Paramour - Capitulo III

III

16 de setembro.

Como o universo pode ser tão cruel? Penso bastante nas duas opções de como a vida anda para mim e ambas são estranhamente desesperadoras. Primeira opção, tudo é predestinado. Mesmo as mais absurdas coincidências são obras de algo muito maior que o universo ou qualquer força conhecida. Para mim, isso quer dizer que tal força deve ter um senso de humor distorcido que eu não entendo, porque especialmente nesse dia... só pode ser brincadeira.

Segunda opção, merda acontece. Não existe força alguma e se ela existe, não liga para pessoas insignificantes como eu. As mais absurdas coincidências são apenas isso, absurdas. A conclusão neste caso é ainda pior, pois significa que minha vida é cheia de merda.

Encaixei o telefone na base e permaneci naquela mesma posição por vários segundos. Quando encontrei força de vontade para mover algum músculo, pisquei algumas vezes tentando entrar em sintonia. Bufei e corri até a sala, jogando-me no sofá com uma força desnecessária. Liguei a TV pelo controle e antes mesmo de prestar atenção no que passava, notei que era inútil ficar ali parado. Desliguei tudo muito rápido, peguei a chave e encaixei-a na fechadura, pensativo.

16 de setembro. De todos os 365 dias, por que justamente esse? Por que neste mesmo dia, ano que vem, seria o dia de minha partida para – argh – Londres?

Saí e tranquei a porta com força, furioso. Virei-me e já pulava pelas escadarias de dois em dois degraus, até que, na metade do caminho, percebi que Alice estava subindo em minha direção.

- Oh – exclamou surpresa -, estava fugindo de mim?

Precisei de dois segundos para raciocinar.

Ela parecia entender minha confusão de alguma forma. Sorriu, subiu os degraus que restavam entre nós e beijou-me. Só então acordei.

- Oi! – reclamou, falsamente ofendida.

- Feliz aniversário. – sorri.

Seus olhos brilharam.

- Obrigada. – outro beijo. – Agora sou oficialmente mais velha que você.

- Mas não cresceu um centímetro.

- As baixinhas são as mais bonitas.

- Concordo.

Descemos os degraus restantes abraçados. Olhei para o céu e tremi ao ver que nuvens grandes e opressoras se formavam acima de nossas cabeças. Aparentemente, parte do plano do dia (caminhar por aí) teria de ser adiado.

Merda acontece, certo?

O “plano” na verdade não existia, era apenas algo que organizava em minha cabeça para evitar confusões. Não sei por que fiz isso, afinal, tentar ser organizado era a real causa de minha desorganização.

Às sete horas da noite uma pequena festa ocorrerá na casa dela. Seus pais têm um hábito – para não dizer “vício” – de fazer churrasco em ocasiões assim. Mas não é um vício ruim, pois todos se beneficiam. O ditado "o que não mata, engorda" é bem adequado nesse sentido.

Mas um dia tão especial merece muito mais do que comilança e presentes. Por isso, precisamente à meia-noite, revelarei o “prato principal”. Essa é a grande surpresa que guardo secretamente em meu quarto, mais precisamente, embaixo da cama. Não é um esconderijo exatamente “chique” para algo tão... grande, pelo menos simbolicamente. Mesmo assim, a não ser que Alice converse com baratas, meu segredo está bem guardado.

Era uma hora da tarde, o dia nublado e feio. Sentia como se o céu fosse desabar a qualquer momento.

- É... – Alice começou, olhando para o alto, após ouvir uma trovoada. – Parece que nosso tempo juntos vai ser bem literal.

- Como assim?

- Estou afim de ver um filme com você.

Entendi. Sempre víamos filmes abraçados – literalmente juntos.

- Perfeito. – refleti.

- Falando em “perfeito”, como anda o prato principal?

- Está bem seguro em algum lugar.

- Na geladeira? – brincou.

