onde misturei arbitrariamente transferências com contra-transferências e, apesar de não o ser, transformei-me no teu técnico, enquanto sabia frequentares um colega e amigo meu, ao qual te tinha recomendado. Amava-te, por isso recusei tratar-te.

Possivelmente cometi um erro, mas se não o fizesse arriscava-me a perder-te. Optei pelo mal menor, ficando contigo, esperando que o monstro se desvanecesse nos meses que entretanto tinham passado por nós juntos.

Numa perspectiva mais racional, diria que terias sido mais útil como utente, e menos prejudicial, mas deixara a frieza de lado, amando-te e estando disposto a aceitar todas as tuas dores e as que me pusesses importar. Apesar da tua sobriedade (pois era raro falares no passado), era nas noites a dois que transparecias o horror. Quase nunca falavas da tua terra, dessa zona negra que constituía o passado, mas infelizmente olhavas-me com olhos que nunca pensei transportarem tanto sofrimento, deixando transparecer todo o terror, não mo contando por palavras, mas deixando-o perceber na fragilidade desses olhos, obstinadamente recusando-se a chorar, mas que secos sublimavam muitos litros de água.

Tentei sempre respeitar-te, contive-me ao máximo, mas ante tamanho sofrimento, era impossível. Quis saber todas as razões, os motivos dessa dor, para diminuir o enorme fosso cavado entre nós pelo segredo, até esse mesmo olhar transmitir parte da raiva, e ensinando-me a ter medo.

A dor era o motivo da tua perturbação, mas também o teu maior tesouro, por isso conservei as dúvidas em mim, embora tu mas adivinhasses no meu olhar que nunca abandonara a curiosidade antiga.

No pouco que dizias confessas-te odiar a terra, e tudo o resto a ela associada, mas, mal houve um ano de paz fabricada pela política mundial e não pela vontade dos povos locais, cais-te na tentação da partida. Dias depois o inferno recomeçara, e as fronteiras fecharam-se com a mesma vontade com que se tinham aberto e contigo dentro delas. Dei comigo a fazer o impossível para alguém pouco aventureiro como eu, dei comigo a pular inúmeras barreiras burocráticas, a viajar desesperadamente para uma zona de guerra, dei comigo a convencer as sucessivas barreiras da ONU e as milicianas, com papeis e autorizações mais do que suficientes no resto do mundo, mas não ali. Nesse antigo país onde se massacrava mais ou menos clandestinamente, a polícia do mundo fechara as portas, considerando-o “Zona de Guerra”, enquanto os políticos da paz falhada, ameaçavam com infernos aéreos ambas as partes. As reuniões duraram dias, e os aviões não paravam de chegar um pouco de toda a Europa às bases perto do conflito, de onde descolariam para fazer a sua justiça.

Quando meia-dúzia de mísseis e bombas foi lançado sobre sucata e alguns alvos militares, ambas as partes chegaram a acordo, e eu por fim consegui chegar à tua cidade. Alguém reconheceu o teu rosto numa fotografia, e assim me levaram a reconhecer o muro onde tinhas desaparecido. Havia imenso sangue seco no chão, cartuchos e as marcas de balas do costume.

Ninguém me deu a certeza absoluta, mas neste tipo de coisas nunca há testemunhas. Desapareceras apenas. Podias estar perdida noutro sector, podias já estar noutro país, a seduzires outros homens com a tua dor, podias ter morrido.

Ao regressar, com as poucas fotografias que me deixaram tirar (e nas quais tentaria rever e compreender-te, na esperança que, ante a visão do teu inferno as coisas se tornassem mais claras para mim) passei definitivamente a deixar de ter certezas.

Passaram mais alguns anos, a porcaria da guerra acabava e recomeçava consoante as vontades dos senhores de sempre, e eu comecei finalmente a habituar-me ao nosso fim.

Até que numa noite tocou o meu telemóvel e a tua voz anunciou que irias voltar.

Claro, tinha de te aceitar, nunca deixara de gostar de ti, pelo contrário, e agora, mudado o suficiente para te compreender melhor, aguardei o reencontro com expectativa.

Mas voltas-te para morrer, e não para viver comigo. Prematuramente envelhecida, quiseste por fim falar, mas eu recusei. Sabia que pretendias o exorcismo dos moribundos, mas isso iria de novo lançar-te nas minhas lacunas da tua vida, preenchendo-as, mas com esse preenchimento, iríamos ambos sofrer demasiado. Havia limites para tudo, e eu preferia adivinhar o horror do que o saber directamente. Preferia assim, para não o transmitir a mais ninguém.

E se calhar foi esta recusa a insuflar o ânimo que te escapava

Viveste mais meia-dúzia de anos, mas afundando-te suavemente cada vez mais, aumentando os períodos de isolamento, mas estando cada vez mais doce e menos feroz. Ainda gerámos uma filha, à qual recusaste um nome no teu dialecto. Pediste-me para jurar, jamais, lhe falar da guerra, da tua, da nossa, para te inventar um belo passado qualquer na minha terra. E eu assim o fiz.

E a vida é de facto estranha...A garota nunca soube de nada, mas, mal pôde, abraçou a carreira médica, e, ao invés de ter juízo, fazendo carreira aqui (e certamente enriquecendo..) partiu para a mesma terra de onde tinhas fugido, em acção humanitária. Está lindíssima: tem o teu olhar negro, mas sem o passado dele, irradia uma espécie de magnetismo, (que me transformou num pai quase demasiado protector para evitar os demasiado assédios dos pretendentes da adolescência...), a postura orgulhosa e segura dos teus vinte e tais anos, e a minha firmeza de outrora, mas sem ser de pavão intelectual, mas sim genuína, fruto da sua personalidade bem vincada.

Volta periodicamente, de vez em quando confusa, pois, episodicamente, há alguém que a confunde com uma familiar à muito falecida, jurando a pés juntos ser ela igualzinha, nos gestos, na voz, no trato...Começa a desconfiar, mas as suas memórias então cheias de ti na minha terra e não ali...

Apesar de conformado, e por fim tranquilo, é na devolução das suas dúvidas que te recordo com mais intensidade.

As perguntas que me deixas-te fazer, mas por mim vetadas, voltam periodicamente, embora não esteja arrependido de ter agido como agi, mas há aquela que fiquei sempre com vontade de fazer, mas que jamais o ousaria...Afinal o que enterras-te naquele terra, que não o mostras-te, e apenas o deixas-te perceber?

Recordo-te hoje com uma saudade que não para de crescer à medida em que caminho para o teu ocaso, com um amor intenso fruto de te ter conhecido amado conturbadamente e perdido demasiado prematuramente.

No sarcasmo das noticias espalhafatosamente optimistas sobre o curso dos diferentes conflitos regionais, prefiro a interioridade, o silêncio, o teu antigo silêncio, o melhor tradutor desse olhar distante, omnipresente, por onde perpassaram coisas demasiado pessoais para serem referidas, algo nada meu, apenas teu, apenas o teu enorme sofrimento, apenas outras guerras.

Vagamente baseado em factos reais

19 de Outubro de 1998, corrigido parcialmente em Setembro de 2001 revisto e aumentado (de maneira a adaptar a novos tempos, novas vivências) em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 16/09/2009
Código do texto: T1813781
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