Paramour - Capitulo II
II
Lentamente a cabeça vai voltando ao lugar, e os sonhos vão se despedaçando e sumindo. Acordei para mais um dia. Alice encontrava-se na mesma posição de ontem à noite.
É tão fascinante vê-la agora assim, tão quietinha. Com devido cuidado, acaricio suas bochechas com o polegar.
A sensação é indescritível, a de simplesmente acariciá-la. Pensar agora em todos os momentos tragicômicos que me trouxeram até aqui parece uma reação automática. Desde a primeira vez que a vi, em Tramandaí, dois anos atrás. Não é o tipo de coisa que esqueceria facilmente, por mais que quisesse. Desde nosso primeiro encontro, percebi que éramos um caso a parte. Daria uma boa comédia romântica.
Férias. Araranguá já estava uma chatice. É ótimo “escapar” uma vez por ano e acabar eventualmente sentindo saudades de casa.
A ironia dessa vez era que antes de ir, deitado na cama olhando para algum ponto no teto, estava pensando na vida. Já havia tomado banho, separado todas as malas, fechado todas as janelas, talvez pela primeira vez na vida, feito corretamente tudo que meus pais pediram. Então, restava apenas esperar que me buscassem para finalmente, cair na estrada.
Não estava pensando em nada fora do comum, era mais uma reflexão do tipo "onde está a peça que falta no quebra cabeça?". Olho para os lados e vejo muita diversão, meus amigos, a música, filmes... até mesmo esse quarto é divertido de sua forma. Por que não me sinto feliz agora? Quando estou por aí, fazendo alguma coisa, está tudo bem, mas quando estou sozinho não. Será que sou tão dependente assim? Concentrando por alguns momentos, percebia que a reflexão não tinha nada a ver com ser triste, e sim com o espaço vazio no meu peito... achava tosca minha constatação, mas sabia que estava ali, pensando no mundo, por causa disso.
Quando meus pais chegaram, foi tudo automático, do carregamento das malas até a três horas de viagem. Antes que percebesse, já estávamos na primeira parada (duas horas depois). Sem muita demora, fizemos um lanche que custou absurdamente caro (apesar de ter sido o melhor pastel que já comi), e continuamos.
Meu exercício de distração foi tentar contar quantas listras amarelas passavam pelo lado do carro. Só consegui ganhar um leve enjôo.
A única coisa que quebrou a rotina no primeiro dia lá foi a água do mar, que estava congelando. A primeira impressão é sempre arrepiante, mas mesmo depois de meia hora estava hesitante.
- Parece que estou nadando em cubos de gelo. - expliquei a minha mãe quando ela estranhou minha saída prematura.
Como de costume, caminhamos até a barra dando uma volta por metade da cidade pela beira da praia. Foi bem mais cansativo do que eu me lembrava – estávamos fora de forma.
Chegando ao hotel, subimos as escadarias em câmera lenta. Pedi para tomar banho primeiro pois queria ler no tempo livre, enquanto o resto da família tomava o seu. A roupa já estava pronta, mas vesti apenas a calça jeans azul e as meias. Por fim, deitei na cama e não desgrudei os olhos do livro.
Talvez seja a adolescência e seus hormônios em excesso, mas uma história de amor bem feita realmente mexia com os pensamentos. Não era novidade, eu era um rapaz de 15 anos que nunca havia passado perto de uma garota. Na primeira paixonite, minha ideia brilhante foi se afastar da garota, hoje não sei bem por quê. No mais, só me trouxe confusão e sofrimento.
Como li num livro uma vez, chegou um dia que estava na cama, e pensei numa futilidade como "amanhã vou gravar um CD. Sim, vou fazer isso", e foi como se o pensamento idiota me libertasse. Enfim, aquilo que tanto me perturbava deixou de existir.
Eu estava lendo um livro sobre uma garota que se apaixona por um vampiro. Foi com o que gastei quarenta reais dos meus cem - mesmo que doesse largar tanta grana de uma vez só. Era hipnotizante. Porém, fui obrigado a parar, porque todos da família estavam de banhos tomados e prontos para sair. Prontos para mergulhar num mar de pessoas e barulho, onde uma mesa livre era decidida no tapa: o centro. Claro que é exagero, mas já tinha visto gente correndo para não perder o lugar. Uma vez, nós corremos para não perder lugar. Carreguei o livro debaixo do braço e cheguei a ler algumas páginas depois de comer.
Minha diversão não era apenas ler e andar de um lado para o outro, claro. Numa classificação de três mais divertidos, “procurar comida” ficaria em terceiro, porque geralmente escolhíamos restaurantes diferentes a cada janta. “Ter cem reais para gastar no que quiser” fica em segundo, até porque gasto tudo muito rápido. “Escrever” em primeiro, indubitavelmente. Gosto de escrever porque com uma caneta e um caderno, tenho liberdade sem limites para fazer o que quiser. E ainda aprendia palavras bonitas, como “indubitavelmente”.
Naquela noite, jantamos filé de peixe ao molho de camarão e rodamos por algumas lojas, aproveitando para comprar mais coisas para ler e alguns cosméticos que faziam falta. Foi uma noite tranqüila, e mesmo que pareça monótona para alguns, para mim foi ótima.
No hotel, li mais umas vinte páginas do tal livro, vi um filme e caí (ou desmaiei) de sono.
Amanheceu e já começamos nos movimentando. O hotel oferecia um bom café da manhã que aproveitávamos. Era uma boa razão para despertar o relógio mais cedo. Ainda antes do meio dia, atravessamos a ponte e compramos o que comer no mercado de Imbé, a cidade vizinha que ficasse a segundos de distância. Carreguei o livro comigo (estava obcecado) para aproveitar o tempo que sentamos no barzinho para lanchar.
Voltamos ao hotel mais uma vez para descansar as pernas até a hora do almoço. Não demorou muito e partimos para o centro outra vez.
O centro de Tramandaí é uma avenida dividida em três calçadas e duas ruas estreitas de via única. Meus pais resolveram conversar com um parente que trabalha numa barraca de crepes perto da videolocadora onde íamos devolver os filmes de ontem e pegar outros (não era tão boa quanto a nossa, modéstia a parte). Como era alguém que eu não conhecia e que realmente, pouco me interessava, concentrei meu olhar no outro lado da rua, estudando quem passasse. A maioria das pessoas estavam acompanhadas, olhando para os lados - essa cidade atraía muitos turistas. Casais de namorados, irmãos, ou dois rapazes simplesmente passeando por aí, duas amigas apontando para uma vitrine... poucas vagavam sozinhas, mas eram mais interessantes.
Uma garota de saia tropeçou e olhou para os lados assustada, temendo que alguém a tenha visto. Acabei rindo da situação. Perto dela, um homem de terno (vestimenta um tanto estranha para o verão) analisava alguma coisa em um celular de alta tecnologia enquanto caminhava rápido na direção oposta. Cruzando seu caminho, outra garota passou quase esbarrando nele, apressada, puxando pela mão um rapaz mais alto, provavelmente o namorado, para algum lugar.