- Não... – desviei o assunto rápido. – Se me lembro bem, eu disse que ia adiantar a sobremesa.

- Disse.

Olhei para a rua.

- Já que um passeio está fora dos planos... – comentei, desprezando a última palavra. – Acho que vou adiantar essa parte para agora.

- Sério?! – exclamou, talvez alto demais.

- Sim. – ri de sua reação. – Agora.

Ela gemeu histérica de felicidade. Como era fácil animá-la, pensei, e como eu adorava fazer isso o tempo todo.

Para minhas eventuais surpresas que se revelariam nesse dia, apenas uma, a última, era especialmente preocupante. Se Alice viesse numa caixa, aposto que nela estaria escrito em letras garrafais “CUIDADO! ALTAMENTE IMPREVISÍVEL!” Ou algo assim... Mas não estava com medo de sua reação, apenas naturalmente nervoso. Creio que todo rapaz fique assim nessas horas emocionantes.

- Fique aqui, vou lá pegar. – disse-lhe.

- Volte rápido. – respondeu e beijou-me.

Subi as escadas numa velocidade incrível e abri a porta, deixando-a aberta depois que passei. Sabia exatamente onde estava a tal sobremesa, tão trabalhosa que foi de terminá-la. Optei por presentes bastante pessoais, era o mínimo que eu podia oferecê-la. No armário pequeno do meu quarto, abri a última gaveta e puxei-a para fora, deixando um buraco que escondia o embrulho cuidadosamente ajeitado por mim mesmo. Era vermelho, coberto de um papel mais fino e transparente rosa. Estiquei o braço para alcançá-lo lá embaixo. Recoloquei a gaveta e saí rápido, voltando pela porta que havia deixado escancarada.

Nas escadas, parei por um segundo, ofegante. O coração estava batendo rápido – tive uma descarga de adrenalina tão forte que mal percebi. Respirei fundo algumas vezes e mais uma vez, olhei para o embrulho. Mais ou menos pesado, quem apertava poderia pensar que era um livro.

Risos. Era mesmo um livro - o livro que escrevi para ela.

Definitivamente um presente interessante. Passei aproximadamente dois anos trabalhando nele, o que resultou num conto grandinho de 50 páginas. A história de nosso amor, basicamente, que comecei a rabiscar em Tramandái, na mesma semana que nos conhecemos. Não sei como consegui esconder dela por tanto tempo, mas valeu todo e qualquer esforço.

Suponho que sua reação será engraçada. Hilária.

Desci os últimos degraus e entrei pela porta decidido. Alice esperava apoiada no balcão, batendo o pé no chão.

- Demorou! – exclamou ansiosa.

- Perdão. – sorri. – Aqui, espero que goste.

Seus olhos brilharam ao ver o pacote bonito.

- Adorei o pacote. – brincou, ainda um tanto histérica.

Entreguei-lhe finalmente o embrulho. Ela depositou-o no balcão, abrindo-o com cuidado como se fosse algo muito frágil. Quando tirou o nó do laço e enfiou a mão dentro, soltou um gritinho agudo de felicidade.

- Um livro! – quase pulou.

- Sim, um livro.

- Obrigado. – abraçou-me de repente com muita força.

- Você nem viu qual é o autor. – lembrei.

Só então ela parou para ler a capa. Seus olhos se arregalaram de surpresa, ela ficou boquiaberta. Talvez eu já soubesse que causaria algo parecido – lembro bem do dia que fui na gráfica e pedi para que imprimissem na capa a foto dela que eu tinha, no meu quarto, em um porta-retrato. A mesma foto que me serviu de memória mais forte, pois a bati no dia que parti de volta para Araranguá depois daqueles três maravilhosos dias em Tramandaí, onde tudo começou. Se eu quase chorei ao pensar nisso, imagino ela.

Não me surpreendeu quando me abraçou com os olhos lacrimejando.

