I - Rosas, paixão e areias ao vento
Ventava, e o sussurro do vento em meus ouvidos, me impedia de ouvir o resto do mundo, a chuva que caia naquele momento, misturou-se as minhas lágrimas, ocultando a expressão de dor que se formava em meu rosto. Apenas os sons do vento e da chuva preenchiam o silêncio, o silêncio de minha dor. E com uma rosa eu me despedi...
Rosas, paixão e areias ao vento
Ainda era cedo quando eu ouvi aquela voz me chamar. A doce voz de um anjo, que alegremente veio em minha direção e me saudou com a graça que só os anjos podem ter.
– Bom dia meu bem – ela disse enquanto se jogava em meus braços.
– Bom dia – eu respondi, a beijando logo em seguida – tudo bem com você?
– Sim – ela respondeu olhando fixamente em meus olhos, e eu me perdi dentro daqueles belos olhos castanhos.
Com ela em meus braços, sentindo seu perfume, mergulhado em seus olhos, novamente eu a beijei. E enquanto ainda a beijava, eu ouvi uma outra voz:
– Ah céus! Será que vocês têm de ser assim tão melosos? Ainda nem passam das oito horas! – ao ouvir aquele já conhecido tom de deboche, eu comecei a rir.
– Bom dia pra você também Kaulí – eu disse ainda rindo, ao vê-la nos olhando com uma expressão de deboche que só ela era capaz de fazer – por que essa cara? Está com ciúmes de mim e da Bruna? – eu passei a mão pelos logos cabelos negros dela, acariciando e bagunçando-os, dando em seguida um beijo em sua testa.
– Ai, Argus! Assim você me deixa toda bagunçada – ela disse com um ar meio irritadiço que me fez rir novamente.
– Vocês têm sempre de implicar um com o outro? – meu anjo me olhava com seu belo sorriso matinal – parecem até dois irmãos brigando!
– Bruninha, é esse seu namorado... por que você tinha que escolher logo esse chato?!
– Ah! Não liga não, Ninha. A Kaulí sabe que eu a amo também.
– Está bom gente! Mas, vamos? Já estamos atrasados.
– Desde que ele fique longe do meu cabelo... – ela me olhava de soslaio enquanto falava.
– Certo – eu disse, mas assim que ela passou ao nosso lado eu tornei a atrapalhar o seu penteado.
– Argus! – como eu gostava de irrita-lá – Ninha...
– Argus, por favor... – ela disse isso também se divertindo em ver a cena.
Eu parei com as brincadeiras e nós entramos.
Aquele era o ultimo ano do colégio e já estávamos no fim do primeiro semestre, próximos às férias.
Era sempre engraçado ver a expressão da Kaulí, ao olhar para mim e para Bruna, mas não de todo incompreensível, pois nos conhecíamos a poucos meses, mas tínhamos um relacionamento que parecia existir a séculos, mantido por uma paixão sem limites, que nos tomava de assalto sempre que estávamos juntos, preenchendo cada mínimo espaço vazio em nossos seres. Talvez fossemos de fato muito melosos, mas éramos completos um com o outro.
Nossa paixão surgiu de modo inesperado – como geralmente acontece.
Eu estava atrasado para a passagem do som, aquela seria a última apresentação da banda, após dois anos tocando juntos, iríamos terminar nossa carreira, Arthur, o vocalista, e sua irmã Marcela, a baixista, iriam se mudar, então eu e Lucas decidimos que não continuaríamos com a banda sem os dois, aquele seria o último show, então teria de ser perfeito. Mas o destino quis que eu me atrasasse, ou talvez tenha sido apenas burrice minha, me esqueci de reabastecer a moto, esse deslize fez com que eu tivesse de pegar um táxi para chegar ao local do show, mas fiquei preso na confusão de um engarrafamento, sexta à noite.
Quando o táxi parou, eu desci correndo, já estava uma hora atrasado, não seria possível passar o som. Entrei no bar, a casa estava cheia. O bar tinha as paredes feitas de pedra e pilastras de madeira, que sustentavam o teto, dando ao lugar o aspecto de um pub meio rústico. As pessoas, a agitação, os cheiros da noite, eu sabia que sentiria falta de tudo aquilo quando a banda terminasse o show, mas eu faria o melhor que pudesse naquela noite. Mas enquanto eu tentava, desengonçadamente, atravessar o bar, do topo dos meus 1,82 m., com a guitarra nas costas, acabei por esbarrar em uma garota, de aproximadamente 1,68 m., olhos cor de avelã e cabelos castanho escuro pouco abaixo do ombro, ela entornou a bebida na própria blusa.
