É meia-noite numa casa de Coimbra

Coimbra: cidade portuguesa com uma das mais velhas Universidades do mundo.

Coimbra, cidade onde os estudantes vestem fato negro e usam uma capa negra.

Coimbra cidade onde os estudantes cantam o fado quase sempre sobre o amor perdido ou da saudade desta cidade milenar.

Coimbra, cidade pequena e quase de província, onde nunca se dorme.

Coimbra cidade onde estudei, onde mais amei, onde tive as maiores paixões da minha vida.

É meia-noite numa casa de Coimbra

Lembro-te da última vez que nos demos ao luxo de trocar um olhar.

Foi há pouco tempo, mas parece que passou uma eternidade desde esse momento, porque o tempo parece que se adensou, parece que violou as suas próprias leis, de tal forma esse momento me parece distante.

O engraçado é que esse olhar não foi bom, esteve nas antípodas do agradável, do prazer comum que já partilhámos, porque nos pusemos nas antípodas um do outro. Nele vi aquilo que fizera de nos um casal, vi e senti paixões retidas, à espera dum gesto que quebrasse as nossas defesas, mas nem toda a engenharia militar seria capaz de as quebrar, porque engendrámos ódios também presentes no olhar, que seriam capazes de suster os mais belos dos sentimentos, as mais louváveis intenções. Se o amor era impossível, a paz diluíra-se nos teus sinais de fumo mais do que omnipresentes e tornavam esse olhar nebuloso, dolorosamente nebuloso, com as cores das terras onde nunca mais pode haver paz.

Vaguei-o com demasiado rumo pelas divisões de um espaço momentaneamente comum, preenchido por um intransponível muro de silêncio, quando a minha vontade era de me perder por outros locais, de me juntar aos grupos felizes de estudantes que comemoram uma coisa qualquer, com a alegria típica e ingénua dos jovens.

Preferia de facto misturar-me entre as hordas de capas negras, (cujo som de festividades invadiu o nosso silêncio) partilhando a sua efusão, deixando-me perder na vertigem alcoólica, até de madrugada, indo adormecer ao acaso, algures, porque sei que nesse algures estaria melhor do que aqui.

Apesar das dimensões reduzidas do nosso espaço, é raro cruzarmo-nos, embora quando o façamos o façamos como se fossemos invisíveis, como se a casa fosse habitada apenas por uma pessoa. Relembro nesta pequena eternidade outras guerras, outros gelos onde bastava apenas meia dúzia de cruzamentos e de olhares para ser feita a paz, agora impossível, na impossibilidade de a concebermos, não conseguindo saber sequer, pela impossibilidade da comunicação, se esse desejo existe sequer no fundo das nossas diferenças. Lamento tudo, lamento-nos, lamento nem sequer nos darmos ao luxo de um último ódio...Sorrio desalentado, e mais triste fico quando ouço a porta a abrir, sinto que estás a sair, desta vez para sempre, da minha vida.

É o fim, ou o princípio de tudo…

Acaricio o metal frio de algo que comprei para a nossa autodefesa. “Nossa”...a palavra sabe-me pior do que este momento, como se tal fosse possível!

Numa guerra nunca há vencedores, pelas trevas em que ambos os lados foram lançados.

Balelas!

Arrepia-me o pensamento e a ideia, mas o que pode fazer um homem contra o pensamento e as ideias quando estes lutam contra a sua vontade?

O som de um tiro ecoa pela construção, e pelas ruas da cidade alegre dos estudantes que quase nunca dorme.

Ao apartamento chega o eco dum fado, onde se carpe a saudade e se exorciza um amor.

É meia-noite numa casa de Coimbra.

Dezembro de 2000 e alterado em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 15/09/2009
Código do texto: T1811782
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