De partir o coração
O jornal estava dobrado sobre a mesa simples. A toalha limpa, a louça branca, o pão fresco. A faca manchada de sangue permanecia em suas mãos.
A cabeça estava confusa e a visão começava a escurecer, aos poucos.
Deu um último olhar ao redor da cozinha mal iluminada, enquanto cambaleava até a mesa. Limpou a faca e os pulsos com a toalha, jogou o jornal no chão, sobre a poça de sangue que se formara. Ao cair, o jornal se abriu na manchete: "Família Moreira desposa filha caçula".
Aos poucos, as letras do jornal ficavam úmidas do sangue, e seus olhos, úmidos de lágrimas, observando a ilustração de uma bela moça, se tingir de vermelho. O seu sangue.
A perda e a dor o fizeram tremer. Pegou o pão e jogou, com raiva, num canto sujo do pobre lugar. Talvez o cachorro o achasse. O cachorro que o fez conhecer o amor de sua vida.
Que agora ia se casar, com alguém tão rico quanto, ou até mais do que ela.
Ela ia ter o que ele não podia oferecer. Pois seu maior tesouro, ele já havia decidido que seria só dela: seu coração.
O jornal já estava encharcado do sangue que insistia em sair do pulso, escorrer pela mão e cair.
Se sentou no banco que ficava embaixo da mesa e, com raiva, atirou a louça na parede à sua frente, depois, deitou a cabeça com a face esquerda diretamente na superfície fria.
Agora que não tinha mais a dona de seu coração, não tinha porque viver. Ela que ficasse para sempre com dois corações!
Em um raro momento há alguns meses, ele sorriu e fechou os olhos. Era bom pensar que ao menos uma parte sua viveria com ela. Era poético morrer assim, por amor.
Aos poucos, a consciência fugiu, para sempre.
Do outro lado da cidade, só seu coração vivia.