- Boa sorte. – sussurrei como se ele pudesse me ouvir.
De dentro de uma loja de roupas, por onde o casal passou, saiu uma garota ruiva.
Sempre achei essa cor muito legal no cabelo, e só por isso, não desgrudei os olhos dessa figura interessante. Risos. A cor do cabelo foi o elemento que nos aproximou. Será que meus olhos passariam por cima dela se o cabelo fosse preto? Prefiro não pensar nessa possibilidade, mesmo que irrelevante.
Esquivei-me para visualizar o rosto, mas muitas pessoas passavam na frente e só construí sua imagem aos poucos. Primeiro identifiquei a calça xadrez meio cinza, que nunca achei bonita, apesar de que combinava com ela. Depois vi a camiseta branca de manga curta, com a estampa preta de alguma banda nas costas. Deu para perceber que sua pele era claríssima. Por último, identifiquei o tênis All-Star, que também aparentava ser xadrez, mas parecia que por uma brincadeira do destino, seu rosto sempre se escondia atrás de algo.
Enfim o destino cansou de brincar (e funcionou a meu favor, pra variar). Ela entrou numa banca de revista do outro lado da rua que ficava exatamente na minha direção. Abaixou-se para estudar algumas publicações e quando tirou uma mecha de cabelo do rosto, pude vê-la de relance. Foi muito rápido e ainda estava longe, mas deu para ter uma idéia. Caramba, ela era linda. Um rostinho delicado... e queria ter mais detalhes para descrevê-la, mas não conseguia. Precisava me aproximar.
Ela pegou uma revista grande na mão, virando a capa para mim enquanto lia algo no verso. Aproximei-me sem perceber, equilibrando-me no meio-fio para analisar as expressões em seu rosto. Interessante, era como se conseguisse transportar tudo que sentia para discretas expressões faciais. Agachada diante da prateleira franziu a testa, juntou as sobrancelhas... parecia estar discutindo consigo mesma. Um sorriso revelou-se e num pulo, dirigiu-se ao caixa e depositou a revista no balcão, enquanto tirava algumas notas vermelhas do bolso, com um sorriso satisfeito no rosto. E que sorriso.
Encontrava-me ainda apoiado no meio-fio, quando senti uma estranha atração, como se uma segunda voz em minha cabeça me ordenasse a fazer algo a respeito. Quase sempre que essas vozes me davam ordens, algo ruim acontecia. Por isso eu evitava obedecê-las.
- Pai, vou olhar umas revistas e já volto. – é o que me lembro de ter dito antes de atravessar a rua.
Segundos depois, a curta distância, pude ver detalhes que antes não percebi, como sardas quase invisíveis, olhos verdes claros e um pequeno sinal acima da sobrancelha esquerda. Ela era poucos centímetros menor que eu.
- Hei! – exclamei como se a conhecesse.
Encontrou meus olhos, curiosa e confusa.
- Ah. – de repente, meu plano de ação se despedaçou e o fato de eu estar ali perdeu o sentido. – Eu... nada, esquece.
Não foi uma saída muito inteligente. Foi cúmulo da idiotice, na verdade. Pelo menos estava a uns bons duzentos quilômetros de minha cidade e não teria que vê-la novamente para relembrar a mancada e a humilhação.
Dou crédito a Alice por ser a pessoa curiosa que é, não deixando aquele rapaz idiota escapar sem dar explicações. Devo a ela nossa primeira conversa.
Já me virava para sair quando me chamou – e sem saber, mudou tudo.
- Você mora aqui?
Meu coração pulou no peito, caiu no chão e voltou à sua posição original.
- O quê? – perguntei confuso.
- Perguntei se você mora aqui. – sua voz era suave.
- Não sei... – falei lentamente, até perceber que dava uma resposta sem sentido. – Digo, não, estou de férias.
Parecia simpática. Pensei em ir embora sem falar nada, mas aquela segunda voz me ordenou novamente.
- E você, mora aqui?
- Moro sim, há anos.
- Tipo quanto tempo?
- Tipo 15 anos. – disse sorrindo.
- Ah. – sorri, sem razão.
A conversa era agradável, apesar de desajeitada. Queria continuar, então falei a primeira coisa que veio à cabeça.
- Que revista você comprou? – fiquei feliz por não ter falado besteira dessa vez.
- Rolling Stone. Tem muita coisa sobre música e cinema, eu gosto. – explicou.
- Parece legal. Gosto de cinema e principalmente de música.
- Você toca violão? – chutou.
- Sim.
- Canta?
- Não.
- Eu canto.
- Sério?
Assentiu com a cabeça. Não era a toa que sua voz era tão linda. Ela era linda (eu pensava isso a cada dois minutos).
- Escuta... – começou, depois de dois segundos em silêncio. – Tenho que ir.
Não, não vá. Eu quase disse.
- Podemos conversar mais... amanhã, se quiser.
- Claro. – respondi sem pensar. Mentalmente soquei meu próprio rosto.
Ela riu. Tinha uma risada adorável.
- Garoto engraçado. - sorria.
- Ahn, sim. Meu charme é o rastro de destruição que deixo por onde passo.
Mais uma vez, ela riu.
- Então é melhor nem conversarmos amanhã, vamos destruir tudo. - brincou.
- Então me passe apenas seu telefone. - de onde veio isso?
- Danadinho. - ainda bem que ela levou na brincadeira, porque odiei ter falado aquilo. - Mas aqui... – ela sorriu, revelando uma caneta. – Vou anotar meu endereço.
Puxou um pequeno quadrado de papel de um bloco no balcão e inclinou-se para escrever algo. Senti o suor na testa. Por fim, ela tampou a caneta, sorrindo torto.
- Se não aparecer, eu vou entender. Você nem me conhece. – riu e aproximou-se, entregando-me o papelzinho. – Mas, se aparecer, vou gostar. – e virou as costas, partindo.
Não pisquei durante todo o tempo, e respirei fundo lembrando de como se respirava. Com certo receio, li o que havia escrito. O textinho estava espremido e torto, quase não coube.
“Av. Emancipação, Hotel Beira-Mar, 205, 15h, amanhã.”
Essa guria é louca, lembro de ter pensado. Por que passaria seu endereço para um desconhecido, marcando um encontro? Talvez seja uma aprendiz de serial killer. E se eu fosse o serial killer? Não me surpreenderia se seu nome fosse Lolita ou... Dexter.
Minhas opções eram simples: ir ou não ir. Quantas vezes na vida uma garota foi legal comigo? Quantas vezes isso ainda pode acontecer? Respostas: "nunca" e "nunca mais".
Não era algo muito otimista para se pensar, mas a oportunidade era tão irresistível, interessante demais para deixar em branco. Dali a alguns anos, eu me perguntaria “E se eu tivesse ido?” Seria muito melhor se eu pudesse contar aos amigos o que aconteceu, mesmo que fosse apenas traquinagem de uma assassina reclusa e incrivelmente bonita. Uma femme fatale. Nem pensei muito em não ir, já havia decidido.