Não disse nada, entreguei-me também ao abraço, esperando que ela se “recuperasse” – algo que não demorara muito. Alice tem mudanças de espírito bem visíveis, e raramente, eram de bom para ruim ou vice-versa. Geralmente vão de muito bom para bom ou vice-versa.

Mais uma vez lembrei-me do último presente, ainda sem idéia de qual seria sua reação.

- Eu te amo. – sussurrou em meu ouvido.

- Também te amo.

Alice fungou e soltou gentilmente o abraço. Olhou em meus olhos.

- Você também chorou. – ela zombou, apontando para mim.

Passei a mão no rosto e só então percebi uma lágrima silenciosa. Fiz uma careta. Nem percebi.

- Muito obrigado mesmo, não sabe o quanto isso significa para mim. – ela continuou, e percebeu que também funguei. – Pare de chorar, parece uma menina.

- Noventa por cento.

- Claro. – zombou.

- Vocês são incríveis. - minha mãe comentou do outro lado do balcão, e todos rimos da situação. Até um cliente que estava ali parou para olhar.

O tempo não melhorou com o passar das horas, apenas piorou. As nuvens ficaram maiores e densas, e as trovoadas soavam mais freqüentes. Alice insistiu em usar o tempo ruim como desculpa para ver um filme de terror.

- De terror? Tem certeza? – questionei.

- Sim. – assentiu. – O que quer dizer com “tem certeza”?

- Da última vez que vimos um terror, era à tarde, o filme era ruim, e você não conseguiu ir ao banheiro sozinha.

Ela gargalhou, rindo de si mesma.

- Não percebeu que só quero uma desculpa pra ficar com você? – disse-me.

- A desculpa pode ser um filme de comédia ou... um desenho animado?

Alice que bateu de leve com a capa do filme que queria.

- Por favor? - fez cara de cachorrinho carente.

Limitei-me a sorrir. Se é isso que quer, quem sou eu para negar?

Escolher um filme bom, dessa vez, foi uma tarefa mais fácil, pois no meio de semana os lançamentos geralmente aguardam para serem liquidados na sexta ou no sábado. Encontramos um que era como um documentário, filmado como se fosse uma reportagem real. Sua participação em festivais e prêmio de melhor atriz convenceu-me a pegá-lo. Parecia tratar de zumbis, tema bastante gasto no mundo do terror, mas mesmo assim prendeu minha atenção.

Ainda estava claro, mais ou menos quatro horas da tarde, não era uma boa hora para um filme (de terror) ainda. Então tentamos pensar em algo para ocupar mais algumas horas.

Conversávamos sobre nada de importante mais uma vez, abraçados no sofá da sala, ignorando o que quer que passasse na TV.

Uma trovoada forte fez a mesa de vidro vibrar.

- Caramba. – ela disse. – Odeio isso.

- Medo? – desafiei.

- Um pouco.

Mordi o lábio para não rir.

- Vou deixar você sozinha por um momento. - provoquei. – Vou lá pegar algo para comer na cozinha. Você também quer?

- Aham, mas nem sonhando que vou ficar sozinha aqui. Esse lugar tem muitas portas, é meio assustador.

Levantei e caminhei com pressa até a geladeira, procurando os doces – principalmente os brigadeiros – preparados mais cedo. Enquanto depositava a tigela larga e fria na mesa, outro tremor seguido de um som estridente percorreu a casa. Foi mais forte que o anterior. Experimentei uma das bolinhas de chocolate, arrepiando-me ao sentir o sabor.

Alice estava grudada em mim.

- Não ria. – disse-me, séria, mas com um meio sorriso.

Ignorei-a, rindo alto, com a boca cheia. O fato de Alice ainda ter medo de temporais nunca vai perder a graça - e isso é meio cruel da minha parte.

- Docinho? – ofereci.

- Vai me chamar assim agora? – brincou, aceitando o brigadeiro.

Voltamos para a sala, dessa vez mastigando mais e conversando menos. A chuva na rua ficava mais intensa a cada minuto.

