A ÁGUA DA MÚSICA
Estou farto.
Foste a única pessoa que me invadiu demasiado, que foi demasiado longe, ante a minha incapacidade em te deter. Com a tua personalidade abdiquei de tudo, claudiquei, para utilizar um termo raro em mim, mas o termo mais adequado. O espaço em si era irrelevante, não era a primeira vez que o doava a um amor, mas ontem, quando ma tiras-te da cabeça e a espalhas-te pela casa foste longe demais.
Lamento dizer-to, mas foste a excepção de várias formas: a única pessoa que conseguiu partilhar aquilo comigo, e por via disso mesmo, a única que deixei…
Para tentares compreender, e não te lamentares muito com o meu desaparecimento, conto-te porque é que a última me deixou.
Olhei tipicamente a cidade, do alto do meu décimo andar, daquela forma melancólica que só temos em determinados momentos. Eram quatro e tal da manhã, tinham de o ser.
Nunca imaginei uma crise vivida sem ser àquela hora...Podia-me aborrecer logo no início da manhã, mas aguentava, fazia com que a coisa nada parecesse, até o relógio crucificar no ângulo de noventa graus a calma. Seguia-se então o típico rosário de culpas e de recriminações, com que os deprimidos se mimavam. Alguns também procuravam o álcool para se afundarem nesta espécie de martírio sadomasoquista, ao pé da qual a ressaca consequente de nada valeria.
Fora e incluía-me neste grupo, mas por qualquer motivo naquela altura pura e simplesmente não me apeteceu. Apetecia-me pensar, só e sóbrio no flagrante mau gosto destes “s” seguidos.
E a cidade lá estava, pouco se importando comigo, falsamente adormecida na miríade das luzes, na calma emprestada pela semi-escuridão, onde tudo parecia de facto mais pacífico.
Virei-lhe as costas e observei o quarto apagado, pela falta de luz e dela. Tinha-se ido embora, precisamente de manhã, mal me viu sair, e com um terço do ritual típico. Não me deixou uma carta típica de despedidas, ou qualquer recado diminuto, mas do género. Tinha havido apenas uma ligeira discussão caseira, e o desencontro dos dois demasiadas vezes, mas poucas para uma atitude daquelas, além do inevitável pormenor...
Notei a sua ausência pela falta da roupa feminina no armário e, obviamente, no espaço oco do lado direito da cama.
Queria pensar noutra coisa qualquer, mas nada me ocorria a não ser esse vazio. Acender todas as luzes da casa parecera-me demasiado óbvio.
Pior: notaria ainda mais essa ausência...
Liguei o CD, apenas com a preocupação da música não ter palavras. Programei-o, e comecei a vaguear pela grande janela que me separava do mundo. Como água, o som encheu o quarto, e também como água persegui-me pela casa, quando quis passear, imaginando-me num jardim, pois naquela altura apetecia-me passear num jardim, de pijama, sem encontrar o seu frio ou alguma previsível criatura indesejável.
De um momento para o outro senti-me estranhamente confortável. O apartamento enchera-se de perfume, embora eu tivesse os meus frascos bem tapados, e as plantas razoavelmente murchas, incapazes de exalar outro cheio que não fosse da morte, da sua decadência, da decadência do nosso amor. Já tinha lido sobre o estranho efeito da música, mas achara-o meramente...placebo.
Habitualmente, gostava de encerrar a música em auscultadores, guardá-la só para mim, e ouvi-la bem alta, mas só a deixando escapar para os meus ouvidos. À excepção dos tempos de adolescência, onde o espaço musical chocava com o sossego paterno, nunca mais a ouvira num espaço meu pública e ostentosamente.
Só quando era deixado (e esta estava longe de ser a primeira vez...) é que libertava esses sons.
O meu analista dizia-me delicada, mas profissionalmente, ser uma espécie de neurótico compulsivo, e eu só assim me desculpo e perdoo por encerrar os sons em mim, por lhes vedar os caminhos da habitação e os da rua, adorando roubar o som que se escapa das varandas e das casas vizinhas, dos carros, e até...dos Mp3 dos putos!
Isto é uma forma de decadência, temporária, mas não deixa de ser decadência!
No apartamento, no antigo quarto que mantinha “pronto para visitas”, em casa dos meus pais, tinha sempre auscultadores à mão, para o caso de ouvir qualquer coisa que me agradasse demasiado. Quando tal acontecia, de imediato privava os outros do mesmo prazer. Como era um tipo perfeitamente normal, este “quase tique”, era olhado como a extravagância que cada pessoa tem, e que a disfarça mais ou menos bem, e até encarado com alguma simpatia, precisamente devido à sua excentricidade fora de comum.
Por estas e por outras é que evitava, e nunca tinha ido, a concertos ao vivo, exasperando com tal, e desejando pela saída no intimo CD, de espectáculos demasiadas vezes saudados pelo público e crítica, e se por acaso calhava passar ao lado de uma dessas horrorosas salas ou parques onde se dava o suplício, era ver-me a correr para bem longe dali, ou, se tivesse saído prevenido de casa, a enfiar os benditos head-phones, som o mais alto possível e essa mesma possível evasão.
Já me tinham dito que a minha instabilidade pessoal passava pela incapacidade de partilhar determinadas coisas. Mas, francamente, só me lembro de não partilhar a música e tudo quanto se relacionasse com ela. Só de o imaginar, sentia-me nu, aliás, muito mais do que isso, sentia-me invadido ao ponto de já não me sentir eu, mas uma outra qualquer entidade, na qual era difícil rever-me, logo, viver com isso.
Sim...talvez eles tivessem razão...e quem não fosse capaz de partilhar algo tão intimo como a música, fosse indigno de viver ou de merecer a companhia dos outros, isto sem qualquer tipo de juízo valorativo, isto como uma mera constatação, pela qual decidi orientar a minha vida.
Encerrara o meu núcleo duro em registos sonoros, e queria-os canalizar só para mim, dando-lhes demasiada vida, e alimentando-me disso, cada vez que alguém me falhava. E o absurdo máximo era esse: eu falhava pela incapacidade de partilha deles, elas afastavam-se e eu soltava-os livremente, deixando-os rodear-me mas nunca completar-me, isso deveriam fazer vocês, ou tu, aquela que chegou mais perto.
E talvez seja por isso que te deixe este registo em sons, que te deixe por ti finalmente partilhar, mas sendo incapaz de o presenciar.
Deixo-te apenas o meu som, a invadir-te, como eu tanto gosto, como a música da água.