“Se aparecer, eu vou gostar”, ela disse. Que jogo psicológico.
O dia seguinte amanheceu claro, sem nuvem alguma. Se acreditasse em superstição, seria um bom sinal.
Era inevitável que pensasse nela, e foi exatamente o que fiz até o momento do encontro. Por mais que dissesse para mim mesmo, “não pense nisso”, “vai dar tudo certo”, “ela não vai me matar”... Não consegui ler nada, a não ser o que estava escrito em minha mão.
- Por que está olhando para esse papel? – meu pai quis saber.
- Nada não. – disfarcei.
Só depois de analisá-lo pela centésima vez, percebi que era o endereço de um hotel. Morava em outra cidade também? Isso eu descobriria mais tarde.
A parte chata disso tudo foi pedir permissão pros meus pais. Temi que não me levassem a sério e me impedissem de ir. Então, menti. Nada louvável, nem motivo de orgulho, mas se contasse o que realmente ocorreu, duvido que me liberassem. Disse-lhes que a conheci na banca, mas que conversamos por bastante tempo e nos demos muito bem, por isso tinha seu endereço. E de acordo com minha versão, quem pediu o endereço fui eu, e cortei a parte em que eu pensava "que garota atirada" e "será que ela vai me matar?". Demorou um pouco, mas acabaram cedendo. Ignorei seus sorrisos maliciosos.
Primeiro fizemos o básico do dia, o lanche no hotel, a passada no supermercado, almoço em algum restaurante conhecido e de volta ao hotel. Então era minha hora de se preparar.
Após um bom banho, procurei vestir-me informalmente. Ainda bem que soprava uma brisa congelante na rua, porque assim poderia usar calça jeans (odeio bermudas). A camiseta de manga curta era verde escuro, com riscos pretos. Nada mal, pensei ao olhar no espelho.
Sacudi a cabeça. Estava começando a me achar.
Não havia nenhuma razão para alguém como ela seduzir alguém como eu.
Olhei para o espelho mais uma vez.
Nenhuma.
Desci as escadas devagar, deixando que cada passo fosse um pensamento sobre o que aconteceria em quarenta minutos. Como ela tinha o fator imprevisibilidade do seu lado, não cheguei à conclusão alguma.
Finalmente na rua, puxei o celular do bolso e constatei que tinha tempo de sobra. Mesmo assim não me demorei, fui em direção ao centro para encontrar aquela multidão de pessoas e não pensar mais no assunto.
Infelizmente, não estava tão ruim quanto eu esperava.
A essa hora, a maioria das pessoas estavam em restaurantes, bares ou em casa. Fui caminhando pela calçada do meio, a menos movimentada, seguindo sempre reto. Passei por vários locais conhecidos, bancas, restaurantes, tabacarias, tentando prestar atenção em besteiras. Serviu para esfriar a cabeça.
O Hotel Beira-mar era um dos maiores e mais completos da cidade, e de longe chamava atenção. O prédio era baixo, mas largo, cheio de sacadas idênticas em forma de “u”. No térreo haviam várias lojas de roupas, sapatos, um restaurante e uma livraria. Ficava na esquina, no centro, e não muito longe da praia, justamente por isso era frequentemente lotado. Demorei a encontrar a porta de entrada, entre tantas. Finalmente lá dentro, tive que avisar a recepcionista que era uma visita. A moça educada me indicou as escadas.
Já não estava tão nervoso. Convenci-me de que, não importa o que acontecesse, riria depois, mesmo que no final tivesse que me jogar da janela e quebrar uma perna para fugir dela. Nem sabia por que estava nervoso.
Subi os lances até o segundo andar e dei cara com um corredor infinito. Fui para a direita, mas o primeiro quarto nessa direção era o 215. Voltei, e quase no final do corredor oposto, estava o 205. Bati na porta duas vezes e aguardei. Surreal estar aqui, tão inesperadamente.
Quando escutei o trinco se abrindo, foi como se a onda de ansiedade voltasse com força total. Decidi não falar nada, apenas esperar e deixar acontecer.
Assim que a porta abriu, meu sorriso nervoso sumiu e desviei o olhar tão rápido que o pescoço estalou. Foi rápido, mas era ela, definitivamente era a mesma garota. Estava vendo-a completamente.
Completamente... porque vestia apenas roupas íntimas.
- Você veio! – sorriu, sem demonstrar absolutamente nenhum sinal de vergonha.
Tentei sorrir, mas estava confuso.
- Ah – ela entendeu e riu de si mesma -, não se preocupe. É igual um biquíni.
De alguma forma, fazia sentido, mas não me ajudou nem um pouco. Continuei tenso e desviando o olhar.
- Pode olhar se quiser. – provocou.
- É-é melhor não. – gaguejei.
- Eu deixo. – divertia-se com meu desespero.
- Não. – tentei dar firmeza na voz. Ela riu.
- Entre logo!
Obedeci. Enquanto ela trancava a porta, estudei o lugar para esfriar a cabeça. A primeira sala poderia ser maior, ou não, que a do hotel onde eu me hospedo. Mas o ambiente era diferente, frio. As paredes eram brancas e as luzes fluorescentes, deixando tudo brilhante demais. Para minha surpresa, havia apenas uma cama nessa sala e no quarto grande, apenas um grande futon oriental no chão. O pequeno armário embutido que deveria estar cheio de roupas, estava com uma porta escancarada, revelando alguns cosméticos, uma mochila e alguns livros empilhados. Ao lado do futon havia roupas dobradas em cima de um pequeno tapete, e, encostado na parede havia um violão preto. Ao lado direito, quase na sacada, um frigobar. A não ser pelo armário, não havia mobília.
- Licencinha. – pediu me empurrando para dentro do cômodo. – Sente onde quiser. – disse ironicamente, pois só dava para sentar no chão.
- Ok. – sentei na ponta do futon.
- Vou trocar de roupas. – disse divertindo-se, ciente de meu desespero.
E disse “trocar”, não “colocar”. Engoli em seco, encarando a parede oposta enquanto se trocava atrás de mim. Demorou poucos segundos.
- Pronto, pode olhar. – disse. Ao me virar, constatei que vestiu apenas um short de pijama curtíssimo e uma camiseta branca e velha, meio transparente. – Como estou?
- Ótima. – “melhor que nada”, quase falei. Tentei ignorar a leve transparência da camiseta.
Ela jogou-se no futon, caindo esparramada como uma boneca de pano. Rolou e se espreguiçou com vontade, para em seguida relaxar completamente e descansar por alguns segundos de olhos fechados. Deitada daquele jeito ao meu lado, ficou claro; não se importava se eu olhasse. Enfim, me rendi, mesmo sentindo uma pontada de culpa. Analisei seu corpo durante o curto espaço de tempo. Tinha pernas longas e a pele clara, seu rosto era pequeno, com contornos delicados, e o cabelo ruivo era meio dourado. A boca rosada destoava de sua palidez natural. Eu ri.