Alice murmurou alguma coisa que não entendi.

- Que foi?

- Belo dia. – suspirou olhando para a janela, e continuou. – Eu estava pensando... será que um dia vamos...

Ela parou, hesitante.

- Sim...? – insisti.

-... nos casar?

A pergunta não chegou a me pegar desprevenido, mas foi uma surpresa. Estive pensando muito sobre o assunto nos últimos dias. Um laço matrimonial não era extremamente ou urgentemente necessário para mim, mas parecia importante de alguma forma, como se fosse um ponto final. Não que houvesse qualquer dúvida sobre meu amor – estava duzentos por cento convencido de que Alice era para sempre.

Ironicamente, nunca havia me perguntado se ela pensava o mesmo de mim. Quantas outras vezes me olhei no espelho e não entendia (ainda não entendo) como Alice, um anjo, fora se apaixonar por mim.

- Você já pensou nisso alguma vez? – perguntou mais uma vez, tentando soar indiferente.

- Várias vezes... por que pergunta? – questionei cauteloso.

- Só passou pela minha cabeça agora. – falou baixinho. – Nunca parei para pensar, apesar de já ter minhas certezas.

Lembrei de minhas constatações sobre o universo mais cedo, por Alice trazer o assunto à tona justamente hoje.

- É... – suspirei. – Mas acho que não devemos nos preocupar com isso tão cedo.

Revirei os olhos, ignorando a ironia em minha frase.

- Concordo. – Alice sossegou.

- Ei... – chamei sua atenção, encontrando seu olhar. Era a hora de mais uma surpresa. – Não esqueceu que ainda tem o petisco?

Ela demorou a entender.

- Achei que o petisco fosse a revista da semana passada.

- Não, não. Não sou tão mão-de-vaca.

- Hmmm... – refletiu por um momento. – O que você aprontou então?

- Espere. – levantei e quase corri em direção a meu quarto mais uma vez. Só então percebi que havia deixado-a sozinha, mas bem, ela vai sobreviver.

Enquanto abri a gaveta do criado mudo, já sabendo o que procurar. Alice comentou da sala:

- Tem certeza que não quer guardar para a festa?

- Tenho! – gritei, já com o objeto desejado em mãos.

Um CD. Não parecia ter nada de especial gravado nele. Apenas algumas músicas selecionadas que eu adoro e que sei que ela também adora.

Claro, tem a música que compus para ela também.

Voltei com o CD em mãos, sorrindo. Ela levantou uma sobrancelha.

- Um CD? – questionou, receosa.

- É. – confirmei alegre. – Vou colocar no DVD.

Liguei o DVD muito rápido, e torci por um momento que não faltasse energia por pelo menos cinco minutos. Coloquei o disco para rodar, peguei o controle e sentei ao lado dela, que ainda observava com receio.

- Você vai gostar. – garanti.

Apertei “play” e a primeira música, a música dela, soou. Contava apenas com o violão e um efeito leve de reverbação. Percebi que ainda não havia deixado-a ciente do que ouvia.

- Essa música se chama “Alice”, eu compus pra você. Espero que goste. – sorri, e me diverti quando ela ficou boquiaberta.

Aproximei-me e abracei-a com paixão, e percebi que minha paixão por ela nunca se apagou.

A melodia soou como eu lembrava. Começava lenta, com intensidade, eventualmente se dissipando no silêncio. Então entravam as cordas mais agudas, pequenas, mas fazendo diferença. Pareciam emanar um pouco de dor. Então ficava doce, com acordes abertos e claros, acabando mais uma vez no silêncio.

Eu não me orgulharia tanto disso, se não fosse para Alice.

Olhei para ela.

Suponho que tenha gostado, estava a ponto de chorar.

- Ficou lindo. – sussurrou.

- Que bom que gostou.

- Como você me ama tanto?

- Como você me ama tanto?

