Com tanta música para tocar.
Naquela tarde todos os sonhos sonhados a dois foram mortos de uma só vez. Quer dizer: supostamente sonhados a dois. Por que àquela altura do campeonato ela não tinha mais certeza. Nem ele.
Ele estava sentado no sofá, abraçado a uma almofada amarela como se abraçasse uma bóia.
Ela estava de pé, contra a janela, com os olhos fechados e a mão sobre a testa, tentando conter o cérebro, que parecia querer sair pelas fossas nasais, já que ela tivera o cuidado de fechar a boca.
Ela já tentara entender as razões que ele lhe dera, com toda a racionalidade do mundo. Não queria parecer histérica, não queria parecer desesperada, afinal aquela era uma morte anunciada, num casamento doente que já se arrastava a anos e anos para a agonia.
Ele já tentara explicar as razões que o moviam, com toda a sinceridade possível. Não queria parecer cruel, não queria parecer frio, afinal aquele terremoto já se anunciava, com tremores leves há anos e anos.
O sol morria no horizonte, deixando a sala inundada de uma luz suave e dourada, que decairia para uma treva densa...mas aquelas trevas já existiam, as luzes artificiais apenas a minimizavam.
Porque mesmo se casaram?
Porque mesmo viveram juntos aqueles anos?
Eles haviam sorrido, conversado, feito amor?
Teriam dividido a cama, a máquina de lavar, o guarda-roupa?
A mãe dele era sua sogra?
A irmã dela era sua cunhada?
Ela havia sorrido nas fotos do casamento?
Ele havia comprado um carro maior?
Enfim, onde havia ido parar o casamento, o amor e a cumplicidade?
Ele levantou-se finalmente, as malas estavam na porta e não havia mais o que conversar.
Ela, ainda parada, pensou tristemente que com tanta música para tocar dentro de sua cabeça, para marcar no fim de um relacionamento ela só conseguia se lembrar de Pererê, da Ivete Sangalo.