– Vê se olha por onde anda seu idiota! – ela disse ainda de costas para mim.
Antes que eu pudesse me desculpar, ela puxou a bebida de alguém no balcão, e jogou todo o conteúdo do copo no meu rosto, eu reconheci rapidamente o cheiro um pouco adocicado do vinho, que escorreu pela minha face manchando a minha camisa.
– Você está louca garota? – eu estava com raiva, e pensando como o senso de humor do destino era sádico, eu agora além de atrasado, não tinha uma outra camisa, tocaria manchado mesmo.
– Isto, é pra você, se lembrar de prestar mais atenção seu idiota. – eu ouvi aquelas palavras, mas não podia parar para discutir naquela hora. Virei as costas e sai, com raiva.
Quando cheguei ao backstage, senti que Arthur iria me xingar pelo atraso, mas quando ele se virou e viu a mancha de vinho na minha camisa branca, começou a rir.
– O que é isso cara? O que aconteceu contigo?
– Uma gata selvagem Art... – ele estava se divertindo em ver meu estado, e eu ouvi a voz da Marcela.
– O que você fez com a garota dessa vez? Vocês homens são tão...
– Eu nem conhecia a garota Tchela.
– Sei... e essa mancha aí foi à toa?!...
– Gente, chega. Vamos tocar. O Argus já nos atrasou muito.
– Obrigado por jogar na cara Art – eu disse com tom irônico – mas você sabe que não ligo. – ele olhou minha camisa e riu.
Nós entramos e começamos a tocar, estávamos todos muito animados, apesar daquela ser nossa ultima noite, tínhamos um pique que nunca tivemos. Mas na terceira música, quando eu olhei para baixo, ali, bem na frente do palco, estava ela, a garota que havia me manchado com vinho, ela viu que eu a olhava, eu perdi um tempo da musica e Marcela me lançou um olhar que dizia “o que foi cara?”, a garota na platéia viu aquilo e começou a sorrir. Nós tocamos por mais algum tempo, o show tinha uma pausa programada, e quando Arthur estava saindo junto com Lucas, eu me virei para Marcela.
– Ei, Tchela, você pode me acompanhar em mais uma musica? Só violões? Eu canto.
– Claro. Por que não?
Pegamos os instrumentos e eu fui até o microfone.
– E ai galera? Bem, enquanto os caras dão um tempo ali no bar, eu só queria tocar mais uma música – eu olhei para a platéia, procurei pelos olhos da garota do vinho, ela também me olhava – e essa música vai para as gatas selvagens, que aparecem, do nada, no meio do seu caminho e acabam jogando bebida na sua cara – ela agora me olhava com uma expressão de quem estava se irritando e comentou algo com uma amiga que estava ao lado, e o rosto da sua amiga não me era estranho – eu me pergunto: pra que tudo isso? All we need is just a little patience.
Depois dessa deixa, a Marcela já tinha entendido qual seria a música, ela me olhou com um sorriso debochado e disse sem som, apenas mexendo os lábios: você não vale nada. Eu sorri em resposta e começamos a tocar Patience do Guns N’ Roses. A garota do vinho agora me olhava com uma expressão irritada, que me deu muito prazer em ver.
Ao terminarmos a música, eu agradeci à Marcela pela ajuda e fui até o balcão pegar algo para beber. Quando eu havia acabado de pegar a bebida e me virava para sair do balcão, esbarrei em alguém e o copo novamente derramou na minha camisa.
– Puta merda! Duas vezes na mesma noite é sacanagem – eu disse olhando para o alto.
Quando voltei a minha face para baixo, vi que havia trombado com a amiga da garota que jogou vinho em mim. Vendo a expressão de susto dela, eu me recompus.
– Desculpa – eu disse – não foi sua culpa.
– Tudo bem, não me molhou.
–Eu não havia dito pra você prestar atenção? – eu já havia ouvido aquela voz, era a voz daquela garota – Ele te molhou Kauli?
– Não Bruna, eu estou legal. Pega algo pra gente beber, eu vou ao banheiro.
– Tudo bem eu te espero aqui.
Eu estava me virando para o balcão, para pedir uma nova bebida, e a garota também se dirigiu para lá.
– Você é muito desajeitado sabia? – ela disse com certo cinismo.
– O que foi gata selvagem? Está de mal-humor?