- Haha. – abriu o sorriso largo que eu adoro. – Eu choro tão fácil percebeu? - disse enxugando uma lágrima.

- Isso não é ruim. Eu gosto quando você chora. De felicidade. – acrescentei.

- Eu estou feliz, então... posso dizer que gosto de chorar. – respirou fundo. – Esse dia está perfeito. Será que sua última surpresa pode ser assim tão “ótima”? – desafiou.

- Acredito que sim. Depende. Vai depender de você.

Ela parecia confusa.

- Não entendi.

- Vai entender logo. Só espere... – chequei as horas no meu relógio. – Algumas horas. – concluí, sem vontade de fazer as contas mentalmente.

Ela levantou a cabeça e me beijou por um longo momento.

Alice pediu para escutar a música mais uma vez. Acomodou a cabeça em meu peito e perto da quarta música do disco, deve ter cochilado. Fiquei com pena de acordá-la, então relaxei prestando atenção na linda canção de uma banda antiga.

Faltavam três horas para as sete, a hora da festa. Encostei minha cabeça gentilmente na dela e fechei os olhos, enquanto o despertador não me acordasse.

Quando finalmente tocou, levei um susto. Forcei os olhos a permanecerem totalmente abertos, não esperava cochilar tão fácil. Alice ainda estava comigo. Senti uma pontada de dó, mas faltavam dez para as sete e sua presença era indiscutível.

Lembrar do churrasco também me animou.

- Ei. – balancei-a de leve, o que foi suficiente para que abrisse os olhos. – Está na hora.

- Já?

- Sim, já. Dormiu três horas.

- Ah, que estranho. – ela se espreguiçou. – Tive a sensação de ter dormido dois segundos.

Entendi o que quis dizer, afinal, odiava quando isso acontecia. Se ela era igual a mim, provavelmente ficaria sonolenta por um tempo.

- Ok, vamos, quero churrasco. – pulou, repentinamente animada.

Não somos tão parecidos afinal.

Em seguida, ligaram avisando que já devíamos estar lá, e respondi que estávamos a caminho. Alice não morava muito longe, mas a chuvarada constante, como se nunca mais fosse parar, impedia uma caminhada.

O pai dela se ofereceu para nos buscar. Em menos de cinco minutos já buzinou na frente da escada, quando nem havia confirmado se meu pai poderia nos levar.

- Isso foi rápido. – pensei em voz alta.

Descemos com um casaco meu nos cobrindo pelo curto trajeto sem proteção até o carro. Abri a porta para ela entrar primeiro, e enquanto entrava seu pai falou alguma coisa.

- Por que a demora? – perguntou, em tom de zombaria.

- Estávamos dormindo juntos. – ela respondeu naturalmente. Aposto que ele deve ter pensado algo diferente. Alice sorriu para mim, revelando que a brincadeira fora proposital.

Seu pai era um homem de quarenta e poucos anos, muito calmo. Nunca o ouvi xingar ou se irritar com qualquer coisa. Nem sei se faria muito caso se Alice atendesse a porta de sutiã algum dia.

Já sua mãe era parecida com a minha, porém menos teimosa. Talvez, mais impaciente. Tenho certeza de que vai perguntar por que demoramos tanto, assim que pisarmos dentro de casa. E Alice não arrisca fazer piadas de duplo sentido com ela – não que seja capaz de levar a sério, mas não descansaria até que ambos os sentidos ficassem explícitos. Ou seja, é o tipo de pessoa que arruína qualquer piada. Ela é a piada.

Apesar dos estilos diferentes, o casal se dá surpreendentemente bem. E não sei exatamente por qual razão, eles me adoram. Quando perguntei para Alice, disse que falava muito de mim para eles. “Só coisas boas?” lembro de ter perguntado. Ela confirmou. Nunca soube o que falava, mas nunca tiveram qualquer tipo de problema comigo – pelo menos nenhum que eu conheça.