- Porque está rindo? – perguntou levantando uma sobrancelha. Eu ri porque ela era perfeita.
Pigarreie e mudei de assunto.
- Eu tenho algumas perguntas.
- Você não respondeu.
Esperei em silêncio.
- Porque estava rindo?
- É que... – frio na barriga. – Você é muito bonita.
Aparentou surpresa. Trocamos olhares por um segundo que durou uma eternidade.
- Então, - quebrei o silêncio. – Você canta é?
- Faço aula há dois anos. – levantou já descontraída.
- Que legal. Você gosta de rock?
- Só rock. – sorriu.
- Idem. – tinha um sorriso contagiante. – E violão? Você toca também?
- Estou nos primeiros passos ainda. Machuca os dedos.
- Acostuma com o tempo.
- Foi o que me disseram. Mas ainda prefiro cantar.
A conversa corria bem, e mais uma vez fiquei feliz por não falar alguma besteira.
- Tem alguma música conhecida que você saiba cantar?
- Hmmmm... – olhou para cima, pensando. – Tenho um gosto bem estranho para música.
- Estranho como? Porque também não tenho gosto muito popular.
- Estranho tipo, de música clássica a rock gótico.
- Oh. – franzi a testa. – E achei que eu era eclético.
Ela riu de uma forma tão adorável que não consegui pensar em mais nada.
- Que bandas você mais gosta? – perguntou.
- Radiohead, Muse, Coldplay... tem muito muito mais, mas essas são as que mais escuto. Tem Nine Inch Nails, Paramore, Green Day... – tagarelei falando as primeiras que me apareciam na cabeça.
- Não conheço Radiohead.
Surpresa, pensei com sarcasmo. Será que sou o único fã da banda aqui no Sul do Brasil? Mas o tom curioso em sua voz me fez crer que ela estava afim de conhecer.
- O nome é legal. – ela completou. – E você gosta da minha banda preferida, Paramore.
- Pelo menos uma você conhece. – ri, mas soou como se houvesse insultado sua inteligência então completei rápido. – Digo, na minha cidade se alguém conhece uma já é surpresa.
- Sei como você se sente.
Ela levantou e caminhou até o armário para pegar a mochila. Atirou-a no chão perto de mim e sentou ao meu lado, talvez próxima demais. Puxou da mochila um caderno surrado com várias folhas dentro, parecia procurar algo em especial.
- Aqui. – pegou duas folhas e jogou o caderno no chão, sem muito cuidado. Não era a toa que estava surrado. – Eu sei cantar essa música. Por acaso você sabe tocar?
Olhei para a folha. Era da Paramore.
- Sei sim, amo essa banda.
- Sabia que o nome veio do francês ‘paramour’, que significa ‘amor secreto’?
- Não sabia.
Pensei no assunto por um momento. Ela ofereceu-me o violão e uma palheta, em seguida arrumou as duas folhas meio amassadas no chão, à nossa frente. Passei os olhos rapidamente para lembrar os acordes.
- Essa música é muito bonita. – falei.
- Sim. Linda. Muito emocional, por isso gosto dela. – disse de uma forma assustadoramente sensível, como se estivesse triste, se confessando. Um detalhe que me preocupou um pouco, mas que fiquei com medo de perguntar o que era. Talvez outra hora.
Toquei alguns acordes com vontade, sentindo o som invadir o quarto. Chequei se o instrumento estava afinado.
- Esse quarto tem uma acústico muito boa. - comentei. - Pronta?
- Pronta. – disse respirando fundo. - Mas olha, eu acho que não canto muito bem, então sinta-se livre para criticar o quanto quiser.
- Bom, aposto que vou me surpreender.
Ela sorriu.
- Um, dois, três...
Comecei empolgado, sentindo a caixa acústica vibrar a cada batida. Estava curioso, ansioso até para escutar sua voz. Toquei a introdução duas vezes, como dizia na folha. Então, era a vez dela.
“I am finding out, that maybe I was wrong.” Cantou. Sua voz era poderosa, mas doce. Mesmo nos momentos em que cantou com garra, arranhando, era incrivelmente suave. Quase parei de tocar para escutar apenas sua voz.
“Stay with me, this is what I need, please.”
Aqui entra a parte com guitarras, que improvisei tocando com mais força.
“Sing us your song and we’ll sing it back to you.”
Não sabia como ainda continuava tocando, de tão concentrado que estava em sua voz.
“This heart, it beats, beats for only you”, quase falou, como se conversasse.
“My heart is yours.” Cantou com paixão, repetindo a frase até o ultimo acorde soar no violão.
Caramba.
Ela torceu o nariz.
- Por que está rindo? – perguntou-me com insegurança.
- Porque essa foi a coisa mais linda que já ouvi. – sorri.
Ela sorriu também, corando. Engraçado envergonhar-se justamente com isso, estando praticamente seminua.
Ainda sentada, recolheu as folhas, enfiando-as de qualquer jeito no caderno.
- Você gostou mesmo? – insistiu.
- Sim, acredite. – confirmei.
- É que sou muita crítica em relação a isso.
- Mas pode acreditar, foi ótimo. – não cansava de falar, ainda impressionado.
Levantou, ainda cética, aparentemente. Parecia que ia perguntar alguma coisa, mas parou. Pegou o caderno e colocou de volta na mochila, levando-a para o armário quase vazio.
- Você já cantou em alguma competição ou algo do tipo? - perguntei.
- Não. - ela mordeu o lábio, disfarçando um sorriso. - Não, nunca.
- Deveria. Já pensou em participar do American Idol?
Ela riu alto.
- Não, mesmo que quisesse, brasileiros não entram.
- O nome é "american" Idol e estamos na américa. Dava para fazer um protesto. Talvez eles mudem o nome para "USA Idol".
- É, talvez. - ela estava um pouco embaraçada ainda, enquanto guardava as folhas. - Um dia desses podemos tentar.
"Podemos"? Tipo, nós dois juntos? Claro, sem problema, pensei.
- Quer tomar alguma coisa? – perguntou enquanto arrumava sua bagunça. – Tem refrigerante no frigobar.
- Aceito.
Terminou a arrumação (na verdade ficou a mesma coisa) e dirigiu-se ao frigobar. Abaixou-se e abriu a porta, pegando duas latas de refrigerante de limão. Fechou a porta e abriu-as encima do eletrodoméstico.
- Dizem que bebidas gaseificadas fazem mal para a voz, mas não ligo.
Sua voz é linda, quase falei, mas até eu já estava me achando chato por isso. Ofereceu-me uma lata, já tomando um gole da sua. Em seguida sentou ao meu lado novamente. Tomei um gole, soltando um “ah” pelo gás que ardeu na garganta.
Agora ela estava pensativa, quieta, prestando atenção apenas na bebida.
