PULSO ABERTO

Anel barato cravejado de pedras azuis. Em cada pedra te via. E teus rostos. Inconstante e perdido. Podia velar as expressões faciais de tua alma, de tua natureza incômoda. Podia até enterrar de vez teus vestígios num cemitério para filhotes. Durante algum tempo levar-te-ia flores, artificiais, num vaso ridículo e trincado. Sentar-me-ia ao redor de seu jazigo com lágrimas nos olhos, pensando num jeito de dizer bem feito, morreste.

É, eu sempre tive essa inclinação démodê de me apegar às pessoas, aos vultos delas, às sombras que fazem na parede.

Bem, só queria te dizer que durante o teu velório eu senti muito a tua falta, mesmo o corpo –- teu -– presente. É incrível como ainda me atenho a detalhes.

Parecia um boneco de cera, os lábios arroxeados, um sorriso cínico. Não me faltou vontade de te esbofetear. Não me faltou motivos para o ato. Faltou-me, sim, coragem de bancar a louca na frente dos outros.

Por isso hoje eu te matei com um tiro entre os olhos, no meio de um engarrafamento entre duas largas avenidas, na frente da estúpida bobinha que sorri para o seu sorriso e cultiva girassóis num coração iludido. E eu a reconheço na multidão. E carrego meu controle remoto como um gesto tolo e sem sentido de quem manipula a vida virtual na contramão da realidade.

O padre revirou os olhos duas vezes. E todas depois de pronunciar a palavra Cristo. Junta as mãos, abençoa o cadáver e indica-nos a saída. E lá vai o cortejo para a morada última dos que eram e já não o são mais. Pegadas que desaparecem. Fósseis de antigos amores. Subterfúgios sugados pela máquina do tempo. Cravada entre duas costelas. Nenhuma pertence a Adão.

O resto da minha vida a sua memória. Seria obsceno se não fosse patético. Mulheres que alimentam fantasmas atrás do armário, esqueletos, amores para todo o sempre e amém. O resto de suas vidinhas dedicado a comparar o atual pretendente com o do passado. Executam o primeiro e adornam o segundo. Escondidas numa casca de pipoca entre os dentes. Amaldiçoadas por si mesmas. Engolidas no labirinto da frustração.

Por isso te matei com uma facada no peito, olhando nos teus olhos, banhando minha mão no teu sangue. Frio. E agora sigo o cortejo de teu corpo duro.

Viúvas de amores que se perderam. Suspiram ao lembrar dos bons tempos que jamais existiram. Foram criados pelo desejo da realização. Porque todas nós inventamos uma paixão vez ou outra. E quando a tarde cai e a melancolia chega, ela se senta no sofá com um livro aberto, cigarro e vinho e busca no fundo do coração o rosto bonito, os olhos verdes, o sorriso enganador e injeta tudo isso na veia. Drogada, viaja para encontrá-lo no país dos moribundos.

Por isso rachei teu crânio com um machado. Os globos oculares saltaram pra fora e nem te achei tão bonito assim como quando te (des)conheci. E agora procuro conter a primeira risada histérica ao perceber que viajei na estrada o tempo inteiro sozinha. Velava meu corpo vivo a cada pedido de amor.

Como aquelas mocinhas velhas que esperam o cara que partiu num avião, navio, trem. E roçam seus peitos quentes no peitoril e a cada não-volta os mamilos se ressecam, a pele mofa e as varizes incham-se de desespero. Retornará o amado quando ela estiver encarquilhada e seca. Oferecer-lhe-á lábios castos e umedecidos pela fuligem da rua. Ninguém existirá ao seu redor. Um lacre entre as pernas. A fera será controlada com bom senso e juízo. E o amor, o puro amor, triunfará.

Por isso joguei ácido no teu rosto. Fotografei a deterioração da tua pele, a fumaça que exalava a tua destruição. E até achei simpática a escultura deformada de tua aparência, bastante única, excêntrica e original. E agora faço sinal para um táxi e digo ao motorista que me leve para um lugar que ainda não sei bem qual é.

Ele me sugere um bar onde a bebida não é cara e a companhia é o espelho em frente ao balcão. Agradeço e fecho os olhos. Talvez te encontre numa dobra da esquina. Tu carregando livros e eu me livrando de charadas.

Mas pra não cogitar acreditar no futuro e ter esperança: eu te mato ao me jogar desse táxi em alta velocidade fugindo da polícia, porque o bom moço que o dirige matou a mulher que amava.

Janice Diniz

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