Dentro do carro, o barulho da chuva parecia distante, o que me distrairia durante o caminho todo, se não fosse por Alice cantarolando alguma canção perto do meu ouvido. Isso sim me fez sonhar, com a um pé no presente e outro no passado.

Mesmo com minha insistência, ela prefere cantar apenas para si mesma ou para mim vez ou outra – o que me faz sentir especial.

Ao chegarmos lá, como já esperava, houve uma reclamação.

- Estão atrasados! – sua mãe indignou-se. – Sua amiga já está aqui. – apontou para a mesa onde Letícia sentava, sorrindo para nós.

- Mãe, relaxa. Estávamos... dormindo. – Alice me olhou ao dizer a última palavra.

- Sim, sim. – ela disse rápido, sem tirar a atenção dos talheres que arrumava cuidadosamente pela mesa. – Agora me ajude aqui que logo vão chegar os outros.

- Eu já volto. – disse-me, e já se concentrou em organizar os pratos. Acenou para Letícia, fazendo um sinal de “espere só mais um pouco”.

- Oi, Dante! – sua mãe lembrou-se de mim, acenando alegre por um breve segundo.

- Oi. – tossi para disfarçar uma risada.

Ela também era o tipo de mulher que se ofenderia profundamente caso eu me oferecesse para ajudar. Mais uma mania que não entendo. Para não me sentir inútil, caminhei até a ponta da mesa oposta para passar um tempo com a melhor amiga dela.

Letícia é muito divertida. Claro que minhas definições de beleza mudaram muito desde que conheci Alice, mas não me impedia de reconhecê-la em outras garotas - ela é muito bonita. Muito fácil conversar, vendo que ela faz a maior parte do trabalho – não de uma forma ruim, pelo contrário, é ótimo ouvi-la. Conhecendo-a melhor, ficou muito fácil amá-la. Não é a toa que é também uma grande amiga para mim.

- Então – ela começou, antes de eu me sentar. -, estavam dormindo juntos? – destacou a última palavra com malícia.

- Claro que sim. – sentei ao seu lado. – Por que chegou tão cedo?

- Mania. Sempre chego em compromissos uns vinte minutos antes.

Mulheres e suas manias estranhas... ri de meu pensamento machista. Percebi uma sacola com algo colorido dentro atrás de sua cadeira.

- O que comprou para ela?

- Um CD. Mas não fale nada! – alertou-me.

- Sim.

- O que você vai dar?

- Na verdade são várias coisas. É como um “banquete”. – palavra errada, mas bem sugestiva. – Já dei um petisco, a sobremesa, e falta o prato principal.

- Que ridículo. – zombou.

- Ela está adorando por enquanto. Só não sei o quanto vai gostar do prato principal.

- Que é?

- Segredo.

- Eu sei guardar segredo. – insistiu, curiosa.

- Eu sei que sabe, mas quero que ela seja a primeira a saber.

Ela pensou por um momento.

- E claro... – completei. – Não quero você pegando no meu pé caso... não funcione.

- Está me deixando nervosa.

- Não me mate.

- Mato.

Sorri daquele papo infantil e cômico. Atrás dela, no portão na frente da casa, um carro estacionou. Mais pessoas se juntariam à mesa logo. Ao reconhecer os rostos, e ao escutar as conversas de longe, identifiquei a turma barulhenta que chegara. Agora ficaria com cara de festa. Os vizinhos sofrem.

Krishna, Jaciara e seus respectivos namorados, Artur e Júnior, corriam cobertos pelas próprias roupas para evitar a chuva fina e gelada que caia. Já entravam dando um clima diferente ao lugar, cumprimentando todos, que estavam ali de uma vez só, puxando cadeiras e formando um amontoado de gente no canto onde eu e Letícia sentávamos.

- Olá! – Krishna dirigiu-se diretamente a mim, e em seguida a Letícia.