- Eu nunca tinha cantado para alguém antes. – disse de repente.
- Nunca mesmo? – não acreditei. – Posso me considerar sortudo então.
- Sim, pode. – sorriu. – É que sou tímida.
Quase ri. Ela? Tímida? Antes que eu pudesse pensar em como formular “então por que está seminua?” de forma agradável, ela continuou.
- Geralmente não atendo a porta com roupas íntimas também. – riu. – Foi um deslize. Mas não me importei, achei engraçado.
- Achei difícil rir na hora.
- Desculpe, não era para assustar. Em casa fico bem à vontade, sabe? Esqueci de me vestir.
- Esqueceu? – perguntei atônico. – Detalhe inconveniente para se esquecer, não?
Rimos juntos. Pensei por um momento em uma piada machista, afinal, que homem não gostaria de uma garota que simplesmente esquecesse de se vestir? Que coisa horrível de se pensar...
- O que você pensou na hora?– disparou rindo mais alto ainda.
Pergunta complicada.
- Ah, entre outras coisas, "que loucura", "o que está acontecendo?", "isso é bom?", etc. - respondi.
- Haha. - gargalhou. - Aposto que também pensou "quanto tenho que pagar para ela tirar as roupas?".
- Não precisei pagar para isso.
Ela riu bem alto agora. Acabei rindo junto, mesmo estranhando a graça distorcida de minha piada rude.
- Você entende que não é algo que acontece todo dia. - falei.
- Entendo sim.
- Ah. – respirei fundo. – Não entendo como não se envergonhou nem um pouco.
- Era questão de analisar a situação. Poderia me constranger, constranger você ainda mais, acabar com a graça de tudo e lá se vai nossa diversão. Como pode ver, aqui estamos nós. Tranquilos.
- Em termos. - referi-me a palavra "tranquilos". - Mas gosto de pensar assim. E é difícil encontrar alguém que concorde.
- Verdade. Odeio quem se estressa por qualquer coisa.
- Devia conhecer minha mãe.
Ou não, não devia. Iria espantá-la.
Ficamos em silêncio novamente, e uma série de pensamentos conectados me lembrou que estávamos num hotel.
- Quase esqueci – comecei. – Por que está num quarto de hotel?
- Ah, sim – ela também lembrou. – Meu pai é o dono desse hotel. Como esse quarto tinha camas faltando, eu pedi para morar aqui. Sempre quis morar sozinha, então fechamos o acordo. Claro, no começo eles pensaram que era uma crise de adolescente rebelde, mas não sou rebelde não, apenas gosto de ficar sozinha. Não foi fácil, claro, mas como não iam me perder de vista, ficou tudo bem. – concluiu, e percebeu minha expressão. – Porque está rindo agora?
- Imaginei o que seu pai faria se você o atendesse na porta sem roupas.
Ela gargalhou, talvez lembrando de que por pouco não fez isso alguma vez. Era fácil rir com ela.
- Então - comecei, lembrando de outra dúvida que eu tinha -, geralmente passa seu endereços para garotos esquisitos que encontra na banca? - minha colocação soou meio rude, mas o sorriso dela me tranquilizou.
- Pode acreditar que não. E você não é esquisito.
- Não? Até minha mãe diz isso.
- Sua mãe é do mal. - brincou. - Mas voltando ao assunto, quer saber por que te convidei para vir aqui?
- Sim.
- Aventura. - pronunciou a palavra com prazer. - Sabe as vezes quando você relaxa e começa a pensar na vida e começa a perceber que não é completamente feliz? Eu precisava disso, de alguma coisa emocionante. Minha ideia genial foi essa. Eu poderia olhar para você e dar as costas, mas eu vi que minha possível aventura estava ali, na minha frente. Também percebi que não estava ali tentando me cantar, apenas... sei lá, estava ali. - ela riu. - Sim, poderia tentar me atacar assim que eu abrisse a porta do meu quarto, eu não sabia absolutamente nada de você. Foi uma aventura um tanto perigosa, confesso.
- Interessante. - refleti. - Fico feliz em participar de sua aventura.
Ela abaixou o olhar sorrindo e ficou um pouco surpresa olhando para sua camiseta.
- Isso é quase transparente. - indagou.
- Eu percebi.
- Claro que percebeu. - disse com malícia.
Quando os risos cessaram, lançou uma nova proposta.
- Vamos sair para comer alguma coisa? Estou com fome.
- Claro. – agradeci em silêncio a meu pai, que me lembrou de levar dinheiro.
Num pulo, pôs-se de pé, e sem avisar, tirou a camiseta. Em um milésimo, voltei a cara para a parede.
- De qualquer forma, é bom avisar antes de fazer isso. – brinquei. Ela riu satisfeita, vendo que sua brincadeira funcionara.
Vinte segundos se passaram enquanto ela se vestia e meu coração desacelerava.
- Vamos! – animou-se.
Levantei e ao me virar para vê-la, percebi que vestia a mesma roupa do dia anterior. Sem perceber, sorri mais uma vez.
Descemos as escadas. Na recepção, ela acenou alegre para a moça – provavelmente são amigas. Na rua estava muito mais quente do que lá dentro. O vento forte persistia com a mesma intensidade de antes, mas não incomodava.
- Tem algum destino específico? – perguntei.
- Não. Vamos caminhar por aí. – disse, arrumando o cabelo que voou em seus olhos. – Ah, na verdade, queria passar naquela banca de novo.
- Beleza.
Direcionamos-nos para o lugar em uma diagonal para o outro lado da rua, atravessando toda a extensão das calçadas de uma vez só. Estava talvez com mais pessoas do que mais cedo – seria a hora boa para tomar um café (ou um refresco) e fazer um lanche. Acho que naquela cidade não existe hora ruim para isso.
Já entrando na banca, cumprimentou o homem que sentava atrás do balcão organizando contas com uma calculadora.
- Ah, olá, Alice! – sorriu, reconhecendo-a.
Alice.
Havia esquecido de perguntar seu nome.
- Alice. – repeti em voz alta. Ela percebeu, levando a mão à boca.
- Não acredito que esqueci de falar meu nome. – bateu na própria cabeça de leve.
- Esqueci do meu também. É Dante.
Alice olhou para cima por um momento.
- É um nome bonito.
- Obrigado. O seu também.
Assentiu com a cabeça e voltou sua atenção para a prateleira. Vasculhou entre as revistas amontoadas, descobrindo uma um tanto pequena escondida atrás de uma Rolling Stone, que é uma revista, no mínimo, gigante.
- Essa é da mesma edição que comprei ontem. – mencionou. Na capa, o rosto de Kurt Cobain, ressaltando a reportagem especial sobre a trajetória do Nirvana e seu final trágico. – Ah, e meu sonho de consumo! – disse ao pegar um exemplar plastificado de Eclipse, o terceiro capítulo da saga Crepúsculo.
- Você também é uma fã? - perguntei despretenciosamente.
Encarou-me, surpresa.
