Paramour - Capítulo I
I
- Não vou. Ponto.
Parecia uma criança chata, daquelas que as mães tem vontade de simplesmente mandar para um internato pelo prazer da liberdade. Pelo menos, eu estava com a razão.
- É uma grande oportunidade. Tem certeza? – insistiu minha mãe, com uma paciência admirável. - Não pode abandonar isso assim, sem nem pensar direito.
- Não quero ir.
- Você acha que não deve ir, é diferente. – aproximou-se. – Já conversou com ela?
Levantei o olhar. Eu temia isso.
- Não.
- Deveria ver o que ela diz.
- Eu sei o que ela vai dizer, por isso não quero conversar com ela. - falei, revelando o motivo de minha relutância.
- Ninguém nunca sabe o que ela vai dizer. – brincou. Realmente, Alice é muito imprevisível.
Posso dizer que tenho o tipo de namorada perfeito - o tipo que me ama de verdade. Lembro de quando não queríamos nos apegar tão cedo, quando ainda brincávamos de namoro à distância. Era besteira, ambos sabíamos que era impossível refrear isso. Alice comparou uma vez seu amor com o de Bella, de Crepúsculo. Eu pensei "Uau, então você tem problemas mentais como a Bella?". Mas estava brincando - só eu posso fazer piadas com Crepúsculo. Quem falar mal do Edward perto de mim leva pau.
Mas estou desviando. Como essa garota poderia aprovar a idéia de eu me mudar para... Londres? Se não me engano, Bella quase cometeu suicídio na ausência de seu vampiro favorito. Ok, não sou um vampiro gostosão, mas mesmo assim. Verdade que deve ser uma linda cidade com muita coisa para se fazer, muita gente para conhecer e lugares para visitar; gosto de futebol e gostaria de fazer novos amigos - seria uma ótima experiência visitar a Inglaterra, país de onde vem noventa por cento das bandas que escuto. Dito isso, ficar longe dela não é uma opção. Essa garota é minha vida.
- Essa garota não é sua vida. – disse-me como se lesse meus pensamentos.
Abaixei a cabeça, bagunçando o cabelo impacientemente.
- Errado. – fechei os olhos. Diabos, mamãe sabe ser insistente. – Vou falar com ela.
Minha mãe já insistia há dois dias sobre isso e sinceramente não sei como agüentou meus resmungões infantis por tanto tempo. Levantou satisfeita e voltou para dentro da videolocadora onde trabalhava. Estávamos apoiados num muro ao lado enquanto a funcionária cuidava dos pouquíssimos clientes que optavam por locar um filme numa tarde de domingo. Quem não conseguia ir a praia, pegava um filme.
Com (muita) má vontade, puxei o celular do bolso e digitei uma pequena mensagem:
“Preciso falar com vc. <3”
Em seguida enviei para o primeiro nome na lista, Alice. Então fiquei com medo.
Conheço-a o suficiente para saber que só quer o melhor para mim, assim como só quero o melhor para ela. Vai pensar o mesmo que minha mãe, que essa mudança é boa, e vai me fazer ir. O quanto eu negaria um pedido de Alice? Não a toa me acham idiota quando se trata dela. Meus amigos são um pouco mais diretos, eles querem apenas "ficar". Hoje, quando digo que não gostava de ficar, me pergunto se era apenas uma desculpa para minha timidez e... reclusão social. Eventualmente essas coisas passam, ainda bem.
Meu celular vibrou. Era uma mensagem de Alice:
“Estou chegando =D”
Sorri. Estranho como ainda me abalava o quanto a amava. Exagerado? Aqui ó.
Agora, prefiro que ela me odeie simplesmente por eu considerar ficar longe. Quero que me dê um tapa forte no rosto e saia indignada, me deixando sem reação. Pelo menos estarei aqui para acalmá-la e ficar ao seu lado no dia seguinte, e é assim que prefiro.
Mas isso não vai acontecer.
Já era fim de tarde, o sol vermelho se escondendo atrás das árvores na beira do rio que ficava a poucos metros dali. Uma brisa leve e fresca soprava de todas as direções, o céu limpo e colorido num dégradé de azul claro a laranja - era um belo fim de tarde.
Olhei para o horizonte oposto e avistei Alice virando a esquina. Suspirei pesadamente.
Desci do muro e fui caminhando em sua direção, prestando atenção no que vestia. Jeans cinza e camiseta de banda, praticamente as mesmas roupas que sempre vestia. Mesmo assim, as roupas geralmente rasgadas de propósito faziam parte se sua charme torto, sempre havia algo especial nela. Sua beleza era simples. Como olhar para um anjo.
