PARTISTE...

Escrevi este conto depois de ter sido deixado por um amor em finais de 1998.

Voltei a pegar nele, a corrigir alguma coisa, pois apesar de imenso se ter passado comigo desde então, reparei que existem semelhanças com a minha vida actual, que o tornam infelizmente presente, apesar de achar este um conto com alguma beleza.

Ela chamava-se Bia e voltei a encontrá-la dai a uns anos, já casada, já com filhos e finalmente feliz, o que me agradou bastante, pois apesar de a ter amado com invulgar intensidade, fiquei contente por ela ter encontrado alguém e ter vencido os seus enormes fantasmas, os seus dramas que partilhou comigo e que quase me engoliram pela sua vasta e tocante dimensão.

As outras perdas…Com o passar dos anos talvez lhes dê os respectivos nomes, mas não hoje, não amanhã, nem depois de amanhã, talvez de facto nos tempos que hão-de vir…

Esta foi também a minha última publicação num jornal, antes de me dedicar às editoras e às publicações na Internet.

PARTISTE…

Nas asas de um insecto, pelo menos da forma suave, tão suave que quase ele nem deu por isso...Se acreditasse em magia julgaria ter sido ela a responsável, mas não podia nem devia, porque não acredita, e por que não seria magia, mas antes maldição desapareceres daquela forma, pelo menos para ele…

Partiste, na revisão do novo milénio, nas asas de uma borboleta, ou na cauda de uma estrela, sim pois não são apenas as cadentes que se movem, as outras também, quando saíram do nosso horizonte e foram brilhar para outros céus…

Ou então, se calhar não era um insecto, mas detesta que vás, abomina, arrepia-o. Lembro-me um dia, há já algum tempo, em que foste visitar alguém de família (julgo que a tua tia favorita) e por lá ficaste mais alguns dias do que o previsto. Ele ia dando em doido, desdobrou-se pateticamente em telefonemas, até descobrir que a casa não o tinha e naquele local não havia rede de telemóvel.... Era velha, tal como a tia...O mais estúpido de tudo é que não é o tipo de homem que gosta de andar agarrado às saias de uma mulher. Mas que há-de fazer? Pegaste-lhe essa doença...

E detesta tanto que vás, como detesta insectos. Pelo menos depois do filme que viu ao bocado, numa retrospectiva do cinema de terror dos anos 90, na “sala-enlatada” (aquela do centro comercial, onde é impossível namorar, pois as cadeiras estão tão próximas que nos obrigam a estar sempre direitos...E como não gosta de fazer de um beijo o espectáculo público que alguns apreciam...deves-te lembrar, foste tu que puseste a alcunha ao cinema…). Estava obviamente só, sem ti, ainda não houve outra que merecesse o teu espaço, a devorar pipocas à velocidade da acção; a coisa era de terror, morria uma série de gente, e por culpa deles, gigantescos, dois metros e tal, asas ainda maiores e cujo aspecto era aterrador, pregando-lhe susto atrás de susto, não obstante ser para ai a quinta vez que via o dito filme….

Já o adivinhas: eles eram os maus da fita, e que fita fez ele, quando queria -como sabes que tanto gosta no fim de qualquer filme - discuti-lo e deparou com o teu lugar vazio.

Acabou por o fazer com a empregada simpática, mas não demasiado, das pipocas. Meia-dúzia de lugares comuns depois, despediu-se amavelmente até à próxima chatice, pois só vai ao cinema quando se chateia. Confesso-te: começo a ficar preocupado, pois ele tem ido a todas as estreias e quando me encontro com ele não fala de outro assunto parecendo já até um cronista do género...

Lembro-me perfeitamente do primeiro vazio, porque o vi perdido, como sempre andara, mas mais do que o habitual. Todos julgaram ser a altura de endoidecer de vez, mas a sua vez ainda estava longe de chegar, e quando isso acontecesse nunca nos daria a satisfação de acontecer à nossa frente, a sua “frente interna”, como se referia habitualmente aos amigos mais chegados.

Nos piores momentos, limitava-se a olhar-nos com visão perdida e a repetir que tinhas partido.

Por fim acabou por regressar. Descobrimo-lo quando recomeçou a falar de ti.

De início, disse que tinhas saído da cidade; um emprego mais bem pago foi a justificação. Mas ele sabia que a cidade era demasiado pequena para te ocultar, e os seus olhos demasiado frágeis para conseguirem mentir daquela maneira.

Não tinha sido bem assim.

Ele pura e simplesmente deixara de se encontrar contigo, embora tivesse desejado a tua partida de facto. Teria sido mais fácil. Mas deverias partir para longe, demasiado para lá chegar de carro, pelo menos no dele, ciclicamente meio-avariado, exigindo por isso deslocações curtas, deslocações citadinas onde inevitavelmente te poderia encontrar pelas diminutas dimensões da cidade e quase toda a gente se encontrar nos mesmos locais

Julgou ter feito a pechincha da sua vida quando o comprou esse carro. Orgulhava-se de só ter custado o primeiro ordenado. Ao fim de meio ano ninguém se admirou...acumulara já mais horas de oficina do que de estrada, e duplicara o preço em manutenção. Teimoso como a pior das mulas, recusava-se a admitir o logro, preferindo dizer que tinha comprado uma antiguidade, e a prometer para os próximos anos o quadruplicar do investimento. Isso até poderia ser verdade. Se as restantes quatrocentos mil exemplares fabricados de súbito desaparecessem da face da terra...

Mas isso não constituía um real problema: Por ele, alugaria um carro, pegava em ti, colocava-te nesse longe, e quando regressa-se, às nossas perguntas sobre ti limitar-se-ia a dizer que- Partiste…

E azar dos azares...Ou sorte, segundo os fanáticos da coisa...Desapareces-te na altura em que passava mais uma fase decisiva para o apuramento de uma competição de futebol importante para os aficionados,

Ele sentiu-se repentinamente oco...como um jogador perdido, nem que fosse por analogia.

A custo, lá fintou a ausência, sentindo a tua falta sobre a saudade, nada podendo fazer contra. Sentiu, e muito também, e à medida que os jogos passavam a rodos e a grande velocidade, o teu drible sobre o tempo e a métrica, qual Ronaldo doutros campos, e pressentiu a tua entrada na grande área da crítica, completamente arrepiada pela composição. Interrogaram-se ainda quem tinha feito chegar semelhante coisa à linha divisória das publicações. Mas pura e simplesmente não havia tempo...pelo menos para pensar nessa entidade pouco pacífica, pois sentiu o teu olhar, ausente, claro, mas subliminar, nos seus olhos e a marcação da ausência, ante nós, amigos e público oco, omnipresente, calado, mas a par do vosso desentendimento.

Independentemente dos estragos feitos, e isso era o que menos interessava, ele sabia apenas que partiste.

Qualquer coisa.

No seu delírio contínuo, mas já acalmado, ele encarou a coisa como uma...história, um poema, isso. Onde a tradição mandava não dizer que tinhas quebrado o coração e a alma. Mas depois, interrogava-se como imbróglio...Se o primeiro se parte, e a segunda se queimava, que raio se passava?

Francamente, ele não sabia responder, definitivamente perdido no delírio, não o sabia, só sabia que tinhas partido.

Entregou-me isto, pedindo-me para te encontrar, mas pedindo-te igualmente para não o procurares, pois ele iria...Partir.

Escrito em Outubro de 1998 e alterado em Setembro de 2009

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 10/09/2009
Código do texto: T1802715
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