Alice

Ela dançava bem no meio do palco. Eu apenas olhava. O teatro vazio e escuro tinha apenas por iluminação uma fresta de luz que escapava da coxia. Talvez fosse por isso mesmo que ela somente dançava em um curto espaço de chão. Os pés para cima, as mãos para o alto seguindo ritmadamente o compasso da canção. E eu me perguntava: que canção? Não havia som nenhum ali, somente ecoava nosso respirar: eu no meio da platéia, ela no meio do palco.

Enquanto a dança da música inexistente acontecia, eu observava todos os movimentos e rodopios que ela fazia. Uma bailarina talvez. Dentro do meu pouco conhecimento de dança achava que vislumbrava um espetáculo inebriante. Ela me fazia sonhar. Imaginava um piano tocando, a casa quase cheia, luzes, cores, um vestido rosa voando ao vento e os pezinhos bailando acompanhados de movimentos furtivos e alegres. Para lá e para cá.

Uma dança moderna, com tambores digladiando com uma orquestra de cordas e ela correndo de um lado para o outro, como um ritual de um filme hollywoodiano. E ela continuava a dançar. Talvez ela não tivesse percebido que eu estava ali. Talvez eu devesse fazer um barulho que me revelasse, mas não. Como iria roubar dela estes momentos que tanto me alegravam? Se ela souber de minha presença talvez se torne inibida e acabe tolhendo sua criatividade e eu vou acabar me frustrando aos poucos...

Não, eu não vou me delatar, vou ficar aqui, quietinho, calado, a espiar.

Que música será que ela imagina? Será que ela não se cansa? Vai e volta, levanta e abre pernas e braços. Transpira. Eu também. Sou um cúmplice à espreita do grand finale. Mas me deixe descrevê-la um pouco. Ela tem os cabelos curtos, meio ruivos, nem alta, nem baixa, magra, olhos marcantes e escuros, pouca maquilagem, pernas fortes de quem pratica algum tipo de ginástica, talvez seja mesmo bailarina, e a graciosidade de quem pelo palco desliza igual um cisne em um lago. Seu nome? Ainda não sei, eu a chamo Alice pois pertence a um reino imaginário. Eu a imagino assim e assim ela é.

“Alice... não conheço. Deve ser uma espécie de flor.” Lembro do texto quase completo da história infantil de Lewis Caroll, mas a minha Alice nada lembra a dele. A minha continua dançando incessantemente no palco, alheia a tudo o que ocorre à sua volta.

Acabo me soltando um pouco e vou seguindo seus passos com murmúrios sonoros, como quando eu ia levar minha irmã à sua aula de piano e ficava cantando a música que saía do instrumento. Até que um dia ela me repreendeu, disse que ela e a professora me ouviam cantar e ficavam dando risadas. Desde aquele dia eu não cantei mais. Só em pensamento. Aliás, eu fiz muita coisa só na imaginação, até criei um personagem de mim mesmo, achando que o original não tinha grande interesse geral. E deu certo, por uns seis meses deu certo. Daí que eu também me cansei do personagem e mandei tudo às favas. Prefiro o original com toda a sua incompetência, pelo menos sou autêntico.

Deixe-me apresentar, sou MM, tenho 30 e poucos anos, muitas idéias na cabeça e pouco tempo para realizá-las. Um tipo normal, nem magro, nem gordo, diria comum, comum até demais. Conheci Alice numa tarde de sexta-feira dentro do teatro onde tinha ido entrevistar o ator principal da peça que iria estrear. Ah, esqueci de dizer, sou jornalista e escritor.

Ela mexeu com a minha imaginação num momento em que, como dizer, estava pensando em nada. Ela entrou quando as luzes se apagaram. Eu pensava em tirar um cochilo até a hora do início da peça - sim eu iria ver o espetáculo, o tal ator me convidou pois achava que só assim eu en-tenderia o seu personagem. Bobeira dizer a ele que eu nem iria dar tanto espaço assim na matéria que iria fazer sobre teatro, mas para que magoá-lo? Eu precisava descansar um pouco da redação, então...

Quando eu vejo, ela estava dançando. Pensei até em interromper e perguntar se ela queria que eu saísse, mas fiquei calado. Ela rodopiava sem parar, meio trágica, às vezes; imaginei-a Medéia em alguns passos, e em outros, a paciente Penélope. Eu a queria meio Madonna fazendo poses eróticas e insinuando-se para mim. Mas ela parecia me ignorar e me senti um nada, um não-ser. Eu não mais existia.

Quanto tempo passou? Não sei. Sei que acabei cochilando e acordei num sobressalto, morto de vergonha. Será que ronquei? E ela ainda estava lá. Olhava para cima e terminava a sua dança.

Ela vai para o local atrás da porta e pega a sua bolsa. De dentro dela retira a sua roupa e se despe. Ela realmente não sabe que estou por aqui. Não fica nua, apenas retira o que é necessário para colocar a sua nova roupa. Uma calça jeans rasgada no joelho e uma blusa bem apertada que lhe marcava todo o corpo. Esqueci de dizer, ela tem seios lindos. Senta-se no chão, penteia-se e enfia uma sandália nos pés. Levanta-se, enfia a cabeça por dentro da fresta da porta e grita: - Já tô indo! E vem andando para a beirada do palco. Desce as escadas que dão para o corredor entre as cadeiras e caminha devagar. Quando chega na minha fileira, pára, olha-me bem nos olhos e com uma voz firme e autoritária faz me um pedido meio que ordenando:

- Me paga um café?

Eu me levanto, sigo-a até a rua. Ela me diz que tem um Frans logo ali na esquina. Como resistir a esse pedido? Impossível. Entramos, arrumamos uma mesa, sentamo-nos. Ela arruma o cabelo, eu retiro o blazer. Ela me olha nos olhos e se apresenta:

- Oi, eu sou Alice, tudo bem?

Fico pasmo e não consigo dizer mais nada. Ela sorri apenas e fica esperando uma resposta que não vem. Um grande silêncio. A atendente vem em seguida - só em livro mesmo para uma atendente do Frans ser ligeira - e me oferece o cardápio. Recuso-o e peço um expresso com um pingo de leite.

- E você? - eu pergunto. Ela me diz:

- O mesmo.

- Não quer comer nada?

Ela sorri, abre sua bolsa, pega um cigarro.

- Você se importa?

Claro que me importo, tudo o que eu menos gosto é de cigarro, ainda mais em mulher.

- Claro que não. A propósito, meu nome é MM.

Texto publicado no livro Sangue: literatura e outras loucuras, de Márcio Martelli, Editora In House (2008).