A MINHA MAIS TRISTE CARTA DE AMOR…
Já te tinha feito o velório em mim, o tempo suficiente para o teu nome não passar disso mesmo, de um nome perdido na lista telefónica, ou endereço de email que nada ou demasiado me diz, sem o frémito que me perseguia cada vez que te voltava a descobrir entre centenas de outros nomes, numa altura em que o teu parecia destacado a Bold entre os outros todos, e logo por isso merecesses a atenção da minha visão periférica, dado a outra já estar a olhar para outro lado, para o futuro do qual não farias lamentavelmente parte...
Mas lá calhou...Exasperado com a dicotomia da crítica cinematográfica, dividida entre os ataques serrados, ou a adulação mítica, decidi tirar a limpo semelhante polémica, encerrando-me na sala escura e num horário estratégico que prometia uma sala vazia, permitindo-me assim sofrer em silêncio e só, pois achava que as mágoas devem ser carpidas da forma o mais solitária possível…. Passadas as entediantes apresentações, onde filmes de fraco quilate eram apresentados como maravilhas sem as quais não poderíamos nem deveríamos passar (e a dúvida surgia -Que seriamos nós se nos atrevêssemos a desobedecer a tão subliminar e imperativo convite?!), e o genérico habitual e...eis que te vi nos olhos de uma actriz, que nem por acaso morreu neste filme, em que deveria ser por fim feliz.
Não foi amor à primeira vista, porque já a conhecia de outros cenários, mas senti a morte, talvez porque foi a primeira vez que te vi morrer.
No fim da sessão refugiei-me por detrás do meu divã de psiquiatra (leia-se o computador), vinho do nosso tempo (embora preferisse cerveja, mas, caramba, aquela era a tua última noite, a derradeira noite em mim, e por isso o vinho era aquele que tu gostavas de beber no tempo antes do nosso crepusculo, e uma vontade louca e incontornável de escrever a minha mais triste carta de amor.
Por ela, que antes de se ir embora, não disse tudo a quem amava. A nossa realidade era já outra, mas lembrei-me de quantas e quantas coisas não te disse na altura certa, por esquecimento, ou por acto falhado, que em psicologia quer dizer qualquer coisa como intenção de o fazer, não o fazendo. Complicado? Também sempre fui mau aluno tanto de psicologia como de relações humanas, como o sabes demasiado bem...A dúvida incontornável surge então por remorso alcoólico e também pelo genuíno sóbrio: teria adiantado alguma coisa, ás milhentas coisas que te fiz?
Provavelmente.
E provavelmente poderíamos ir ter visto este dramalhote saboroso os dois...obrigando-me a não assumir que gostei tal como tu gostaste, mas assumindo-o, na hora de deitar, em que imitaria a pose do felizardo companheiro, abraçando-te daquela forma artificial e cheia de câmaras e de conselhos dos técnicos, mas seguindo apenas instintivamente o meu sentir. Estranharias, com certeza, ou talvez não...feliz pelo meu recuo, através do qual iria ao teu encontro.
E eu estaria com outra imagem que não a tua na cabeça, a imagem do olhar dela, que me valeu a mais triste carta de amor.
E tal como na história, em que eles descobriram gostar um do outro e se uniram demasiado brevemente, é tarde, era tarde demais. Mas porque raio acontece sempre tarde!? Sortilégio divino? Maquinação grega dos deuses do destino de forma a penitenciar o pecador, neste caso eu? E porquê? Sinto-me pior que Prometeu, depois de ter roubado algum fogo celeste para animar o corpo humano por si criado e talhado na argila, fora condenado por Zeus a ser agrilhoado para sempre, e que ao mesmo tempo o seu fígado fosse comido por uma águia também nesse sempre?
Pois eu sinto-me como ele, agrilhoado ao arrependimento e com o meu interior em brasa, por ser demasiado tarde para resgatar o passado e torna-lo em futuro.
Roubei-te a paz, e agora devolves-me essa inquietação...deixa-la estar latente, a hibernar, até ao próximo estimulo tudo desencadear...Ou então é de facto tarde demais, os relógios não mentem nem me deixam mentir, para me arrepender e para te dar a ler a minha mais triste carta de amor?
Com direito até à música do filme, CD comprado em má hora, no qual os participantes parecem sussurrar as palavras. Por azar ou demasiada sorte, ofereci-to, e soube que tu gostavas quando me telefonas-te, com ele por fundo, a confessar adorar tristemente os terríveis sons, e a devolver-me a mágoa? Nunca saberás como fiquei feliz e apreensivo quando o fizeste. Na ocasião alinhavei algumas frases feitas, mostrei-me forte e sobranceiro, ignorando que mais tarde essa música iria guiar estas linhas, não me iria sair da cabeça, esse peso insuportavelmente fúnebre, disfarçado de melodia. Talvez não, eu é que assim desejo e quero para te dedicar esta já longa carta...a minha mais triste carta de amor.
Voltando à infeliz actriz (que não o deve ser assim tanto, a valer pela sucesso do filme, do dela, e pela vida familiar invulgarmente estável, isto a valer pelas revistas da especialidade..), á desgraçada que ainda está agoniar num cinema e num DVD qualquer, sei que é apenas um filme, que ela já renasceu noutros ecrãs, e que foi deslumbrante à cerimónia dos Óscares, mas naquele momento...queria-a viva, era parecida contigo (embora eu não tivesse nenhuma semelhança com o seu companheiro de cena, faltando-me peso, idade e corpo, -além do indispensável palmo de cara fotogénico sem o qual não se faz carreira em quase lado nenhum...- bem como jeito para representar...), tão parecida que não te quis ver morta, não sentindo assim tão devastadoramente a minha mais triste carta de amor.
Em memória dela, tua, nossa, antes que seja tarde, pois sei-o que já o é, antes que lamente aquilo que fiz e continuarei a fazer, antes que lamente os lutos constantes que faço cada vez que me lembro de ti e que te quero apagar da memória, da pele e do olfacto, antes que lamente essa mais do que absurda perda, dedico-te, sempre te dedicarei, por muitas que se entreponham entre o nosso destino falhado, a minha mais triste carta de amor.
De todas as perdas, esta foi das mais duras...
Escrito em Novembro de 1998, mas reescrito em Setembro de 2009, para se adaptar aos novos tempos, às novas perdas…