– Meu nome é Bruna. E não gata selvagem.
– É, eu ouvi a sua amiga dizer. A propósito, acho que conheço ela de algum lugar.
– É provável. Enquanto você tocava, ela me disse que achava que vocês estudavam no mesmo colégio. E por falar em tocar, o show foi bom, e se pretendia me dar algum recado com aquela música, não adiantou muito, eu gosto daquela música, você não conseguiu me irritar, se era essa a intenção.
– Não era o que o seu rosto dizia, quando eu olhava lá do palco – eu sussurrei isso no ouvido dela e fui saindo – mas eu vou me lembrar disso, gata selvagem.
Nós terminamos o show daquela noite, o último show, e foi realmente muito bom. Alguns dias depois Art e Tchela se mudaram. Eu sentiria falta de tocar novamente daquela forma. Algum tempo depois as aulas recomeçaram, inicio de ano letivo, mesma rotina de sempre.
Aquela seria uma manhã normal, se não fosse pelo sonho que tive durante a noite. Pois a algum tempo eu vinha tendo alguma espécie de sonhos premonitórios, sonhos que nem sempre mostravam exatamente o que aconteceria, as vezes vinham com signos que eu era capaz de compreender, mas nem todos poderiam, eu simplesmente, sabia que eles não eram apenas fruto da minha mente. E naquela noite havia tido um sonho com a garota do bar, ela caia em uma piscina, onde haviam pétalas de rosas brancas, que se tornavam vermelhas a partir do ponto que o corpo dela as tocou. Quando despertei, eu achei aquilo tudo estranho, pois eu sentia que aquele sonho não era um sonho normal, mas não compreendia por que ela estava nele, eu só a havia visto uma vez, e já se passaram semanas desde aquele dia.
Tentei ignorar tudo aquilo e fui para o colégio. Ao final das aulas, fui para a quadra atrás do colégio, eu e alguns caras iríamos jogar um pouco de basquete. A quadra era cercada por uma tela, mas o topo era aberto, ao lado ficavam uma piscina e o vestiário, seguindo um pouco mais para frente, havia uma porta que dava para fora do colégio. Começamos o jogo, a partida foi bem disputada, ao final, houve um lance polêmico, que terminou em uma discussão entre mim e um dos jogadores do outro time. Em um momento, fui tomado pela raiva e chutei a bola para o alto, com uma força que a fez subir além das cercas da quadra. Então todos a viram descendo, e ela acertou a cabeça de alguém que passava pelo local no momento, a pessoa caiu na piscina.
– Viu só o que você fez esquentadinho? – alguém gritou ainda irritado.
Ao ver que a pessoa não subia à superfície novamente, fui tomado por inúmeros pensamentos me culpando pelo que eu tinha feito.
– Ah merda! – eu disse ao ver que a pessoa deveria ter desmaiado.
Então eu saí correndo da quadra e me atirei na piscina, e para minha surpresa, o rosto que vi sob a água me era familiar, era a garota do bar. Eu a tirei da água e tentei reanima-la, a essa altura alguém já tinha ido buscar ajuda na enfermaria do colégio. Quando chegaram, a levaram de imediato para a enfermaria e ligaram para a sua família. Eu fiquei esperando noticias na ante-sala do ambulatório, vi quando uma mulher, provavelmente a mãe dela, e a amiga que estava com ela no bar chegaram, e entraram para ver como ela estava. Após saírem, eu me dirigi a amiga da garota.
– E então? Como ela está?
– Não se preocupe, ela está bem. Foi só um susto.
– Nossa! Que alivio. Será que eu posso entrar pra vê-la?
– Acho que sim.
Então eu entrei. Ela estava deitada, e se surpreendeu ao me ver entrando, acho que ela me reconheceu daquela noite.
– Oi, você está bem?
– Estou... foi você quem me disseram, que me tirou da água?
– Acho que sim...
– Obrigada!
– Não precisa agradecer... na verdade você cair lá foi culpa minha... a bola...
– Você é realmente desatento.
– É... acho que você pode dizer isso. – eu disse com um ar constrangido que a fez rir, e vendo a sorrir eu também sorri, sentindo um alivio por vê-la bem.
Nós conversamos por mais algum tempo e então eu fui embora.
No dia seguinte, eu decidi espera-la na entrada, para ver como ela estava. Mas ela não apareceu, e eu vi a sua amiga chegar sozinha.
– Oi!... desculpe, eu não sei o seu nome... a sua amiga, como ela está?
