OS RIOS SEM SOM

“Gostava de atravessar o Tejo no cacilheiro, sozinha cá fora, a beber o ar do rio, e a olhá-lo, apreciando a viagem, e deixando o tempo passar sem o querer. Fiz a última viagem antes de partir, e essa é a única coisa de que sinto a falta da minha terra”.

A partida fora definitiva e causada por um acidente de percurso juvenil que quase lhe alterara a vida, mas que a lançara para aqui, onde eu lhe dei um novo rumo.

Na realidade não fora bem eu.

Numa ocasião cruzamo-nos, trocámos olhares, confiamo-nos e cruzaram-se as palavras suficientes para o próximo encontro. Ela viu qualquer coisa de estável em mim, e eu nela a criatura frágil e adorável, cuja minha baixa auto-estima pedia para adoptar e proteger. Estávamos ambos enganados – Longe do registo por ela desejado, soube solidificar-me porque tal me foi exigido, e ela, longe, muito longe da fragilidade imaginada, era-o mas também era terrivelmente forte. Por uma questão de conveniências adoçou-se, e assim encaixamos estranhamente.

Nunca me falas-te noutras águas que não as do Tejo, mas eu sabia bem demais que tinhas estado em rápidos e correntes mais violentas do que aquelas que poderia suportar na memória. Apesar de só quereres saudade e boas recordações, no olhar havia uma fragilidade qualquer, demasiado clara por detrás dos óculos, e absurdamente sublimada nos teus lábios mudos ante as minhas perguntas. Um casal deveria partilhar tudo, mas da tua parte só tinha a alegria e quase nenhuma dor, o que me afligia, pois sabia que a vivias. O triunvirato da tua família nuclear em nada me ajudava. Tinham sempre a casa em obras, e por isso nunca fui lá, a não ser em fotografias, onde uma miúda calada e tristonha nada adiantava, apesar de rodeada por tios e primas sorridentes. Eras “tristemente endémica”, mas transcendias-te, raramente amuando, raramente não tendo outra expressão que não fosse um sorriso, como que temendo o meu afastamento perante o teu eu escondido, perante um esgar de sofrimento ou algumas lágrimas caídas, nem que fossem avulsas...

E de facto nesse aspecto não podíamos ser mais diferentes. Viveras as tuas tempestades encerrada em ti mesma, no mesmo bairro ou na mesma zona, ao lado da cidade gigante, cuja fealdade te contaminara, arrastando-te na vertigem, lançando-te num abismo. Mas tudo ocorrera ali, no tal espaço físico.

Eu era a antítese perfeita disso.

Com um passado íntimo sem turbulência, tivera a sorte de possuir bens à altura da paixão pelas viagens. Estranhamente preferia viajar até terras onde existissem rios conhecidos. Começara pelos nossos, atravessando, aos quinze anos o Mondego, dai a pouco descendo-o de canoa, e repetindo a façanha no Douro. Quanto ao teu Tejo...nunca gostara muito do sul, pelo que o atravessar de carro era suficiente, e mesmo assim pouco sedutor.

Depois vieram os outros rios.

Quando a oportunidade apareceu, subi o Nilo, o tal “rio falso” por nascer ao contrário. Seria estúpido se dissesse ter nessa ocasião descoberto o deserto, já que este não se descobre no meio de água...descobri sim mais uma parte minha, pois a cada descida isso acabava por acontecer, talvez inexplicavelmente, talvez como complemento dos sofás dos psicólogos que gostava periodicamente de visitar, quando as conversas intermináveis de amigos e o fundo de diversas garrafas não davam resposta a algumas dúvidas existenciais.

Só, com uma equipa de barco a motor a razoável distância para eu poder sentir a tal solidão, a tentar imaginar-me o herdeiro dos grandes pioneiros do século XIX, ou talvez apenas um puto semi-mimado pela fortuna e manias dos desportos radicais, a querer dar num de herói perante os oceanos e espanto dos nativos, razoavelmente habituados às diletâncias tipo ”Indiana Jones”, dos filhos do primeiro mundo que não tinham mais nada de útil com que ocupar o tempo...

Depois fui, o mais depressa possível, à China, depressa, antes que as gigantescas barragens do século 21 reduzissem o Yantzé a uma lagartixa, isto em clara metáfora ao dragão símbolo deste país, símbolo da força física e visual desta água, tão plena de violência (a obrigar-nos a evitar certas partes) que se diria em revolta antecipada contra aqueles que o ousariam estrangular. Segundo aquilo dito por toda a gente, parte das fabulosas paisagens iriam desaparecer. Custa-me imaginar o desaparecimento do gigantismo com que algumas montanhas nos mantinham em respeito; custa-me imaginar a sua morte, quando as águas subirem, reduzindo-as a meras cotas indistinguíveis no meio de tantas outras. Custa-me, uma certa dor a juntar a tantas outras emprestadas pelas paisagens que já não o serão depois de partir.

Parece ser próprio dos rios emprestarem-nos a sua grandeza, mas também a decadência.

Custa sempre ver um gigante em agonia, letárgico, e mergulhado no leito que lhe servira de berço e ao mesmo tempo de futura vala comum. Descer, em silêncio, pelas margens, partilhando a sua morte na natureza demasiado escura, no silêncio demasiado presente.

Quantos rios sem som desci eu?

Demasiados.

Por isso, apesar de ter continuado absurdamente a fazê-lo, cada vez que o fazia tinha mais vontade de regressar para Ti, em direcção ao teu silêncio, ao obscurantismo do teu passado. E é tão estranho...as minhas duas grandes paixões são tão parecidas...ambas nasceram imaculadas, poluindo-se ao longo de um percurso mais ou menos sinuoso (isto sem qualquer tipo de juízo valorativo, porque as paixões não vivem de valores, senão não existiam...) mas ao passo que a água se arrasta em direcção ao mar para morrer e virtualmente diluir-se, Tu...vens comigo, juntos, pelo menos temporariamente, com a preocupação de te servir de detergente, e de te conservar num lado que consideras bom, devolvendo-me os tais valores, com que te matizas-te até ao limiar da paciência de uma sociedade, ela sim, prenhe de classificações...

Confundiste-me com ela, mas intuis-te ter eu a bondade suficiente para a redenção. Prova insofismável de como as intuições podem errar crassamente. Eu era apenas mais alguém, com as qualidades e defeitos e morais da nossa gente, mas que o amor fez esquecer muito para além da minha auto-estima. Por isso te aceitei, aceitei a tua sombra sem a querer conhecer, aceitei-te tal como eras, para o bem ou para o mal…

Tu sabia-lo, sempre soubeste, mas quiseste acreditar na minha pseudo-santidade...querias um anjo e...Se os anjos assim o são, são-no porque estão livres dos maus pensamentos, incondicionalmente livres...Ao passo que eu era um oportunista...se não fosse o meu amor nunca te quereria ver à minha frente. Como fêmea eras evitável, como mulher depositária de mim eras insubstituível.

Éramos sem dúvida como rios, mas rios sem som, sem o som do teu passado, sem o som das minhas dúvidas, no silêncio desse afecto estúpido e venenoso, que na busca desesperada de nós, esquecia as outras partes, porventura descartáveis, mas nunca indispensavelmente descartáveis.

E assim caminhávamos nós, aliás, deslizávamos (para a metáfora ser mais correcta...) em direcção ao nosso fim, no nosso rio sem som.

Conto original de Novembro de 1998 e corrigido em Setembro de 2009

Vagamente baseado em factos reais…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 14/09/2009
Código do texto: T1809863
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