- Você é um fã? – exclamou. – É o primeiro garoto que conheço que gosta disso.
Suspirei.
- Acho que isso me torna oitenta por cento menina e vinte por cento menino.
Alice gargalhou.
- Deve ter algo que o torne no mínimo cinqüenta por cento menino.
- Jogo futebol, isso conta? – chutei.
- Deve contar. – sorriu. – Estava brincando. Já considero você cem por cento só por não ter vergonha de falar o que sente, como a maioria dos garotos que conheço. - ela parecia falar de alguém específico.
- Ah. – foi o que consegui falar.
Quando pensei no assunto, percebi que realmente havia ganhado uma grande nova amiga. Pensar naquilo me deixou feliz – uma pessoa divertida e engraçada – que gosta de mim por quem eu sou. Tinha amigos e amigas assim, mas Alice era diferente, e não consegui dizer por que.
- Vou levar essa aqui – concluiu, levantando com a revistinha na mão.
Pagou ao homem sorridente atrás do balcão e saímos.
- E agora? – perguntei olhando para os lados.
- Agora me siga – disse, pegando minha mão e já caminhando rápido para algum lugar.
Puxou-me pela mão o tempo todo, estando sempre um passo à frente. Seu toque não era estranho, apenas me parecia natural.
Primeiro fomos pelo caminho que levava ao meu hotel, mas ela desviou antes de chegarmos perto. Tentei adivinhar onde me levava, sem sucesso.
- Onde estamos indo? – perguntei a certo ponto.
- Espere, estamos quase lá. – sorriu misteriosa.
Só quando viramos a esquina que reconheci a avenida que levava à...
-... Praia. – concluí em voz alta. – Esperava um lugar menos público e mais quieto.
- O que pretendia fazer comigo num lugar assim?
Devo ter corado na hora.
- Não foi isso que eu quis dizer. – tentei consertar, esquecendo o quanto ela adorava me sacanear.
Continuamos caminhando até a ponte de madeira que passava por cima do longo monte de areia que barrava toda a extensão do litoral. Antes mesmo de subir, já escutamos os sons característicos, desde o ruído infinito e uniforme das ondas, até as cornetas dos vendedores ambulantes. No parte mais alta da ponte já era possível ver toda a paisagem. A tarde estava excepcionalmente bonita, o sol bem forte e a água do mar brilhante, embelezando o quadro como se não houvesse algo mais lindo. Ou foi o que pensei, até Alice entrar em meu campo de visão novamente.
Tudo ficou em segundo plano e só então percebi o quanto realmente era linda. A pele clara, os olhos verdes, o cabelo ruivo e desobediente voando na frente do rosto, enquanto tentava segurá-lo com um sorriso leve, rindo de si mesma.
Acho que foi aí que me dei conta do que estava sentindo por ela.
- Porque está me olhando assim? – perguntou corando.
Por dois segundos fiquei mudo. Em seguida, tentei disfarçar.
- Nada, vamos descer. – respondi sem medir palavras. Alice levantou uma sobrancelha, mas ignorou.
Descemos, sentindo certo desconforto ao caminhar de tênis na areia. Igualmente desconfortável estar totalmente vestido ali. O vento levava areia para dentro da camiseta e da calça, arranhando a cada movimento. Sentamos à esquerda da ponte, no monte de areia, onde o vento era parcialmente barrado.
- Prefiro ficar sem roupas aqui. – brincou.
- Hmmm, não sei se posso dizer o mesmo. – ri.
Ficamos em silêncio por vários segundos, talvez um minuto inteiro. Naquela hora, tentava inutilmente desviar de uma metralhadora de sentimentos e fantasmas passados. Estava assustado por causa de tudo. De repente, de um minuto para o outro, todas as emoções que eu tentava evitar voltaram para se vingar. Parecia loucura, irreal. Temia que Alice sumisse numa nuvem de fumaça e eu acordasse a qualquer momento. Lembrei também que em dois dias voltaria para casa, ou seja, não a veria por bastante tempo, talvez por um ano.
Poderia ser apenas uma quedinha, com as complicações da distância pode passar em uma semana. E ela, o que pensa de mim? Sabe que não moro aqui, sabe que eventualmente partirei. Olhei para ela, que fitava o horizonte, pensativa. O que estaria pensando? Era uma das poucas vezes que seu rosto era indecifrável.
Definitivamente não poderia estragar uma grande amizade com uma (grande) paixonite. Não falaria nada, esperaria até um ano, se fosse o caso, para ter certeza absoluta. Só então pensaria profundamente no assunto.
Que piada.
Conheço meu tipo. Não agüentaria duas semanas sem abrir a boca, com ou sem certeza. E isso não era bom. Pensar em me despedir já trazia saudade.
Hoje, rio do desespero repentino que tive no dia. Pensei que cometeria os mesmo erros mais uma vez.
Tentei me acalmar e não perder o controle da situação – era basicamente o melhor dia de minha vida. Não acabaria com um final trágico.
“Melhor dia da minha vida?” Isso soou equivocado depois de um segundo.
Pensei mais uma vez com profundidade. Era uma sensação boa. Quando olhava para ela não pensava em como não tinha coragem para falar algumas poucas palavras, nem em como não entendia o que sentia. Sentia uma alegria calorosa ao vê-la sorrir, o coração acelerava quando nossos olhos se encontravam e o simples pensamento de que alguém possa machucá-la provoca meu lado serial killer.
Não se pode ser analítico com isso. Não há maneira simples de explicar.
Estudei-a mais uma vez. Será que estava ciente de quanto era linda e divertida? Será que sabia o que estava fazendo comigo?
- Então – começou finalmente, sem ânimo na voz. -, você vai embora quando?
Era o tipo de pergunta que eu não queria responder.
- Em dois dias. – suspirei igualmente desanimado.
- Ah... não sou boa com despedidas.
- Idem.
- Que droga. – sorriu levemente sem muita vontade.
- Posso dizer o mesmo. – concordei. O clima da conversa mudou, de repente estávamos melancólicos.
Pensei bem no que dizer em seguida. Acredito na lei “se não tem o que falar, fique quieto”, mas o silêncio parecia pior. A não ser que Alice quebrasse o gelo, precisava falar algo. Não conseguia pensar em nada.
- Sabe... – ela começou e respirei aliviado. Pensou por uma longa pausa e recomeçou. – Essa deve ter sido a melhor tarde de minha vida. Eu não sei o que pensar. Não sei nem se devia estar falando isso, mas... – fitou-me nos olhos. – Vou sentir saudades.
Fora seu discurso mais duro até o momento, a primeira vez que parecia insegura com suas palavras.
E fiquei quase de queixo caído. Ela estava sentindo o mesmo que eu?
- Também vou sentir muita saudade. Já sinto só de pensar em ir embora. – agora eu a fitei nos olhos. – Acho que não me importo em esconder que não estou nem um pouco a fim de partir.
Ela abaixou a cabeça.
- Você não se importa se eu for sincera, certo?