Ao notar minha proximidade, sorriu e acenou. Sorri de volta e apressei o passo.
- Bela tarde essa! – exclamou quando estávamos a dois metros um do outro.
- Difícil dizer o mesmo, com você aqui para comparar. - brinquei enquanto a distância deixava de existir entre nós. Que irônico.
Sorriu mais uma vez e beijou-me. Percebi que havia corado.
- Você não pode roubar frases do meu livro favorito para me cantar. - falou.
- Livro? Que livro? - me fiz de louco.
Abraçamos-nos por alguns bons segundos, afinal, era a primeira vez que nos víamos esse dia. Soltei gentilmente do abraço e olhei em seus olhos.
- Preciso falar com você. Digo, devo falar com você, mas só porque minha mãe quer. Eu preferia ficar quieto. - soltei frases desconexas, e ela ficou confusa por um momento.
- Algo muito sério, pelo jeito. – refletiu tensa. Sabia me ler muito bem.
- Sim, muito sério. Mas é muito ridículo, se não quiser ouvir não tem problema.
- Claro que vou ouvir. - disse. - Tenho que me certificar de que você vai fazer a coisa certa.
- Sinceramente, a coisa certa e a coisa errada meio que não fazem sentido.
Ela riu baixinho.
- Só está dizendo isso para me confundir. Vamos lá, quero ouvir. Talvez eu possa entender seu ponto de vista se escutar primeiro.
Apoiou a cabeça em meu ombro por um momento. Pegou minha mão e disse:
- Vamos até ali. Acho que vou precisar sentar. – sorriu de leve.
Caminhamos em silêncio até aquele muro de antes. Alice empoleirou-se nele e sentou, ficando um pouco mais alta que eu. Olhando para ela, fica fácil entender porque Bella tanto repetia o quanto Edward era lindo. Respirei fundo, pensando em como começar. Mas continuamos em silêncio por um tempo, como se concentrados em uma conversa telepática.
- Ei. – murmurou Alice. – Venha aqui.
Obedeci, ainda enfrentando a tormenta em minha cabeça. Não havia forma fácil de falar, restava-me ser o mais direto possível. Levantei um pouco a cabeça para ver seu rosto, alguns centímetros acima do meu. Tão perto que senti sua respiração, enquanto fitava seus olhos verdes. Ela me abraçou, acomodando minha cabeça em seu peito, e respirei fundo mais uma vez.
- Alice. – comecei. – Recebi uma oportunidade de jogar para um time de futebol. Seria perfeito, mas o negócio é em Londres. – hesitei. – Eu já disse que não quero ir milhões de vezes, mas mamãe queria que você soubesse.
Dito. Fechei os olhos e esperei um pouco, tomado por mal estar.
Escutei seu coração acelerar.
Começara a discutir consigo mesma, exatamente como a vi pela primeira vez. Suas mãos fecharam-se num punho, apertando o abraço um pouquinho - estava nervosa. Comecei a temer pelo pior.Tentei pensar em algo positivo nisso tudo. Ficar longe dela seria, sim, minha definição de inferno. Essa indagação pode ser macabra ao extremo, mas será que existe algo bom nesse inferno? Começando pelo básico, as óbvias novidades na rotina, no círculo de amigos, nos costumes, nas roupas (não que eu ligue para isso.). Lugares novos me inspiram, quem sabe seja o suficiente para escrever um belo conto (sobre amor a distância, obviamente). Algo mais?
Não consigo imaginar algo mais feliz do que longas conversas por telefone com ela. Nem o jogo mais empolgante de todos, nem a vitória, o gol que fosse, o troféu de platina que recebesse, mudariam isso. Sentiria falta de seu toque, seu beijo apaixonado, de seu cabelo macio e colorido.
Mas nosso amor ainda existiria forte e intenso, como sempre. De todas as coisas, essa é inquebrável. Até não parece tão ruim, afinal, Alice estaria sempre do outro lado da linha me esperando - do outro lado do mundo simultaneamente, mas prefiro ignorar essa parte.
A idéia foi ficando mais fácil de aceitar com esses pensamentos, ao menos na teoria. Inconscientemente já aceito meu destino, mesmo que ainda o negue.
- Sua mãe comentou algo sobre isso. – foi a primeira coisa que ela disse.
Desejei com muita vontade que minha mãe ardesse no... calma, pensei comigo mesmo.
- Você deve ir.
