Extase e Reparação
A fria água descia-lhe pelo alvo corpo. Descobria com a ajuda do tato todas as ínfimas partes de seu paradoxo corpo. Lembrou-se de Daniel, dos lábios molhados com lágrimas. O que fazer? Para o passado não havia retorno. Fora debaixo daquelas frívolas águas que ele a desvirginou-a. Colocou-a entre os braços e saciou-se do impuro prazer. O sangue lhe escorria, os gemidos dele eram abafados pelo cair da ducha. Aquela tarde lhe ficaria na lembrança para todo o sempre.
Daniel possuía as diagonais da face convergindo nos seus maliciosos olhos claros. Bastardo, veio morar com Luisa e a viúva. O conselheiro Duarte deixou-se levar pela astuciosa ceifadora às catorze horas. Trêmula, Luisa relembrava as cores nubladas do dia em que vira pela primeira vez aquele retraído garoto. A viúva recebeu-o com certa amargura. O tempo seria o melhor remédio para corrigir o pecaminoso caminho do conselheiro que naquelas épocas era dado às vadiagens do mundo. Arranjou Daniel com uma rapariga advinda das soturnas noites de março.
Com o tempo, Daniel familiarizou-se com a idéia de ser um abastado. Encontrara em Luísa uma amiga, não uma irmã. A viúva auxiliada pelas infindáveis promessas aos santos esqueceu as libertinagens do falecido marido. Luísa, de olhos bem fechados, sorria ao lembrar aquele garoto que com o decair do tempo transformou-se em um belo moço. A água continuava escorrer pela já chorosa face.
Cuido que já o tinha planejado. Daniel chamou Luisa às escondidas, pegou-lhe as mãos e beijou-a. Luisa sentia calafrios pelo corpo, algo lhe dizia que cometiam um imperdoável pecado. Afastou-se do bastardo e fugiu chorosa. Daniel continuava pensativo desenhando os lábios com as pontas dos dedos. Luisa pousou a cabeça no aparador e pôs-se a chorar, derramava lágrimas de felicidade. Como seria adiante? Daniel começou a se retrair cada vez mais. Já não mais se falavam, limitavam-se a um aceno e alguns olhares roubados.
Durante o aniversário catorze anos de Luisa, Daniel escondeu-se no toalete de Luisa. O vestido rosáceo repleto de babados fez brotar um sorriso pela face da refeita Luísa que sentia-se como a flutuar por nuvens brancacentas. Mas o impiedoso passado provocou o cair das nuvens, do sonho.
Daniel segurou-a entre os braços, levou-a para o toalete já a espera. Rasgou-lhe o vestido de festa. Beijou-a, acariciou-a. Pressionou-a contra a parede. Luisa clamava para que ele parasse. Com o auxílio das ríspidas mãos tapou-lhe a boca, gemia de vez em vez.
Desde aquele negro dia Luisa não mais sorria, Daniel havia desaparecido. Foi-se junto com o passado. Há exatos dez anos mais tarde encontrava-se ela novamente no toalete fatídico. Empoeirado, guardava consigo todas as lembranças imundas. Sentiu-se aliviada ao desligar o chuveiro e poder encarar o passado de frente. Uma nova mulher vingou à luz. Tomada a posse de seu corpo, até dantes pertencente a Daniel, sentia-se metida em um clima nostálgico. Daniel... Um branco intenso tomou conta do lavabo. Uma pena branca pousou em suas novas mãos.