- Claro que não.
- Você parece diferente.
- Diferente? – questionei confuso.
- Sim, não consigo explicar direito.
Refleti por um momento.
- Deve ser da mesma forma que você parece diferente para mim. – soou mais como uma pergunta.
Ela aparentou surpresa, mas logo seu rosto se recompôs.
- Deve ser. – murmurou tristonha.
Vê-la daquele jeito era de cortar o coração em pedaços. Queria abraçá-la, fazer qualquer coisa para ver um sorriso de novo.
- Vale lembrar que ainda temos dois dias. – tentei animá-la.
Ela sorriu de leve.
- Não esperava conhecer alguém como você por aqui.
- São as melhores férias de minha vida, graças a você. - agora isso não sou equivocado.
Dessa vez o sorriso foi largo e natural. Nossos pensamentos eram tão similares o tempo todo, não imaginava uma razão que nos levasse a brigar algum dia. Eventualmente, descobri uma. Mas essa é outra história.
Alice tirou um rabicó vermelho do bolso da calça e usou para prender o cabelo que continuava voando.
- Acho que esse vento não está ajudando a acalmar. – riu.
- Aham. – chequei as horas no meu celular. – E já passam das seis. Eu deveria estar no hotel às cinco. Estranho não terem me ligado.
- Quem está lá com você? – perguntou enquanto levantava batendo nas pernas para tirar a areia grudada.
- Meus pais.
- Acha que devo conhecê-los?
- Sim. Eles vão me incomodar, mas sim. – ri.
- Incomodar?
- Vão dizer “ih, arranjou uma namorada!”, coisas assim.
Divertiu-se com a idéia de meus pais sendo chatos. Acho que deve ser o trabalho deles me incomodar sobre garotas, talvez com a intenção de fazer com que eu tenha vontade de arranjar uma. Se essa era a intenção, devo ter entendido errado.
- Você já namorou? - Alice quis saber.
- Nem perto. Você?
- Perto. - disse com careta. - Mas ainda bem que... saí de perto. - riu da redundância da frase.
Não entendi muito bem o que quis dizer, mas evitei insistir no assunto. Já não era a primeira vez que soava misteriosa com isso. Tendo em vista como consegue falar de tudo sem a menor preocupação, mas nesse assunto parece hesitar, resolvi deixar quieto.
Caminhamos sem pressa em direção ao meu hotel, conversando sobre qualquer coisa. Não houve risos altos nem temas muito longos, foram apenas vários assuntos que pipocavam e sumiam. Paramos numa lancheria para tomar m refrigerante, mas partimos rápido. Não estávamos com cabeça para grandes reflexões, na verdade, estávamos fisicamente cansados.
Na frente do hotel, meu celular tocou – antes tarde do que nunca.
- Eu não disse? – resmunguei sorrindo. Liguei o viva-voz e atendi. – Alô.
- Filho, já devia ter voltado, não? – minha mãe falando rápido e com aquela chatice característica. – Já devia estar saindo do banho na verdade!
- Mãe, estou na porta do hotel. – acalmei-a, e coloquei a mão no microfone para falar apenas com Alice. – Você quer subir?
Ela pensou por um momento.
- Acho melhor não, estou cansada demais. E pelo jeito, você tem que se apressar. – apontou para o celular.
- Certo. – sorri e voltei à ligação. – Mãe, já estou subindo, ok?
- Está com uma garota? – questionou-me com desdém.
Suspirei, olhando para Alice com um “eu avisei” no rosto. Ela riu, entendendo do que eu falava mais cedo.
- Sim, aquela que me deu o endereço. – sorri mais uma vez para ela.
- Estavam juntos esse tempo todo? – soltou uma arfada falsa. – Aposto que já rolou um clima então?
Acabei rindo junto com Alice – cada palavra de minha mãe confirmava absolutamente tudo que eu esperava. Desliguei o viva-voz e me despedi rápido.
- Estou subindo. Até logo. – suspirei exageradamente para dar ênfase. – Viu só?
- Aham! Sua mãe é engraçada.
- Não acho. – brinquei.
Respiramos fundo. Hora de partir.
- Então é isso. – ela disse.
- É isso. Por hoje. – completei.
- Sim. Vamos nos encontrar amanhã?
- Com certeza.
- Mesmo lugar, mesmo horário?
- Pode ser. Combinado.
Estava com os joelhos tremendo de felicidade e nervosismo. Será que o dia seguinte poderia ser melhor que aquele?
Alice ainda estava ali, hesitando.
- Isso é bem difícil mesmo.
Ela mantinha a cabeça baixa, e reconheci em suas feições algo que indicava que mais uma vez, discutia com suas próprias idéias.
Então, levantou o olhar lentamente, encontrando meus olhos. Revelou um sorriso de canto de boca.
- Sei que não vou me arrepender disso. – quase sussurrou, misteriosa.
Não entendi na hora.
Ela se aproximou o suficiente para me fazer perguntar que diabos estava fazendo. Seu rosto estava a centímetros do meu. Seus olhos provocando. Estava tão perto que senti seu hálito doce.
Foi tão rápido que não tive tempo de imaginar nada.
Nossos lábios se tocaram delicadamente. Sentia meu coração batendo forte, minhas pernas tremendo enquanto o tempo parava naquele beijo, num mundo onde só existia eu e Alice, e onde aquele toque era tudo que importava.
Ela parou, distanciando-se devagar.
- Nos vemos amanhã. – disse com o rosto corado, e então partiu rápido, caminhando apressada como se estivesse fugindo.
Depois de alguns passos, virou-se e sorriu.
- Oi. - ela resmunga meio acordada.
Devaneando, esqueci que aquilo tudo foi há dois anos. Não percebi que estava acordada.
- Bom dia. - sorri.
- Por que não me acordou antes?
- É tão bonitinha dormindo.
- Há - abriu aquele sorriso largo que eu adoro. - Vem aqui.
Puxou-me para perto e me presenteou com um beijo. Ficamos nos olhando em silêncio.
Pensei nostalgicamente na felicidade que senti quando Alice me contou, igualmente feliz, que estava se mudando para cá. Os pais de Alice estavam trabalhando demais, a cidade era muito movimentada e barulhenta no verão, estavam estressados. Uma cidade tranquila? Araranguá, disse Alice a eles. A felicidade que sentimos não se comparava a de uma criança que foi e voltou da Disney World depois de andar em todos os brinquedos. Não chegava nem perto. Era mais para a de uma criança que tinha um poster da Disney no quarto, e olhava para ele todas as noites, sabendo que nunca visitaria o lugar. Décadas depois, com 60 anos de idade, alguém diz "ei, vamos à Disney World?".
- Você parece triste. – disse Alice, preocupada.
- Estou triste porque finalmente estamos juntos e tenho que deixar você sozinha de novo. – falei de uma vez só. Já havia pensado na frase desde o dia que soube da “oportunidade”. Não queria pronunciá-la por soar errada, mas era assim que me sentia.