Apertem os cintos.
- Mas eu não quero. – resmunguei.
Alice suspirou.
- Vai ser bom. – disse, confirmando minhas constatações. – É uma ótima oportunidade.
Já estava cansado da palavra “oportunidade”.
- Alice, não vou “aproveitar” uma oportunidade de ficar longe de você.
Ela passou a mão em minha cabeça, bagunçando um pouco meu cabelo.
- Não vou deixar você abandonar essa oportunidade por minha causa. – forçou o volume na palavra que eu odeio, sabendo disso.
Mordi os lábios em silêncio, engolindo a raiva. Realmente, na teoria era mais fácil. Com um dedo em meu queixo, Alice levantou minha cabeça até nosso olhar se encontrar em uma linha reta. Aposto que o fez porque sabe que seus olhos me acalmam.
- Talvez eu pareça “durona” – riu da palavra que usou -, mas não vai ser fácil para mim. Também prefiro você aqui, também preciso de você, mas coloca nessa sua cabeça oca que vai ser bom, ok?
- Agora você entende meu dilema.
- Entendo. - concorcou séria.
Afinal, não fui o único a sofrer com a distância por um ano.
- Certo – suspirei. – Mas essa discussão não acabou, certo?
- Eu disse o que eu acho, mas quem tem que decidir é você. – surpreendeu-me com um beijo na testa. – Quem joga futebol é você.
- Estou quase desistindo disso. Eu sempre me machuco jogando mesmo.
- Quer saber? – franziu a testa. – Estou vendo que isso não se resolver hoje. Ver um filme e esquecer, que tal? Por hoje, claro. Foda-se. – sorriu.
Rimos alto, quase esquecendo o que aconteceu até ali. Era tão inesperado e cômico quando Alice xingava assim. Não era a primeira vez que resumia a raiva de uma complicação com um simples palavrão.
Levantei o olhar para ver seu rosto mais uma vez. A brisa de vento sem direção tocava seus cabelos desfiados e cuidadosamente desarrumados, lançando-os para frente e para trás num movimento lento, como se estivesse debaixo d’água.
Apenas continuamos abraçados e conversando sobre nada até o sol se pôr.
Alice ligou para sua mãe e pediu para dormir na minha casa. Era algo que eu desejava, mas tinha vergonha de pedir - e ela sabia disso.
Mesmo que as coisas ainda não estivessem resolvidas, sentia uma vontade urgente de passar todo o tempo possível com ela, como se eu já não fizesse isso normalmente. Parecia um tremendo exagero quando pensei dessa forma, mas pouco me importei.
Para aproveitar o resto do dia, escolhemos um filme de terror da prateleira de lançamentos, para assistir mais tarde, como Alice havia sugerido. Abraçados, passeamos por todas as prateleiras, relembrando filmes bons e ruins com comentários amadores.Na grande prateleira de romance e drama, Alice pegou a capa de “P.S. Eu te amo” e sorriu.
- Eu amo esse filme. - disse-me.
Lembro bem das emoções que ele me trouxe. O rapaz morre, mas deixa cartas para guiar sua amada a um novo amor. Uma linda e triste história de amor, como a nossa. Sorte para nós dois que não planejo morrer tão cedo.
As pessoas que nos olhavam ora sorriam abertamente ou escondiam os dentes, talvez pensando “que bonitinhos”, ou “que amor”. Apenas uma senhora de idade nos estudou com o nariz torcido. Chuto que pensou algo como “que pouca vergonha”.
Depois dos filmes, nos concentramos nas revistas, distribuídas em três prateleiras separadas e mais baixas. Eu e Alice éramos um tanto viciados (e essa palavra é leve) na série Crepúsculo. Vimos o primeiro filme várias vezes, lemos todos os livros e acompanhávamos toda e qualquer novidade a respeito do novo filme. Foi assim que acabei gostando de ler essas revistas para garotas. Achava engraçado e escondia de meus amigos, mais por diversão do que por vergonha. "Olha, sou o garoto que lê Capricho escondido.". Uma vez, atendendo no balcão da locadora, lia uma destas para passar o tempo, quando uma garota morena da minha idade, muito bonita, provavelmente solteira, puxou conversa sobre a série (que ilustrava a capa). Conversamos por bons minutos, e antes de partir, pediu meu MSN. Fiquei surpreso, mas não neguei o pedido. Até hoje não estou acostumado a dar e receber cantadas. Quando contei para Alice, ela riu e disse que me proibiria de usar as revistas como arma de sedução.
