TEMPESTADE DE AREIA BRANCA

Todas as manhãs ela caminhava à beira da praia e admirava o mar. Abaixava-se para juntar uma concha, fitava o céu e as gaivotas, lançava os braços pra trás do corpo e sentia-se abençoada por viver no litoral. Aquele lugar era o paraíso. O contorno da cadeia de montanhas sugeria um corpo de mulher deitada de lado, os quadris largos, a volúpia. E tudo era verde, um verde que se desfazia e se revigorava à medida em que as cores dos dias se alternavam. Uma faixa de areia branca e fina, cristalizava suas partículas para serem lavadas pelas ondas encapeladas. Ao longe, detendo-se os olhos numa linha imaginária, o horizonte se fundia com a superfície das águas. O vento era manso naquela manhã.

Como costumeiramente fazia, a mulher circulou a orla com despreocupação. O cavalete, a tela e os pincéis podiam lhe aguardar. Quem a puxava pela mão era a vida, na sua urgência e gana, contando os segundos, derrubando os grãos dentro da ampulheta. E, assim, deixava-se levar, piscando os olhos para a brisa gelada que teimava em lhe desmanchar o longo cabelo azul.

Nesse dia em particular, deitou-se sobre a areia, os braços cruzados detrás da cabeça, os pés livres dos calçados, os pensamentos deslizando como seda no céu do crânio. Vivia um momento original, acabava de vender tudo o que tinha para se refugiar na ilha e pintar.

Aos poucos, foi-se protegendo no calor do sono, sentindo um fio de brisa beijar-lhe os ombros. Encantou-se com a carícia e adormeceu. Quando despertou, havia um homem ao seu lado, também deitado e dormente. Possuía uma pele branca como a areia e o cabelo azeviche. Lembrava-lhe vagamente regiões perdidas na infância, pedaços de faces esquecidas e tinha o cheiro de antigos amores. Vestia uma roupa de pescador ou de alguém que caíra de um navio de carga; mas, estranhamente o tecido estava seco e limpo. E quando abriu os olhos, o pôr-do-sol o varreu com suas luzes alaranjadas e lhe revelou a face abatida. Olhava-a com confusão, como se acabasse de descer de um disco voador.

O primeiro contato foi uma tentativa de conversação. Falaram junto, pararam e tornaram a repetir as mesmas frases. Olharam ao redor e se grudaram na nudez do silêncio. As ondas dialogaram por eles. Até que ela se ergueu e apontou-lhe a cabana onde morava. Ele sorriu e disse que sabia que era ali, perto e longe do mar.

Antes que a mulher abrisse a porta da casa, o homem a possuiu, contra a alvenaria, apenas lhe erguendo o vestido.

Amaram-se várias horas por dia. As semanas viravam as folhas do calendário. A pintora não pintava. O pescador mantinha-se longe do mar. Às vezes a mulher duvidava de sua sorte, ter um homem tão bonito e carinhoso, tão solícito e ardente, tão misterioso e terno. Velava-lhe o sono e antes que adormecesse beijava-lhe as pálpebras. Como temia perdê-lo, raramente o levava consigo à cidade a fim de comprar mantimentos. Ele permanecia dentro de casa, sentado no sofá, olhando pro vazio e à espera dela. Quando a mulher surgia — e livros e vinho e flores — o rosto do homem ganhava cor e vida, os lábios avermelhavam-se num sorriso, seu corpo ganhava movimento. Sempre. Em direção a ela.

Distante de casa e dele, a pintora sentia dores físicas e uma náusea insuportável. O ar tornava-se pesado, as paredes oprimiam-na, as ruas eram perigosas e os humanos assassinos. Urgia que voltasse e o tirasse do transe.

Na noite que seu carro quebrou na estrada e ela teve de ficar num hotel, o céu enlutou-se de nuvens carregadas de eletricidade. A tempestade sacudiu os coqueiros. E a artista caminhou em círculos, no quarto, por horas inteiras e quebradas. Cólicas agudas feriam-lhe o abdômen e o peito. Era varrida por lanças incandescentes que a faziam cair de joelhos no chão. Num gesto tresloucado, varou as ruas com a chuva açoitando-lhe a pele, o casaco apertado ao corpo, as lágrimas rolando-lhe pela face maquiada. Dois, cem, quinhentos passos. Ganhava as calçadas das avenidas, atravessava becos, cruzava por ruas secundárias em passadas largas e desesperadas. E ao perder um dos tamancos, jogou o outro fora e desatou a correr, correr, correr.

A imagem do seu amor à mente dava-lhe força e resistência. A consciência de que o presente lhe seria roubado também. Fora na praia que o encontrara, o homem trazido pelo mar. As ondas nervosas agigantavam-se e explodiam no ar, quebravam nas rochas e penetravam no colo de areia da praia.

Portas e janelas da cabana abertas. No interior, o vazio.

Rasgou a pele do pulso com as unhas. Gritou pelo amante, um nome inventado na última nota aguda do gozo. Patética, corria de um lado para outro em frente ao mar. Ainda tentou encontrá-lo pela vizinhança, batia nas portas, acordava os outros, rompia a monotonia típica de uma cidadezinha. Até que, esgotada de juízo, deixou-se levar pelo choro convulso.

Voltou à cabana como um vodu com alfinetes e agulhas espetados pelo corpo, a coluna tesa, órbitas oculares injetadas e vibrantes. Largou-se sobre a poltrona preferida do seu preferido e ali morreu. Sentada sobre o humano de areia, ladeada pelas roupas sem corpo.

Janice Diniz

TEOFILINA BERMÁCIA

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