PERDIDOS NO ESPAÇO
-”Os monstros podem ter voz de anjo, e estarem muito longe de o serem, e estarem mais perto de nós do que ousamos imaginar…” – Disse-me, para depois desaparecer numa esquina próxima. O olhar transpareceu muito mais do que uma simples frase feita, nesse olhar transpareceu a certeza do que era dito, a certeza de que tal era sentido na pele, apesar do seu aparente lugar comum.
Quando realmente comecei a pensar no assunto, ela já estava bastante longe, muitos seus anos-luz.
Olhei para o exterior e observei as imagens demasiado rotineiras para serem belas. Cada vez que acordava, e dava meia-dúzia de passos, lá estava o quadro, praticamente estático, á espera do meu desespero contido. Todos os dias me interrogava, sobre as razões de não ir mais longe, de abandonar aquela zona. Os poucos que me podiam incentivar a tal nunca o fariam, e aqueles que o queriam nunca se atreveriam sequer a sugestioná-lo. Sabiam, que apesar de tudo, apreciava aquela galáxia, e que só por um motivo especial partiria.
Mas francamente...motivos estavam longe de me faltar...A cada olhar pela janela, eu sabia-o demasiado bem...Ao ver aqueles seres estranhos, sentia isso.
Fora uma mera casualidade a nossa coabitação. Jamais pertencera àquela constelação, tudo me era demasiado estranho, demasiado alienígena, ao ponto, de, quando tinha de sair, enchia-me de brios, evitava-o ao máximo, mas lá tinha de ser. Enfiava o fato o mais possível no corpo, tentando tapá-lo para além dos limites, escondendo-me, e então sim, mas a que custo!
Durante muitos anos, a motivação sobejava-me para ficar atrás das tais janelas.
Até ela aparecer.
Então, comecei verdadeiramente a conhecer o meio onde ela era também estranha, mas no qual adorava viver. Foi esta criatura achada meramente por acaso nas raras saídas, que me ensinou a detestar menos o exterior.
De início era apenas um mero satélite, a rondar-me pacientemente, mas aproximando-se numa rota de colisão, que, apesar de temer, desejava-a intensamente, até por fim ceder.
Deixamos então as tretas astrológicas, e passamos a ser apenas nós. Juntos explorámos o sistema hostil, e juntos procurámos evitá-lo. O problema é que as nossas Biosferas estavam demasiado cheias, obrigando os encontros naquele ambiente desconfortável, onde éramos e sentíamo-nos devorados, mas também estranhamente vivos, bestialmente vivos, numa espécie de jogo pseudo sadomasoquista mental. A vertigem de sobreviver e de o gostar naquela sua atmosfera densa e intensamente venenosa, devo-a a ela, e procurei sempre, na medida do possível devolvê-la.
Até o dia, em que me mostrou que as terríveis imagens passadas no ecrã, eram afinal bem reais, e não estavam na distância dos transmissores, mas bem perto de nós. Mil vezes lhe pedi para não falar mais, mas mil vezes ela o fez, para me ensinar, e para poder respirar, por alívio, por catarse....
A partir de então, passei a desistir das minhas certezas, visto elas estarem completamente erradas. Passei a olhar tudo com o olhar negro dela, a matizar tudo, mesmo o meu insuspeito meio, dessa cor. A tal ponto, que parte do ar nebuloso dos estranhos habitantes, passou para mim, ao ponto de me passar a olhar como um deles, perdendo o brilho de estrela que julgava possuir.
A beleza “naife” dos astros maiores, pura e simplesmente desaparecera.
Os ganhos foram apenas o de sentir, que, pela primeira vez, fazia parte daquele mundo, embora no íntimo, soubesse tal estar completamente errado. Eu era do outro lado, eu devia trabalhar-me para desanuviar a sua atmosfera, trabalhando as minhas capacidades transformadoras, mas nunca sendo um deles, porque assim não me respirava. Deu-se pois o natural processo de osmose, onde descobri ser a superioridade apregoada, apenas isso, um chavão saído directamente dos meus livros e ideários, onde alguém me disse estar a verdade, a razão.
Estavam completamente enganados alguns dos meus mestres, soube-o ainda a tempo. A tempo de abraçar o novo caminho. Os medos iniciais de me perder estavam errados! Nunca poderia transformar, porque afinal estava longe de possuir essa invejável característica! Era igual, mas um pouco mitómano, por me considerar diferente. As coisas passaram então a serem definitivamente mais tranquilas. A cada chegada à base, a sensação de bem-estar sublimava-se a níveis insuspeitos.
Até ela me revelar que o material de que eram feitos os monstros daquela terra era o meu, os monstros eram feitos de humanidade...De me demonstrar que da garganta dos anjos poderiam sair línguas de cobra, e vozes demasiado cavas para serem humanas, ou que esses monstros podiam ser tão humanos como eu na aparência, apenas se revelando na obscuridade, estando a maioria de nós ignorantes dela, julgando ser ela impossível.
Os monstros existiam, e viviam bem perto de nós! Disse-mo e demonstrou-mo, mostrando-me as pessoas por eles tocadas, completamente mortas por dentro, (tal como ela…) mas o mais trivialmente normais a olhares e sentires desconhecidos.
Farto, a roçar os limites, encontrei por fim as forças para sair, mas pelos motivos errados. Parti porque julgava poder afastar-me do mal, mas sabia ir encontrá-lo na próxima cidade onde morasse; talvez não o encontrasse tão descarado, ou escaqueirado na minha frente e na minha alma, mas sabia ele lá estar, caindo na mesma asneira dela. Ela vivia neste mundo, andando sem parar de um lado para o outro, evitando-se pensar, porque ao pensar encontrava os seus monstros; eu saí para fora dela, em todos os sentidos para evitar esses fantasmas.
Poucos dias antes de apanhar o comboio, encontrei-a a alguma distância. Estava agitada, corria (tinha de ser...) em direcção a nada, simpática e afável no contacto com toda a gente, mas demasiado esquiva para poder esconder a normalidade de cada um. Na metáfora da sua máscara, exibia o medo, mas só o transmitindo a quem amava, para descargo, para a dita catarse…
Parti de facto, deixando a enorme carga de metáforas em que transformara a minha vida, descomplexando-a, e tentando a simplificação noutros domínios. Foi meio erro. Consegui de facto viver entre os humanos a quem chamava alienígenas, pela incapacidade de os perceber, e pela necessidade de sobreviver sublevando-me a domínios quase ficcionais, mas jamais a esqueci, a ela e ao seu interior.
Ela pelo drama íntimo, eu por apenas uma certa ataviedade de espírito, éramos da mesma massa, sós pelas diferentes dores, e por causa dela perdidos no espaço terreno, onde era suposto sermos felizes.
Ela…
Ela abriu-me os olhos e os sentidos para um mundo, para a realidade, que ela pela dor que sofrera achava tenebrosa, mas que aprendi que o mundo é luz, é sombra, e depende de nós e apenas de nós escolher o local onde viver e proliferar.
Cheguei a amar outras mulheres semelhantes a ela, mas nunca consegui ficar muito tempo com alguém que acha que a sombra e o lado negro, pela sua força, prevalece e vence todo o resto…Vivo na luz que busco e trabalho todos os dias, mas parece que estou destinado a amar quem gosta duma forma de trevas, acabando por perder essas pessoas, mas também pelo diferente rumo que as nossas vidas teimam em tomaram.
Por isso estas memórias são o que restam delas em mim.
Conto Dedicado à Susana, a primeira das primeiras a quem escrevi este texto há mais de mil anos e que corrigi profundamente mais de mil anos depois em Setembro de 2009