Amores Serôdios

E, bruscamente, é como se toda a luminosidade desaparecesse da nossa vida. Olha-se e o que vemos é um corpo, dramaticamente flácido, com cabelos encanecidos a rematar a cabeça velha e enrugada. Até os olhos, antigos luzeiros, armas outrora poderosas, se nimbam de uma auréola cinzenta que os esbate e apequena! Na realidade só reconhecemos, como nosso, o modo, o pensamento, as emoções. A embalagem, essa é para recusar e, se for possível, esquecer.

A velhice tem destas coisas. É o corpo a pedir pausa e a galderice interior a exigir aventuras. Será que devo vestir-me de maneira mais sóbria? Ah, velho tonto, evitas o espelho mas aprontas-te para a festa dos sentidos. Mas... olha para os que seguem na procissão, ajoujados sob o peso do andor. Repara como vão, lampeiros, tão honrados se percebem por carregar a lamuriosa senhora por ruas e caminhos, compassados pelas sonoridades da Banda, enlevados pelas palavras cantadas em desatino. É deles o poder e a força e são eles que disputam mulheres e danças, entre goles de tinto ou aguardente, quando a devoção aos santos se transmuta e volatiliza. Inveja-os. Que mais podes fazer?

Duro é caminhar ao pó, sobre o saibro da eira. Ainda assim, não desistes da jornada, um ano inteiro esperada, em agonias e esperanças, como convém aos idosos que ainda querem viver. Viúvo e ermo de afectos, quanto tempo te resta para dar voz à quentura do sangue? Sem generosidade, muito pouco; com tolerância, ainda algum. Vais pelo que te diz o coração. É por isso que alisas o casaco e acertas o ângulo do chapéu.

O que vês para além dos ornatos coloridos, para lá da cerca da capela, logo ali, beirando o escuro? Claro que é ela. Viu-te e finge-se indisposta. O ar fresco que disse necessitar é propiciatório para o vosso encontro. Faz parte do jogo. Também tu hás-de simular espanto. Então, D. Rosa, sempre veio à romaria! Fez bem, fez bem. E, se não dança, dançam os olhos por si, pois que mais é que bailação essa incerteza de vontades, esses caprichos de verão? Isto dir-lhe-ias se pudesses e nunca a resposta automática à informação sobre a sua saúde, como acabaste por dizer com o isso é que é preciso, isso é que é preciso.

Sais com vontade de ficar ali, a vê-la em roupa domingueira, a gozar-lhe a firmeza das carnes. Amanhã não sei se volto, há-de depender do génio, disseste. E ela leu-te, como em livro aberto, e voltará a sentir-se, afrontada e fogosa, para te encontrar, para te fazer soltar a língua no rumo de uma conversa mais compatível com os desejos de ambos. Quem sabe?

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 16/08/2009
Código do texto: T1756609
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