LEMBRANDO VOCÊ

Eu nunca havia sido tão feliz em toda a minha vida. Inclusive, às vezes penso que minha vida começou depois de conhecê-lo e não estou exagerando, ou sendo romântica ao extremo. Às vezes só acreditamos em certos exageros sentimentais quando acontecem conosco e então percebemos que não são exageros, mas apenas sentimentos tão reais que apenas quem sente consegue entender e acreditar.

Conhecemo-nos em uma noite chuvosa enquanto eu me refugiava perto de uma biblioteca, na volta de uma festa, e por coincidência, destino ou quem sabe mera casualidade, ele também não quis ficar molhado e ficamos os dois, ali, tentando não nos molhar. Já estava bem tarde e eu não estava me sentindo bem por estar perto de um desconhecido em um lugar deserto. Mas ele começou a conversar comigo, e foi tão envolvente que logo me esqueci do medo ou de qualquer apreensão que tivesse me assaltado momentos antes. Foi tão bom ficar ali me refugiando da chuva com ele que quando percebemos, ela já havia parado. Ele cortesmente se ofereceu para me acompanhar até em casa, mas eu imaginei que seria brincar com a sorte permitir que ele chegasse a tanto, afinal eu o conhecia apenas a algumas horas. Marcamos de nos encontrar novamente naquele mesmo local no dia seguinte, e assim foi. Do segundo encontro passamos ao terceiro, ao quarto e assim sucessivamente. E quando dei por mim, já queria estar com ele o tempo todo, e quando ele me deixava ou só pensava em quanto tempo faltava para vê-lo novamente.

Embora a ditadura da época e todo o alvoroço do inicio da segunda guerra tornassem o clima tenso, pra mim não fazia a mínima diferença. O mundo podia acabar, se eu estivesse nos braços dele, então nada mais importava. Passado um ano o clima de tensão da ditadura só aumentava e decidimos aproveitar nosso momento antes que a situação se tornasse pior. Casamos-nos e fomos morar no campo, onde as noticias dos conflitos atuais mal chegavam. Quando nos interessávamos por algo do mundo exterior ligávamos o radio, que funcionava dificilmente, e logo nos esquecíamos e já éramos felizes de novo. Eu realmente não conseguia imaginar duas peças que se encaixassem melhor no universo inteiro.

Ele era contador de um fazendeiro de plantio de café da região e sempre que saia para cumprir sua função, pra mim era estranho, mas quando ele chegava era melhor ainda, por que era como se tivéssemos ficado uma semana sem nos ver. Em tempos difíceis e conflituosos, cheios de conspirações e injustiças militares, cada minuto perto é uma dádiva e simplesmente maravilhoso. E cada minuto longe é uma agonia sem fim, a aflição chega a enlouquecer e o medo de perder alguém é aterrador. Por isso o encontro é tão incrível, tão próximo e feliz, afinal, infelizmente, só aproveitamos intensamente e da maneira certa os ligeiros momentos de nossa existência ao lado de quem amamos quando a possibilidade de perdê-las se mostra tão perto de que é possível sentir sua respiração.

Eu me recordo de cada amanhecer ao seu lado, do seu cheiro maravilhoso, do seu sorriso olhando pra mim e falando o quanto me amava, das flores colhidas no jardim e dos tombos na grama que sempre terminavam em abraços e beijos.

Algumas pessoas não acreditam em intuição, eu na verdade, não creio que apenas as mulheres possuam essa capacidade mística, mas com certeza acredito na veracidade de sua existência. O dia tinha amanhecido lindo, tão lindo como geralmente era, mas pra mim era como se caísse uma tempestade. Sentia-me extremamente mal e algo me dominava por dentro, embora eu não soubesse dizer o que era. Como todos os dias, ele acordou, sorriu pra mim e foi para o seu trabalho. Eu fiquei em casa me sentindo aflita, pensei até em ir ao seu trabalho, mas naquele tempo não era de boa aparência um senhora ir até o seu marido, principalmente para falar sobre uma coisa tão incrédula quanto intuição. Mas nem mesmo quando o conheci, eu havia sentido algo tão verdadeiramente forte.

