ALONGA DRAMAS

Eu deito no sofá vermelho da sala úmida e espero para tomar uma decisão fundamental na minha vida, só não sei que tipo de decisão será suficiente para me fazer mover um músculo. Espero horas e observo o vento mover a cortina fina da janela. O sol muda de posição e eu não.

Tinha um som de música no fundo do prédio. Mas era tosco demais para me animar. A empregada da vizinha nunca teve bom gosto.

Refleti um tempo para criar forças e alcançar o controle remoto. Os canais pareciam iguais e optei pelo chiado íntimo de um fora do ar.

Detesto olhar no espelho. Sempre me achei feia. Mas aquele dia era diferente, eu queria que fosse, e olhei no espelho. Ajeitei um pouco os cabelos enrolados e arrepiados, tirei um cravo visível no canto da boca, ajeitei os dentes que pareciam gastos e falei sozinha para ver como era minha cara se movendo. Ofeguei forte para oxigenar o cérebro. Cheirei o suvaco e tinha um odor ocre, parecido com meu hálito. Estava me sentindo azeda, mas era melhor que morta. Tirei a blusa, ela que fedia. Joguei na cesta de roupas sujas, já abarrotadas pelo meu descrédito. Olhei meus seios murchos e tristonhos. Não emitia nenhum tesão. Vasculhei o resto de roupa amassada que pairava no canto do guarda-roupa e peguei uma blusa cavada, que era de minha mãe quando jovem. Por um minuto pensei ter voltado no tempo e sentido o abraço dela, no seu pequeno momento de maternidade.

Quase suspirei com isso, mas voltei ao mundo dos tortos.

“Só os idiotas são felizes...” eu sei, eu sei, eu sei... Queria ter sido burra sempre e me penitencio por saber demais o que não era para saber. Hoje prefiro o silêncio, consolador, devastador, que me acalanta. Essa coisa de felicidade é utopia de escritor babaca, bêbado, depravado. Quem tem espelho em casa e uma vida comum não entende o que significa isso.

Felicidade... arght!

Quando penso nisso, me revolto, esboço até um passo diante da porta. Chego a girar a maçaneta, em vão. Não tenho forças para sair e me deparar com o mundo lá fora, minhas pernas estão bambas demais.

O telefone toca. Franzo a sobrancelhas, viro e bato com as mãos no móvel da sala. “Merda! Quebrei a unha!” Atendo o telefone, silêncio.

Fico imóvel. Segundos que parecem horas, talvez dias. Alguém fala baixo...”sou eu”. Eu sei que é você. Não falo nada.

Murmúrios longos no telefone, respiração. Não entendo, não quero entender. Quero desligar. Não consigo. Minha mão está dura com o fone colado no ouvido e o suor escorrendo pelo meu braço, num fio tênue, o fio que separa o ódio do amor.

“To indo ai”. Não venha, não quero, não tenho coragem de dizer. Ele desligou. O fone permanece no meu ouvido até que o som me perturba mais que a própria ligação.

Minha cabeça está oca, não consigo pensar em nada, nem no bom, nem no ruim, nem no conteúdo tosco dessa ligação. Mas “to indo ai” não sai dos meus ouvidos... um mantra, ou uma culpa. Talvez um desvio ou minha própria vontade.

Que vontade? Que vontade de nada! Nem de levantar tenho vontade... nem de pensar.

Voltei para o espelho. Arregalo os olhos e não me reconheço. Outra mulher, quimera... meus dedos amargam cebola. De ontem. Cebola não sai tão cedo das mãos e da boca. Ontem eu comi pela última vez, não lembrei de hoje. Acho que deveria comer um pão. Meus peitos estão muito caídos, os olhos também. Meus cabelos estão estranhos. Tento penteá-los com a ponta dos dedos. Continua a mesma porcaria. Fico perdida no tempo de frente para o espelho. Não percebo o tempo passar. Nem quero perceber nada.

A campainha toca. A maçaneta se move. Ele tem a chave.

Aparece com cara de nada, me olha piedoso e pergunta se está tudo bem. Ele já sabia da resposta. “ Vim pegar minhas coisas, to sem roupa para vestir.”

“Ah, pega o que quiser, pega as lembranças...” arrisco a pensar, imóvel, intacta.

Ele tropeça no meu vestido preto, o último que ele tirou do meu corpo. Ainda está no mesmo lugar. Se ainda tivesse o pedaço da carne que me tirou, estaria podre. Talvez esteja. Parece coisa de Chico, ele pega primeiro os seus cds. Pega os meus também como se eu não estivesse vendo. Recolhe os retratos, os livros, as folhas e o amor que estava derramado no carpete úmido.

“Tem roupa sua no varau...” eu nem queria te avisar, mas você nota. Reclama do cheiro de mofo. “Sou eu...” nem falo. Comenta da sujeira e dos pratos na pia. “Dane-se”. Ele não escuta. Ou finge.

Ele está tão bonito. Limpo, cheiroso, um sorriso no rosto de quem está feliz, nem tem remorso de mostrar. O seu dorso é tão belo! Lembro que o amei quando o vi de cima para baixo, ao pegar uma caneta no chão da faculdade. Tinha uma luz que batia exatamente nos seus dentes brancos e perfeitos. Não posso lembrar mais dessa visão. Só quero lembrar da última, da que sofri, da que perdi a fé que Deus pudesse existir, da que perdi o amor que resistia dentro de mim, até por mim mesma.

Não consegue sequer fingir tristeza, saudade, pesar, um parco amor por entre as entrelinhas. Recolhe suas roupas e esquece de recolher o sexo manchado no lençol. Está com pressa, quer ir embora logo, fechar a porta, virar a página, dobrar a esquina, tomar um porre, me apagar de sua agenda, borrar meu nome de sua vida. Está com pressa, a visão de meu corpo parado na porta do quarto, olhando, quieta, sem expressão facial, incomoda. Um saco de lixo preto é invadido pelo resto de você na minha casa. “Nossa casa”, era sua também.

Recolho teus rastros e quadros. Te abarroto de términos. Você para diante de mim.

Agora não tenho como escapar. Virei criança indefesa, meu corpo amolece, meus olhos lacrimejam, minha boca seca, meu corpo anestesia. “Te quero muito bem, se precisar de mim, ligue.”

“Preciso de você dentro de mim” Não digo. Silêncio. Você me beija o rosto, boca molhada, beijo lento, passa a mão nos meus cabelos, devagarzinho... tão perto que meu coração vira sonata.

Nem vejo você partir. A porta tranca por fora. E permaneço no chão. Sem o próprio chão. Quero o meu sofá.