- Você nunca me deixou sozinha. Sempre esteve lá quando precisei.
- “Lá” significando “lá no outro estado”. – resmunguei.
- A distância nunca nos separou, e nem vai.
Suspirei, lembrando mais uma vez do passado.
- Pensar em ficar longe de você me entristece muito. – acariciei sua bochecha com um dedo. – Preciso de seu sorriso diariamente.
Ela pensou por um momento, levantando a sobrancelha.
- Isso foi piegas. – disse sorrindo. - Ao extremo.
Rimos juntos por um segundo, descontraindo.
- Vou sentir falta disso. – reforcei o que dizia antes.
- Minha vez de soar brega então. – riu Alice e se aproximou. – Não existe um dia desde que nos conhecemos que eu não tenha um sorriso no rosto. Por causa de você.
Um caroço se formou em minha garganta.
- Isso foi lindo.
- Foi terrivelmente meloso, mas é verdade.
Abraçou-me com força, e pude sentir seu coração.
- Sempre que escuto seu coração, lembro de como roubou o meu.
- O meu não precisou roubar, porque lhe dei.
- Posso lhe considerar uma ladra então?
- Continuaria me amando?
- Sempre.
- Então pode.
Sorrimos em perfeita sintonia. Mais um momento brega para nossa história.
- Te amo sabia? - sussurrou.
- Também te amo, mas seu bafo está horrível.
Arfou em uma simulação de ofensa e partiu para cima, como numa briga. Mas uma briga de cócegas e risos.
Alice partiu cedo – pelo menos para mim. Antes das duas da tarde sua mãe ligou pedindo ajuda em umas compras no mercado, o que não foi algo que a deixou exatamente feliz. Muito menos eu, que sozinho, tentava encontrar alguma motivação escutando música.
When will this loneness be over?
O verso, cantado dramaticamente, entrou para ficar cravado em minha mente. Sou exagerado - essa música realmente mexe comigo.
Era um feriado bastante conveniente, odiaria ter qualquer tipo de atividade que exigisse concentração. Estava deitado no sofá, escutando um show de rock barulhento num volume razoavelmente alto. Era um típico dia em que não queria fazer nada, mas ao mesmo tempo não queria não fazer nada. Então, tentei tocar violão, ler, comer... só não havia tentado escrever, mas sabia que também não funcionaria. O fato de não ter nada para fazer se voltou contra mim.
Apodrecer sentado no sofá também não era a melhor idéia. Levantei devagar, entontando por um momento. Esperei a cabeça parar de girar e caminhei até a janela.
Morava encima da videolocadora – era um pequeno prédio de dois andares. Para um feriado, havia bastante movimento de pessoas e carros pela rua. Se algo me incomoda em morar no centro, é essa constante movimentação.
Observei um casal da minha idade atravessar a rua. Eles se abraçam. Suspiro.
Fui até a cozinha e abri uma lata de leite condensado.
Talvez minha angústia se afogue no açúcar.
Depois de alguns minutos, o telefone tocou. Dificilmente seria quem eu queria que fosse, mas mesmo assim saí correndo. Atendi no segundo toque.
- Alô.
- Filho, desce aqui, rápido. – minha mãe falou depressa, desligando sem esperar resposta.
- Realmente, não era. – murmurei rudemente para o nada.
Com certeza algum surto de locações inesperado a estressou e como sempre, quem tem que escutar sou eu. Além do mais, ajudá-la exige concentração, coisa que me faz falta. Tanto faz, pensei. Reclamar só criaria confusão e não me tiraria do trabalho. Quem mandou reclamar por não ter o que fazer?
Troquei de roupas e desci as escadas com preguiça.
Como pensei, havia mais ou menos sete pessoas lá dentro, o que já dava a sensação de lotação. Só apareci e com um gesto, ela mostrou o que me aguardava: uma fileira de quase cinqüenta DVDs para serem limpos e guardados. Ótimo.
O trabalho não passou rápido. Além do abaixa e levanta constante, pelo menos metade do total estava em capas trocadas – será que ninguém percebe que existem números nas capas por uma razão?
Terminado o serviço irritante, sentei na cadeira do computador o mais rápido possível.
- Nem chegou e já está no computador. – mamãe resmungou.
- Novidade. – resmunguei de volta, ignorando.
Deixei uma seleção de músicas que estava separando para Alice rodando no fundo e abri o MSN. Meu computador não sendo uma maravilha, demorou quase um minuto para carregar todos os contatos.
Cliquei em Alice e já comecei a conversar.
“Oii, tudo certo?”
Enquanto aguardava resposta, carreguei uns dois sites de cinema e música em busca de qualquer novidade. Quando ia começar a ler uma matéria, Alice respondeu.
“Tudo bem agora que já guardamos todas as compras! E com você?”
Digitei desanimado.
“Foi um dia cansativo e chato. E sem você ;D”
Ela respondeu imediatamente.
“Haha. Pra mim também foi chato sem você... Parece que vou ter que me acostumar.”
“Somos dois.”
Levantei para me servir um copo de café e voltei. Havia mais uma resposta.
Ao sentar, percebi que estava sorrindo.
“Sabe, às vezes acho que não mereço tanto amor.”
Apressei-me para responder.
“Você merece muito mais amor do que posso dar. E isso significa que estou dando todo o amor possível.”
Passaram-se alguns segundos e Alice começou a digitar.
“Isso foi lindo. Faço o mesmo por você, viu?” Logo, outra mensagem surgiu. “Percebeu que estamos bem emocionais nesses últimos dias?”
Eu ri baixinho.
“Percebi. Difícil não ficar.”
“É.” Ela continuou. “Mas é bom colocar tudo pra fora. Falando nisso, eu preciso deixar uma coisa bem clara.”
“O quê?”
Como passaram alguns segundos sem reação, voltei à matéria que nem havia começado a ler. Falava que o novo álbum da minha banda preferida saia em setembro. Comemorei em silêncio. Vasculhei a lista mais uma vez, procurando qualquer outra coisa interessante.
- Filho – mãe surgiu na porta -, atende o telefone aí.
Não percebi que estava tocando. O telefone do escritório era temporário, enquanto o outro não voltava no conserto. Era velho e quadrado, de uma cor beje fraca. Seu toque era quase inaudível.
Tirei-o do gancho.
- Alô.
- Eu te amo. – disse-me com um sorriso sonoro.
Não pude deixar de sorrir também.
- Como continua me surpreendendo assim? – perguntei retoricamente. - Nem na comédia romântica mais melosa esse tipo de coisa acontece.
- Bom, nossa vida é uma "comédia romântica dramática", se isso existe.
Foi mais uma longa conversa. Pensei em como poderia ser assim em um ano e alguns meses, e como seria bom. Na teoria, pelo menos.
Enquanto conversava, procurei por uma música em especial e deixe tocando num volume que me permitisse ouvir a letra.
O verão foi e se passou.
Acorde-me quando setembro acabar.