O Avesso da Vida

Estavas ali, na minha frente, trinta anos depois. De ti só restavam os olhos, ainda brilhantes, aflorando das rugas que te marcam o rosto. Ainda elegante, com restos de uma sensualidade antiga, abriste-me os braços . Esperei décadas por este momento e, no turbilhão de sentimentos e emoções, tudo foi diferente. Não havia juventude para validar o abraço, nem esperança para promover o futuro ou perdão para renovar antigas propostas. De súbito, apesar de juntos neste amplexo de afectos, éramos como dois estranhos à procura de si próprios. Náufragos das circunstâncias, dirias a seguir.

No teu rosto vi a minha decrepitude e tu, no meu olhar, hás-de ter encontrado a mulher gasta em que te tornaste depois de teres cumprido o teu destino. De comum, já nada achámos para partilhar e as palavras, a rasgar a garganta, eram expressões de revolta, de saudade, de desespero face ao deserto em que nos tornámos. Chorámos. A mágoa do que vivemos isolados, a impotência e, sobretudo, o facto de termos histórias que só agora voltam a tocar-se, não para uma conjugação merecida, mas para ratificar o afastamento.

Nos escaninhos da memória, porém, ainda há belos dias de sonho, momentos de uma paixão indelével que talvez possam perdurar para ilustrar o nosso tempo. Lembras-te? Foi esse fio que começou, então, a ligar dias solenes e velhas manifestações dos sentidos. Trouxe aromas de prado e flores, estrelas ao breu da noite, poemas que ficaram por dizer...

De novo a guerra e a partida. O pranto que humanizou os vivos, o silêncio em que sepultamos tudo o que acabou por já não ter razão nem vez. Reviver, talvez seja sofrer em dobro mas também é, acredito, voltar a sentir o calor do teu corpo jovem, a humidade da tua boca sempre ávida, os teus dedos a dedilhar fantasias no meu sexo. A mim me basta fechar os olhos para te fazer regredir no tempo e no espaço. E quero fazê-lo para o resto dos meus dias. Quero que voltes aos teus risos, que acendas o teu coração. Que voltes para lá, para o tempo em que a felicidade tinha gosto de fruta madura e cheiro de terra molhada, no cacimbo.

Claro que não posso manter os olhos fechados muito mais tempo, recordas-me. Abro-os, finalmente, e de novo a tua figura me arrasta para este presente cheio de realidades difíceis. Falas de filhos, de um marido que se cansou de só ser, ao teu lado, um amigo tolerado. Duro é viver-se uma paixão pela pessoa errada. É como amar uma pedra, confirmaste. Pedir-lhe, depois de tanto tempo à espera, que continuasse contigo seria exigir ainda mais a quem já tinha dado tudo. Vida, conforto, família. Ficaste só quando seria importante que alguém te dissesse que continuavas bela, que te mantinhas atraente mesmo quando, da cabeça aos pés, das emoções ao pensamento, tudo persistia em envelhecer. Essa era a mais grave faceta da tua melancolia, um caso sem solução, um incontornável problema, uma angústia que ninguém poderia resolver.

Ninguém? Foi, nessa altura, que eu voltei ao teu pensamento. Retiraste-me do mais fundo da memória e admitiste que talvez ainda fosse possível regressar ao passado. Estaria, eu também, a sofrer os efeitos da idade e, portanto, quem sabe se, reunidos todos os pedaços da nossa história comum, não poderíamos voltar a ser felizes? Nunca esperaste ver, no meu lugar, um velho e gentil senhor assim como eu jamais contei que estivesses transformada nessa frágil dama encanecida. Definitivamente, já nada temos para dizer um ao outro. A amizade perdura quando a cultivamos e nós deixámos que os anos embotassem a beleza dos nossos registos. Receio que não me seja possível voltar a conviver contigo. Hei-de tentar esquecer que nos reencontrámos para me ser possível recuperar-te como eras nos meus sonhos.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 16/08/2009
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