Rompimento

Estoril, 3 de Dezembro de 2004

Rompimento

Até parece que a terra de Angola se misturou com o meu sangue e que o seu perfume ainda permanece, como uma promessa não cumprida ou uma maldição, a ditar-me outras posturas. Ser de lá acaba por determinar o acento das falas, o jeito de estar ou de sorrir e, até, esta ânsia de consensos que nos dá ubiquidade ou nos estigmatiza. É por isso que volto às minhas origens sempre que deixo solto o pensamento. Na verdade não sei como o prender aqui todos os dias por ser difícil, como já constataram inúmeros poetas, amarrar ideias, matar esperanças, eliminar memórias. Pelo menos as que me ajudaram a crescer, a ver o mundo pelo lado azul dos sonhos e das expectativas.

Muitas vezes estou onde todos me sabem mas a cabeça, sempre pronta a divagar, voa para sul, ao teu encontro. Afinal, tu nunca quiseste vir. Disseste-me que o teu ar não era este, que não poderias resistir ao peso das ausências e que não estavas pronta para a guerra das diferenças. Eras de lá com todas as raízes que os humanos ganham na tarefa de viver. Resististe aos meus apelos, ao medo, às lágrimas com que molhei o desespero e ficaste para ver chegar, no rubro das contendas, a liberdade.

Desconheço o que passaste a seguir mas posso sentir-te, como um eco, a errar pela cidade destruída, a misturar, com a dos vivos, a tua sede de água e de justiça. De enganos nunca ninguém falou mas eu sei que o pior dessa experiência há-de ser a terrível sensação de não ter valido a pena. Na terra, agora adormecida, nascem mortes que não se anunciam e os homens, perdidas as pernas, só caminham velozes na febre de voos inventados. Pena que sejam vermelhos os horizontes secos e que já só os abutres pairem na paisagem abandonada.

Ninguém pode parar a marcha dos acontecimentos nem regredir para o passado. Só os loucos pensam ser possível fazer brotar flores no campo pôdre dos sentimentos e, delas, esperar frutos que não fermentem no ventre das crianças. Só por isso não peço que me devolvas, com as cartas e as fotos, os momentos comuns. Hei-de imaginar tudo o que me falta e juntar o que não coube nestas mágoas para te sentir, ainda morna, ainda suada, a acender-me a madrugada. Depois disso, como quem ganha tranquilidade, voltarei aos lugares do costume, a este branco macio de tédio.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 15/08/2009
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