Agora, ela segurava uma revista de quatorze reais que pretendia comprar, mas insisti em dá-la de presente.
- Por que presente? – perguntou.
- Não me esqueci do seu aniversário semana que vem. – sorri. – Considere isso um petisco.
- Devo aguardar por um prato principal?
- Deve.
- Do que se trata essa deliciosa refeição?
- Isso é segredo.
Ela suspirou.
- Essa conversa me deixou com fome. – riu.
Subimos em seguida e nos preparamos para assistir ao filme. Morar em cima do seu local de trabalho é realmente muito prático.
Minhas impressões em tempo real do filme: protagonista bonita, criança assustadora, sangue, susto, insetos nojentos, susto, explicação inverossímil, clímax barulhento, susto, gancho para continuação.
Era razoável, tinha bons sustos, mas não fugia de clichês - tinha até uma velhinha que sabia de tudo. Mesmo assim, era bem feito e dava um medinho em algumas partes. Fui perdendo meus traumas com filmes de terror à medida que convidava amigos para sessões de cinema em casa. No começo, se alguém batesse na porta durante a sessão, havia grave risco de ataque cardíaco entre nós. Mas o tempo foi nos encorajando e acabamos ficando exigentes – não era qualquer terrorzinho que nos fazia tremer. Já Alice era um caso perdido. Desde que viu (ou tentou ver) “O Exorcista” quando tinha 10 anos, nunca se recuperou. Essa besteirinha que acabamos de ver a deixou apavorada a maior parte do tempo. Era estranho porque mesmo eu tendo medo de basicamente qualquer inseto voador, me sentia corajoso ao lado dela.
- Uau. - ela sussurrou.
- Não achei grande coisa. - olhei para ela. - Pelo jeito, você achou. - ri.
- Achei. Maldito primo que me fez assistir um "documentário sobre exorcismo".
- Malandro seu primo.
Silêncio.
- Dante, eu tenho que ir no banheiro. - ela começou. - E está muito escuro.
Não segurei o riso.
- Eu acompanho você até a porta. - disse-lhe ainda rindo enquanto levantava.
Com a missão "banheiro escuro" cumprida, esperando o sono chegar, deitados no mesmo colchão enquanto assistimos a um canal de música na TV a cabo. Nem sempre a lista de músicas é boa, mas hoje estava convenientemente ótima, só rock. Na primeira imagem, reconheci o meu clipe preferido do Green Day.
- Eu amo essa música. – sussurrei para Alice, que descansava a cabeça em meu peito.
Traduzi a canção em minha cabeça enquanto tocava.
O verão veio e se foi
O inocente nunca pode sobreviver
Acorde-me quando setembro acabar
Como meu pai que veio para ir embora
Sete anos se passaram tão rápido
Acorde-me quando setembro acabar
Aí vem a chuva de novo
Caindo das estrelas
Mergulhada em minha dor de novo
Tornando-se quem somos
Como minhas lembranças descansam
Mas nunca esquecem o que eu perdi
Acorde-me quando setembro acabar
Entristeci quando o namorado da garota a deixou para ir ao exército. Novamente fiz conexões com o meu caso. Mas o idiota do clipe a fez chorar porque se alistou sem avisar, contra a vontade dela. O tapa que levou foi merecido - sempre fico com raiva dele.
O verão veio e se foi
O inocente nunca pode sobreviver
Acorde-me quando setembro acabar
Como meu pai que veio para ir embora
Vinte anos se passaram tão rápido
Acorde-me quando setembro acabar
No final, gosto muito da cena que mostra o rosto dele e podemos ver em seus olhos aquele arrependimento. A última imagem mostra a garota, de beleza irretocável, sentada sozinha no mesmo local onde, no começo, o garoto disse que nunca a deixaria. Ao mesmo tempo em que seu amor está no campo de batalha, em meio a um tiroteio, ela apenas olha para o céu, alheia ao caos, desejando que ele esteja seguro.
Fiz carinho no rosto de Alice e beijei o topo de sua cabeça.
- Nunca vou abandonar você, mesmo estando longe.
Só então percebi que ela estava dormindo.
Ri de meu melodrama – que mania irritante que tenho de fazer tempestade em copo d’água. Às vezes esqueço o quanto sou sortudo. Aos 17 anos já estou vivendo ao lado do amor de minha vida, uma pessoa maravilhosa que corresponde meus sentimentos. Besteira? Pode ser, mas realmente não estou dando a mínima.
Desliguei a TV e fechei os olhos até pegar no sono.