Deste Lado e do Outro Mundo
Nomear nomes. O significado de alguém.
A dor. A alegria. O sorriso, o choro, a cara feia, os olhos humedecidos. A boca entreaberta.
As palavras que se soltam com o vento.
O céu cinzento. A República em paz consigo mesma.
O hino a um passeio. O sol...
Por isso, não devo chamar. Também não o conheço. Só o vejo em cima de uma caixa de madeira. Um cubo de madeira, tapado com um pano branco.
Nem sei descrever as roupagens que usa.
Meros farrapos de várias cores. As tais que devem faltar neste dia. Por acaso...sexta-feira!
Não sei por quantas horas é que ficará nessa posição, de pés bem assentes em cima do pedestal.
Mas sei que desde que aqui chegou, o dia transformou-se num frio aceitável de Outubro, com os transeuntes de um lado para o outro, andando, conversando, brincando, bebendo o resto do chocolate derretido nos paus de gelado, nessas línguas e lábios grossos, finos.
Todos os dias passo por aqui.
Não tenho essa necessidade, porque por aqui, o caminho é mais longo, e o transporte que me leva à porta de casa demora muito a andar nestes carris disfarçados de alcatrão e carros, mais luzes...
Venho por aqui, porque simplesmente quero-o ver. Saber. Conversar com ele, sem no entanto nada lhe dizer.
Simplesmente, colocar-me na sua frente, para o admirar. Imaginar as suas faces sem a pintura exagerada, e o pano que lhe cobre a cabeça empastada de não sei que substância pastosa.
Dar a volta ao seu recinto, ao seu pequeno palco, saber que é alto e tem a musculatura bem delineada, forte de ossos, pernas grossas, ombros largos, orelhas pequenas, nariz belo.
Sombracelhas, o rosto.
E reparo. Reparo que os seus olhos azuis estão ainda mais azuis, mais brilhantes, cintilam qualquer coisa que lhe passa pela alma, que o faz fixar-se, como se fosse um prego, a este chão feito de pedras pintadas. Pedras pisadas.
E as lágrimas escorregam, salpicando o lençol estendido. As lágrimas que lhe caiem pelo queixo transformam-se em prata, quando se depositam no pano imaculado.
Porque choras ? Faz parte do teu trabalho ?
Depois apercebo-me da ligeireza do movimento das suas mãos.
Porque os seus olhos não estão pintados...
Quem julgas que és ?
Desejo ardemente que pares de olhar para mim. Quase que te imploro que deixes de passar por esta rua. Hoje não estou nos meus dias mais favoráveis !
Só te peço que te vás embora. Desaparece !
Hoje.
Apetece-me estar completamente isolado. Sem estas pessoas todas que se atropelam para me verem. Que fazem uma roda completa. Só para apreciarem alguém completamente quieto.
Desapareçam todos e que me deixem em paz ! Tu também !
Por isso choro.
Hoje o dia não me está a correr bem. Pretendo ficar quieto mesmo no meio da rua, por entre uma ourivesaria e uma loja de roupas de dois andares.
Lá ao fundo, vê bem. Retira a tua atenção de mim por uns instantes.
Lá ao fundo está o rio.
Porque não contemplas a paisagem que te propociona ?
Basta virares um pouco a cabeça para o teu lado esquerdo e logo vês o castelo imponente.
Sou mais interessante para ti ? É isso ?
Sei que passas todos os dias por aqui, só para me veres. Mas será isso mesmo ?
Só para me veres ?
Não terás outras estátuas para observares ?
Eu sou humano. As estátuas não choram, nem vertem lágrimas de prata, que caiem, desmaiam em tecidos brancos, nesta cor neutra.
Hoje não é um bom dia para me apreciares ! Desiste !
Tens tudo pela frente, porque também eu te vejo, quando rondas este perímetro feito de gente, dás passos vagarosos, tentas colocar a tua mão no meu ombro.
Não consegues ! Neste museu vivo, não tens coragem para terminares de escrever um bilhete, que tentas sem êxito, deixar caído por entre as várias moedas que me deixam.
Regressas sempre. Apanhas o pedaço de papel e aí sim...vejo-te a ires embora, completamente desolada por não teres conseguido falar comigo por entre essas poucas palavras que escreves. Deitas o papel amarrotado para um caixote de lixo.
Atravessas a rua. Adeus ! Até amanhã ! Porque amanhã...sei que estarás por aqui !
Até quando ?