Éramos muito amigos também. Ela entrou no colégio quando eu estava no segundo ano, e à princípio, seu cabelo loiro me prendeu a atenção, depois seu rosto angelical. Depois de quase dois meses, quando nos falamos pela primeira vez devido à aulas de teatro, sua personalidade me cativou. E senti-me intimidado quando me contou que já estava escrevendo seu segundo livro. Lembro de acidentalmente ter disparado um palavrão na hora. Foi algo semelhante ao dia que conheci Alice, uma sensação estranha, como se ela não fosse real. Acabei descobrindo que era uma paixão, mas uma paixão de amigo. Percebi que tenho isso por todos meus amigos.

- Oi! – respondi dois segundos atrasado.

Seu namorado me cumprimentou com um aperto de mão comportado – não tínhamos muita intimidade ainda.

Jaciara era a que eu conhecia há mais tempo. Lembrei mais uma vez do que pensei mais cedo, sobre minha vida ser cheia de absurdos. Pela primeira vez, vi que isso também poderia ser bom. A forma que conheci Alice é, no mínimo, absurda. Conhecer Jaci foi uma coincidência estranha também, pois estudamos na mesma sala por dois anos e nunca nos falamos. Até que num dia qualquer pediu minha opinião sobre trocar de colégio, via MSN. Iniciou-se então, nossa amizade, do nada. Sorri lembrando essas coisas, essas “merdas” da minha vida. Talvez o universo não me odeie afinal de contas – talvez ele trabalhe de formas misteriosas.

De alguma forma, posso dizer que sou grato por “sei lá o quê” que nos aproximou, porque na época, eu precisava de alguém como ela ao meu lado. Recordo das vezes que ignorei compromissos para animá-la quando estava triste. Ironicamente, ela dizia que eu era o único que conseguia organizar sua bagunça. “Eu? O cara mais bagunçado que existe?” pensava. Mas se ela ficava feliz, eu também ficava.

E por falar em ficar feliz, Alice sentou ao meu lado depois de terminar as arrumações na mesa.

Tudo passou muito rápido a partir daí. Esquecemos do tempo em meio aos risos. Logo a mãe de Alice nos convidou a aproveitar o banquete trabalhoso que distribuiu cuidadosamente pela mesa longa. Quando ela falou, soou mais como uma ordem.

Parecia muita comida para pouca gente, mas em poucos minutos vi que havia me enganado. Até eu repeti uma prato cheio três vezes, de tão boa que estava a refeição. Quando a mesa foi limpa para dar lugar aos doces, percebi que não seria possível comer muitos. Acabei comendo mais do que planejava de novo.

Quando Alice saiu da nossa rodinha para ir ao banheiro, combinei com todos de cantar parabéns assim que ela voltasse. Sabia muito bem o que aconteceria. Antes que ela pudesse sentar, entoamos a canção muito alto, com palmas descompassadas. Seus pais se juntaram à baderna. Ela levou a mão aos olhos, corando e sorrindo sem jeito.

Uma parte do bis me fez pensar, e acho que ela também pensou, pela forma que me olhou.

“Com quem será,

Com quem será que Alice vai casar?

Vai depender, vai depender,

Vai depender se o Dante vai querer.”

Ela encontrou meu olhar enquanto as palmas fortes abafavam qualquer outro som. Ela sorria, ainda corada.

Por incrível que parecesse, ao final da festa ainda chovia. Já passava da meia noite, quase uma da madrugada, quase todos já haviam partido. Todos estavam cansados e sonolentos. Menos, é claro, Alice.

- Esse dia foi perfeito! – exclamou não pela primeira vez enquanto terminava de equilibrar pratos e copos na pia.

Seu pai estava dormindo há alguns minutos no quarto, e sua mãe descansava na sala, vendo TV. Eu estava sentado na cama de Alice, ao lado de Letícia, esperando ansiosamente.

- Você parece nervoso. – comentou Letícia.

- Sim. É normal. – tentei parar de tremer.