– Eu sou Kaulí. E ela está bem. Não veio hoje por que teve que terminar de resolver algumas coisas da mudança, ela está vindo morar aqui.
– Ah!... mas então ela está bem? Ótimo.
– Eu digo a ela que você mandou lembranças... mas... quem eu digo que mandou lembranças mesmo?
– Argus... se você disser que é o cara desatento, ela vai saber quem é. – nós dois rimos.
Então no dia seguinte, ela apareceu, e nós começamos a conversar. Com o tempo nos tornamos amigos e depois começamos a namorar. E foi assim que eu e Bruna nos conhecemos. Eu realmente me apaixonei por aquela gata selvagem – ela sempre se irritava quando eu a chamava assim – e o nosso relacionamento parecia que teria um fim muito diferente do que o destino nos reservava.
Ao final daquele semestre, Bruna pretendia ir passar as férias com a família na sua cidade natal, eu gostaria que ela ficasse mais próxima de mim por um tempo, mas ela disse que precisava ir, então eu acabei aceitando com o tempo. Mas na noite anterior à sua viagem, eu tive um sonho, algo iria acontecer, eu sentia, mas não conseguia saber ao certo o que, só sabia que foi um sonho que me deixou verdadeiramente assustado, eu despertei todo suado e com medo de algo que não sabia bem o que era.
No dia seguinte, fui me despedir da Bruna.
– Você tem certeza que não quer ficar aqui comigo? Só por mais um tempo.
– Amor, eu já te disse, vai ser pouco tempo, eu não vou ficar lá as férias todas, eu volto em duas semanas.
– Eu sei. Mas é que... – eu pensei em dizer que não estava tendo um bom pressentimento.
– Mas é?...
– Não é nada, Ninha. É só bobagem da minha cabeça.
– Seu bobo! – ela disse sorrindo – eu volto logo. E é bom que você sinta saudades, assim sei que ainda vai me amar quando eu voltar.
– Sabe que sempre vou te amar – eu disse aquilo e lhe entreguei uma rosa – não importa o que aconteça.
– Que lindo! É a minha flor preferida. – era uma rosa vermelha – como você sabia?
– Eu não deveria saber?
Eu sorri, a beijei, e nos despedimos. Ela foi em sua viagem e aquela foi a última vez que eu a vi.
Durante o tempo em que ela viajava, voltei a ter sonhos que me atormentavam, que me faziam acordar assustado, mas por algum tipo de bloqueio mental eu não me lembrava exatamente deles, apenas de alguns flashes.
Era véspera do regresso de meu anjo, e naquela noite, eu estava dormindo quando o telefone tocou. A voz que eu ouvi estava chocada e em prantos, e a noticia que esta voz me deu, me deixou fora do ar por uns instantes. Era a Kaulí. Ela estava me ligando para avisar. O carro em que Bruna estava havia sofrido um acidente, ninguém tinha sobrevivido. Ouvir aquela noticia, foi como levar um tiro no peito à queima roupa, eu desmoronei em prantos, gritei de dor e amaldiçoei aos céus, mas principalmente a mim, que poderia tê-la impedido, mas não o fiz.
Eu entrei em estado de choque, e durante dias eu fiquei como uma casca vazia, vegetando praticamente. Eu perdi o funeral. Quando comecei a voltar a mim, ainda não conseguia acreditar no que havia acontecido. Eu fui até o cemitério para ver com meus olhos, aquilo que minha mente e meu coração negavam.
Ventava, e o sussurro do vento em meus ouvidos, me impedia de ouvir o resto do mundo, a chuva que caia naquele momento, misturou-se as minhas lágrimas, ocultando a expressão de dor que se formava em meu rosto. Apenas os sons do vento e da chuva preenchiam o silêncio, o silêncio de minha dor. E com uma rosa eu me despedi...
Uma rosa, sua flor preferida, com o perfume que jamais irá me deixar esquece-la. Uma flor com o toque macio, assim como tinha meu anjo.
E ali, junto às rosas, ficaram minhas lágrimas. Ali junto às rosas, ficou o meu coração.
E eu nunca mais fui o mesmo. O destino me reservava muitas mudanças, e um caminho que eu jamais havia pretendido seguir.
Insanidade e despedidas
Por que eu continuo ouvindo?... essas vozes... o que eu fiz?...
Deixem-me em paz, onde quer que estejam. Eu ouço tantas vozes, mas não há ninguém falando. Não há ninguém...