Quando ele chegou, trazia uma expressão estranha e me deu o melhor beijo que meus lábios já sentiram, me abraçou forte e eu pude sentir sua respiração entrecortada. Quando olhei para o seu rosto ele estava chorando. Eu na resisti e comecei a chorar com ele, me debrucei em seu ombro , choramos juntos. Apenas quando as lágrimas cessaram é que ele me disse o porquê, e sinceramente eu já nem mesmo fazia questão de ouvir. O medo tomava conta de mim. Foi com uma expressão que eu nunca havia reconhecido em seu rosto, tão triste era, que ele me comunicou que o Brasil estava enviando tropas para auxiliar na segunda guerra mundial e ele havia sido um dos escolhidos. Eu não me lembro com nitidez do que senti no momento, mas pra mim foi como se as cortinas do mundo se fechassem e tudo ficasse negro, parecia-me que eu desabaria e a única coisa da qual eu tinha certeza era de que nunca eu sentira ou sentiria dor maior, simplesmente não conseguia me imaginar sem ele, eu não conseguia imaginar o mundo sem ele.

Ele foi informado apenas de que iria, embarcar em cerca de uma semana. Eu não sei como, mas fomos fortes o bastante para prometermos um ao outro que até que chegasse o momento da despedida iríamos viver os momentos mais felizes de nossas vidas, um ao lado do outro, sem pensar no futuro que nos aguardava logo à frente. Eu não teria como descrever, nem mesmo se inventassem mais dois milhões de palavras, como foram maravilhosos todos aqueles sete dias. Lembro-me de perfumes, de flores, da água quente e fumegante na bacia de banho, do frescor da água do rio, de pequenas brigas que nos tomavam dois minutos de discordância e nos davam a eternidade de amor e de como coisas tão banais se tornavam acontecimentos quando vividos com ele.

Infelizmente eu ainda não era capaz de fazer o pendulo do relógio parar. Os sete dias se foram, mas digo com convicção, nunca uma promessa foi tão bem cumprida em toda a eternidade, nós realmente vivemos os momentos mais felizes de nossas vidas. Claro que uma parte de mim gritava e dizia que ele podia voltar, que não era uma regra o fato de que eu iria perde-lo por causa de conflitos alheios que nada tinham a ver com nossa existência. Mas a intuição corria em mim, em cada veia do meu corpo, e não me deixava alimentar esperanças.

Ele se foi, mas antes me beijou e me abraçou novamente como nunca, com toda a ternura que prometia a mim, mesmo sem palavras, que estaríamos juntos até a eternidade, não importava a distancia que se fizesse entre nós, nem mesmo as muralhas do infinito, ambos sabíamos que o que nos ligava era tão forte que mesmo que vivêssemos em mundos diferentes, voltaríamos a nos encontrar.

Ele se foi, mas me lembro até hoje do seu sorriso pra mim, um sorriso triste, mas um sorriso. Eu sei que quando me deu as costas às lágrimas invadiram seu olhar, assim como não deixaram os meus por um tempo que eu nem mesmo sei contar. Acho que alguns meses se passaram por que o vento soprava frio quando chegou uma carta do exterior endereçada a mim, e embora eu não tivesse aberto ainda, sabia o que estava escrito. Mas eu sentia que não importava quanto tempo passasse, cada dia de vida seria um dia mais próximo dele que eu estaria chegando, e em alguns anos eu finalmente o encontraria. Sinto-me injustiçada ao perceber que fui obrigada a ver a ditadura chegar ao fim, uma nova era começar, inúmeras tecnologias surgirem e ainda estou aqui, aguardando, esperando a hora de me encontrar novamente com ele.

Eu aprendi que viver sem ele pode ser insuportável, mas pior do que viver sem ele seria nunca ter estado ao seu lado e não ter sua lembrança para me confortar até que chegue a minha hora.

Por que quando duas peças se encaixam, uma nunca se perde da outra. Elas podem até se distanciar... Mas há uma espécie de magnetismo, uma força mística, que sempre irá uni-las novamente, não importa quanto tempo passe.