A noite já caminha mais depressa nestes dias de Outono. Ouço os relógios a apitarem o começo do negrume das várias luas.
Poiso os pés na calçada e vou em busca do teu papel, em que me escreves.
Eles moram lado a lado.
Na mesma rua, no mesmo prédio, nas mesmas escadas de madeira carcomida pelo tempo, que os transportam até às portas fechadas à chave.
Lado esquerdo. Lado direito. Num bairro ambíguo.
Ligeiro de dia. Travesso nas noites feitas de personalidades várias, que se confundem com os odores pestilentos, cheiros acres, que se misturam com os copos de plástico, carregados de poesias mórbidas, misturas de pastas e pós, comprimidos minúsculos, andares tortos de quem já não vendo o caminho se distrai, continuando a andar pelas ruas transversais, quase suplicando que o ascensor volte a trabalhar para o levar rua abaixo até ao infinito das emoções que de tão fortes, o deixam estendido. Escancarado, de mãos e braços abertos, pedindo ajuda aos santos, aos deuses que já deixaram de existir, à mãe e ao pai, ao amigo que resolve correr, desesperado, berrando pelas dores que se infiltram no seu corpo minguado, farto de químicos, farto de tudo, só parando, de encontro a uma montra, de uma loja de velas. Quase que a parte com o corpo endurecido. As mãos expostas no vidro que as recebe de encontro a si.
É quando se consegue levantar e vai atrás do outro.
Mete a mão no estômago que se contorce, por ninguém reparar em si, de lombo arqueado, mendigando pelas vísceras que lhe saiem boca para fora, de cor esverdeada...
Volta a cair. Começa a rebolar por uma rua íngreme, cujo nome passa por uma debulhadora e fica vago, incerto. Só parando na estrada, mesmo rente a um táxi, que trava repentinamente.
De joelhos, ainda consegue ver o amigo a conversar com o espectro que lhe aparece na montra da loja.
Desmaia.
Numa rua sem nome, porque ambos não lhe querem dar o nome, ela deita-se exausta. Olha para o tecto.
Ele, abre a janela do quarto para fumar um cigarro.
A alta madrugada chegou, e o silêncio impera.
Finalmente, só ouve a sua pulsação, o seu coração. Sente os pêlos dos braços a arrepiarem a pele nesse vento ameno.
Mais uma vez relê as poucas palavras inscritas no papel.
“É o amor da estátua pela cidade
Será o mundo que eu vejo nesses teus olhos...
Não voltarei...revolvi amar a cidade...és estátua! És o mundo...”
Ela apercebe-se do fumo do cigarro. Tem as janelas entreabertas. O cheiro é inconfundível.
Tabaco de enrolar. Sem mais nada. Fraco, mas harmonioso, incolor num sabor a chocolate que se instala na sua boca, repercutindo desejos de descer para a rua, ir até à mercearia mais próxima, comprar uma caixa de gelado. Chocolate.
Pelo reflexo do vidro da janela, antes de a fechar, demora-se a olhar para um vulto que fuma.
Será o seu vizinho. Vê o seu perfil impregnado por pensamentos tão longínquos que deixa cair qualquer coisa das mãos, indo parar à rua.
Tenta esquecer um amor que lhe deu repentinamente, mas que dura, sem saber como nem porquê.
Disse-lhe adeus num papel rabiscado. Não teve coragem e saiu a correr para também não chorar com ele e como ele.
Viu os muros do castelo, antes de apanhar o eléctrico e viu o rio, quando o transporte deu a volta numa curva. E amou-o muito mais.
Resolve descer para ir à mercearia. Apanha de cima da mesa de cabeceira três moedas de um euro e sai, deixando a porta encostada. A luz acesa.
Ele apaga o cigarro no cinzeiro. Terminou de fumar.
Pelas vielas, transversais e ruelas do bairro, ela ainda percepciona as sirenes das ambulâncias e carros de polícia, uma guitarra que termina o seu cantar, um bébé que acordou sobressaltado e chora.
Um último sonâmbulo, perdido por uma garrafa de vinho...cambaleia.
São sete da manhã.
Ele deixara cair o papel lá para baixo. Fica desolado, triste, desconsolado, mas falta-lhe forças para o ir buscar. Por uma última vez, olha para a rua e vê-a a sair. Observa-lhe os cabelos desalinhados, os braços a cambalearem com o corpo, reconhece-a, quando a vê a apanhar o papel do chão e a olhar para cima, porque ela sentiu uma lágrima de prata magoando o papel enrugado...