Apenas um saxofone
É estranho estar sentindo este irrefreável desejo por você e não poder tocá-lo. Mais estranho ainda está sendo a proporção na qual se tornou a sua ausência. Você se foi há três dias e fiquei aqui, parada, esperando a sua volta...
O vento que me congela a alma vem pela fresta deixada pela porta aberta, a mesma porta por onde saiu, onde defronte estou, a esperar.
O vazio está se tornando insuportável; imagino seus passos à minha volta preenchendo a minha solidão. Ouço as canções que dançamos aqui, neste mesmo local, e nos risos soltos que completavam nossas madrugadas inapagáveis.
Lembro-me muito bem do sabor do seu beijo e de como emudecia arrepiada, ao sentir sua língua roçando o meu pescoço.
- Olha, você se arrepiou todinha!
E você, sem parar, sem parar, sem parar... até que eu pulasse em seu colo e lhe beijasse atônita, provocando uma sessão de carinhos e amor sem fim.
Queria ouvir uma música agora, mas “Olho nos olhos”, de Chico, está fora de cogitação; muito embora ame esta canção, só que me dói, dói demais, sangra e me machuca.
- Você gosta de Chico Buarque?
Para agradar disse que sim e, por fim, acabei ganhando toda a coleção de CDs do artista. Aprendi a gostar, a entender, discutir sua obra, como quem passou a vida toda admirando o cantor com os olhos de mar.
Agora, me restam os CDs... Meu Deus, “afasta de mim este cálice”, que agora eu quero ficar só! Não, eu não quero. Quero que volte, que traga seu riso, minha vida de volta, que me encha de amores, que me provoque, que faça bagunça em toda a casa e em meu coração, quero que me torture com palavras embriagadas que somente você consegue falar. Entonteça-me. “Faz me rir... rá, rá, rá...”
E a noite chega outra vez. Ando até a porta e, desta vez, a fecho. É inverno na minha existência e preciso esperar as andorinhas voltarem. Elas, dizem, trazem o verão e tenho a grande esperança de que o sol que regia a minha vida retorne com elas e esquente-me, como eu um dia fui aquecida. Quero ouvir o seu saxofone tocando sob minha janela, invadindo a solidão do quarto, iluminando, espantando a depressão que é estar só... você se foi... e eu fiquei aqui, a lhe esperar...
“Me disse para ser feliz e passar bem...”
* Inspirado no conto de Lygia Fagundes Telles.
Texto publicado no livro Viver: um jogo perigoso, de Márcio Martelli, Editora In House (2009).