Eu e os outros: uma história de dois
“Sejam felizes!”.
Pedro não entendeu aquelas palavras. Já eram felizes, desde o momento em que se conheceram. Encontrar é deixar de ser só. Relembrava. Agora tudo que sabia era ser vazio, triste, desatento. Júlia ainda sentia um amor doído, veemente, único. Quem ama dá abrigo à inocência. E ele, ali, no ônibus, era a descoberta, o brusco, o inesperado. Deixava-se olhar o mundo lá fora. Quanta coisa sem nome devia haver em cada ser, quanto sofrimento. Quanta felicidade? Queria, desejava.
Quando foi que deixaram de ser um? Talvez a partir do momento em que passaram a comer coisas diferentes. No restaurante, ela - ele; na casa, vida - sonho. Ninguém conhece o ser humano. Lembrava-se dos risos e das lágrimas, faces diferentes de uma vida em comum, de vasto sentimento de um futuro certo, pré-determinado por suas mãos que percorriam o rosto de Júlia e sempre acabavam acariciando-lhe o corpo. Que silêncio! As noites não eram desenhos de artistas, nem imaginação de poetas. Era dos dois a realidade.
Pela janela se vê a dor que insiste em observar, apontar, revelar. Dizer-lhe das injustiças, da frustração, da tristeza, da crueldade. Cala-se e sente que tudo deveria ser dois: dois sóis, dois eus, dois dias, dois existires.
“Com licença...”.
A voz tímida, vinda de um rapaz de semblante triste, lhe devolve a dor. Duas dores. Que dor é mais pungente? Que dor é mais pura? Os olhos do rapaz se encontram com os seus por segundos. E Júlia, qual das duas? Pensa na dor dos outros. Alguém lhe disse, certa vez, que há dores maiores no mundo. A sua era de ser a maior porque não era mais um, eram dois. Dois existires. Lá fora anoitece. Que viagem longa... A noite esconde as irregularidades do seu ser e dos outros seres perdidos entre as calçadas.
“Socorro! Socorro!”.
Gritos fazem Pedro ver outra dor, a dor do medo, do desconhecido. O ônibus não pára, as pessoas buscam ávidas olhar e sentir a dor do outro. Há uma falta de dor muito grande nelas!
“Desculpe, senhores passageiros...”. Aquela velha frase feita vem trazer às pessoas mais uma lamentação, mais uma súplica. Quem ajuda aos outros, ajuda a si mesmo. Júlia, Júlia... O que foi mesmo que ele disse? Balas ali no seu colo e apenas um bilhete:
Não precisa ser rico
para ajudar um pobre
No verso o preço a pagar. O choro é inevitável, incontrolado. As balas são retiradas do seu colo. A recompensa dura pouco nos dias de então.
“Não chore, meu amor”.
Uma mãe consola o filho. Medo da viagem. Da vida que começa a se desvelar. E a dor... A martirizadora que insiste em permanecer. “Não chore, meu amor”. Que a vida é curta. Queria poder acreditar, como acreditou um dia ser feliz.
Avista a rodoviária. Lembra-se que ainda precisa andar alguns minutos até chegar a casa. À medida que caminha, seu coração vai implodindo a lhe dizer: “não siga adiante”. Que lástima! Ainda não reergueram a ponte que une duas ruas separadas por um rio. Duas ruas, dois existires. Caminha ainda mais até chegar e encontrar o portão fechado. Suas mãos vão ao bolso, seu coração bate num ritmo compassado, quase feérico. Júlia, Júlia... Entra. Olha ao redor. Silêncio. Não chore que a vida é curta. Palavras que ecoam em sua mente. A noite esconde as irregularidades do ser. Lembra-se do grito de socorro. Tudo deveria ser dois. Queria mesmo ser outro, o não-ser. Bate a porta. Sobre a mesa um bilhete:
“Pedro,
Não posso mais viver em
busca de algo que se perdeu
num tempo feliz. Siga em frente.
Júlia.”
No verso, o preço a ser pago. Ninguém conhece o ser humano.