Ela suspirou.

- Não vai mesmo me contar o que é? – insistiu.

- Não.

- Nem uma dica?

- Não.

- Seu chato.

- Novidade. – resmunguei. – Mas eu prometo que amanhã eu conto.

- Vou cobrar.

- Sei que vai. – ri.

- Terminei! – Alice surgiu na porta.

Letícia sussurrou para mim, já levantando.

- Boa sorte. – então se dirigiu a Alice. – Meu pai deve estar chegando, vou lá cuidar.

Ela estranhou que Letícia estivesse saindo voluntariamente de uma conversa, mas não insistiu.

- Tudo bem. Depois eu vou lá. – disse.

Finalmente, sentou ao meu lado, abraçando-me.

- Que estranho. – comentou sobre Letícia, mas mudou de assunto rápido. – Obrigado por tudo.

- Você ainda não viu tudo, esqueceu?

- Ui. Esqueci mesmo.

- Se não quiser ver não tem problema...

- Quero ver sim, seu bobo! – me deu um tapinha no braço.

Um tapa era uma reação digna da outra garota que acabou de sair do quarto. Talvez Alice esteja passando muito tempo com ela.

- Tudo bem. Isso não vai ser fácil. – a última frase saiu baixa, para mim mesmo. Posicionei-me meio de lado, para ficar quase de frente para ela, poder ver seus olhos. Um tremor, quase como um arrepio, subiu por meu corpo.

Ela apenas aguardou pensativa.

- Alice – comecei -, isso não soa como um presente, nem um pouco. Acho engraçado você ter chamado isso de “prato principal” sem saber o que era. – suspirei, e recomecei. – Eu te amo. Cada dia que passa eu faço questão de deixar isso bem claro. Não imagino nada sem você. Desde aqueles dias em Tramandaí eu sentia isso, e com o tempo foi ficando mais forte a sensação de paixão que sinto. Eu não tenho mais nenhuma dúvida.

- Sobre? – perguntou com receio.

- Sobre você. Eu vivo para estar com você... – analisei seu olhar. – Sei que estou soando meloso e tudo mais, é impossível fazer isso direito sem parecer assim. – acabei rindo de nervoso. – Mas... você sabe que é verdade.

- Eu sei. – sorriu com o canto da boca, mas ainda com cautela.

- Bom... – deslizei da cama e ajoelhei em sua frente, encontrando seus olhos curiosos.

No bolso direito da minha jaqueta estava o objeto tão “grande” que escondi por tanto tempo embaixo da cama. Quando minha mão o tocou, achei que não teria coordenação para tirá-lo lá de dentro. Tremia ainda, sentindo o coração batendo forte.

A moça da loja de jóias estranhou alguém da minha idade comprando uma aliança com o próprio dinheiro.

Trouxe a pequena caixinha vermelha à frente de seus olhos, abrindo-a como num pedido de casamento clássico. Ajoelhado e tremendo, inseguro.

Mas ainda contava com a minha certeza, a razão do meu impulso a fazer o pedido. Isso me fez sorrir.

Temeroso, finalmente encontrei coragem de olhar para ela. Estava claramente surpresa, talvez confusa demais para falar, ou sequer para se mover, mas seu sorriso largo me tranqüilizou. Percebi que havia esquecido das palavras.

- Alice, quer casar comigo? – soou mais travado do que eu esperava.

Ela fechou os olhos.

- Você sabe que sim. – disse-me com a voz falhada.

Devo ter desmaiado por um segundo. Alice também deslizou para o chão e me abraçou ali mesmo, numa posição desconfortável que me fez perder o equilíbrio, batendo as costas no chão. Ela caiu junto, rindo alto. O melhor tombo que já caí, pensei. Ela me beijou, e pude sentir que, não importando o que acontecesse, sempre teríamos um ao outro.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 15/09/2009
Reeditado em 27/12/2009
Código do texto: T1811985