CHANEL Nº 5
CHANEL Nº 5
Fazia um frio, mas um frio tão intenso, ou tão grande como diziam, nos confins do Uruguai, onde El minuanito, varria os campos, que dava a impressão doer até os ossos.
Ao findar da tarde, podia se ver no céu os famosos, “rabo de galo”, que desenhavam arabesco mil, indicando que a noite seria gelada.
A madrugada parecia uma sinfonia, onde El minuanito em parceria com as estrelas que brilhavam como luzes tremulantes, já indicavam que o frio seria de congelar.
Os passos ligeiros, olhos atentos, coração a bater descompassado e um só pensamento: é hoje, não tem desculpa, tem que ser hoje, ou não me chamo Erdernirso.
Aos poucos se aproximava do local combinado. Olhava o relógio que marcava três horas e 20 minutos. Madrugada adentro, faltavam só 10 minutos, estava no horário.
Apertou mais o passo, agora parecia uma locomotiva, soltando o ar pela boca, que se transformava em vapor. Sentia um frio além do suportável, mas tinha marcado o encontro e não iria deixar de comparecer.
Ao dobrar a esquina, agora já praça central do povoado, sentiu um arrepio a correr o corpo. Seria um mau agouro? Ou um presságio, avisando que algo estava errado?
Olhou, olhou e olhou mais uma vez. Será que não veio? Mas tinham combinado e combinado é trato que tem que se cumprir.
O frio era insuportável e El minuanito cortando firme, como uma lâmina muito fina, de aço.
Impaciente buscou no relógio as horas. Quatro horas da madrugada. O que fazer? Ficar ali parado, como um tonto? Ou sentar-se em um dos toscos bancos da praça? Poderia ficar andando de um lado para o outro, para se esquentar, mas tudo parecia uma loucura. Loucura maior foi a de concordar em se encontrar às quatro horas da madrugada e logo na praça e em frente à igrejinha. Um poste de tronco de eucalipto e uma lâmpada fraquinha que dava dó iluminava a pobre e fria praça. Ma lá estava ele, esperando conforme o combinado. Agora já passava das quatro e meia da madrugada e nada de se cumprir o combinado.
Resolveu sentar no banco da praça. E lá ficou tiritando.
Não conseguia parar de tremer. Batia os pés, esfregava as mãos e nada do frio passar.
Mas quando estava desistindo do encontro, notou que um vulto se movimentava no contraste fraco da luz do poste da praça.
Pensou. Será que chegou? Ou seria algo do outro mundo?
Aos poucos o vulto tomou corpo. Era alto, magro, com um pala a lhe cobrir o corpo. Na cabeça um lenço coroado por um chapéu. Olhou para os pés e notou que usava bota de cano alto. Nas mãos trazia um embrulho, como que fosse uma caixa.
Aproximou-se e lhe estendeu o pacote. Sem uma palavra sequer pronunciou. Não conseguia ver bem os olhos, pois se postou ao lado esquerdo, de tal modo que o muito que conseguia ver era o nariz e os lábios.
As mãos pareciam firmes, se bem que calçadas com luvas de couro preto.
Sem nenhuma palavra desde o início até a entrega do pacote, retirou-se e sumiu na madrugada fria da praça.
Por sua vez não conseguia parar de tremer. Agora era uma mistura de medo e de frio.
Aos poucos foi se recompondo e a passos largos tomou rumo a sua fazenda.
O baio ali estava parado e soltando baforadas de vapor pelas ventas.
Ganhou a estrada que conduzia a fazenda e viu o sol nascer, os campos brancos de geada, as poças de água cobertas por uma fina camada de gelo e o gado todo parado como que alguém os estivesse mantendo juntos. Era uma forma de se esquentar.
Abriu a porteira sem muito esforço e trotou rumo à casa da fazenda. No galpão a peonada reunida em volta de um fogo de chão, mateava e comia uns nacos de carne de ovelha com umas bolachas de água e sal (cajetas). Apeou e logo o baio ficou livre dos arreios. Pelo cabestro foi conduzido para sua baia, onde o feno de aveia e trevo lhe recomporia as energias perdidas.
Tomou umas cuias de mate, mastigou a carne quente e macia da ovelha e antes de sair, um gole de “caña criolla”.
Sentou-se frente ao fogão, esfregou as mãos sobre o fogo e tomou uma xícara de café com “caña criolla” e sentiu-se reconfortado. Com auxílio de uma faca, abriu com cuidado o pacote que ao ser exposto, lhe surpreendeu, era uma caixa forrada em couro. Com angústia e o coração acelerado, abriu-a e qual foi o seu espanto. Vários envelopes amarrados com um atilho de prata, muito bem trabalhada, típica da ourivesaria platina e sobrepostos aos envelopes, uma rosa envolta em um lenço de seda.
Parou no tempo. Viajou no passado. Percorreu os anos, meses, semana, dia, horas, minutos e segundos.
Era uma volta aos seus tempos de loucuras, aventuras, amores, romances, paixões e o despertar dos desejos do sexo. Até que um dia, sem mais nem menos, tudo mudou. Agora era mais do que loucura, não era uma aventura, era uma mistura de paixão, amor e tesão. Com cuidado aos poucos foi desfazendo o atilho de prata, sentiu o perfume da rosa e a fragrância que vinha do lenço de seda. Nunca, nunca havia esquecido aquela fragrância.
Chanel Nº. 5.
Aos poucos foi lendo uma a uma das cartas. Eram cartas escritas onde às juras de amor, os desejos, os sonhos eram colocados em um linguajar romântico, rebuscado e caprichoso. Na realidade era uma catarse que lhe acometia a alma e o coração. Na realidade era uma devolução de todas as cartas trocadas, tanto dele como dela. As suas com uma caligrafia firme. As delas com delicadeza e ternura. Separou, separou e por fim, quando só as dela estavam sobre o lenço de linho, iniciou a ler uma por uma. E soube embora tarde que ela o amara, de forma única e exclusiva. Um amor quase que angelical. Puro na sua essência, puro no sentir e inocente no sentir. Era um amor concebido no fundo e na plenitude do coração. Suas palavras eram doces, como seus beijos. Suas carícias e carinhos suaves como suas mãos. Seus olhares inocentes e únicos, assim como únicos foram os momentos que viveram o amor maior.
Ela vestia uma saia rodada, em lã xadrez, botas de cano longo, blusa de seda branca sobreposta por um suéter cachemir amarelo, que contrastava com os cabelos negros caídos sobre os ombros e um lenço branco sensualmente amarrado em volta do pescoço.
Veio ao seu encontro, não com o sorriso habitual e nem com a alegria contagiante. Estava tensa e séria.
Mal apeara do cavalo baio e com uma das mãos estendida, lhe entregou o anel de brilhante e a aliança de noivado. Só um pedido. As cartas de amor que lhe enviara. A mão que recebera o anel e a aliança, agora entregava todas as cartas recebidas. Sem se despedir, sem olhar e sem palavras, terminaram ali o que antes era belo e lindo. Por quê? Até hoje não entendera a razão do final de um amor. Na sua mente a nitidez do seu rosto. O sentir do calor do seu corpo. O pescoço elegante e delicado, conduzindo suavemente para o colo elegante e a característica essência do Chanel Nº 5 que sempre usava.
As horas passaram, o fogo foi se apagando e as lágrimas rolando, chegando à beira dos soluços.
Já era a décima hora. O sol já derretera a geada, cavalos, carneiros, vacas com crias ao pé, boiada pastando e o El minuanito, agora era uma fraca brisa, que mal conseguia ondular as lavouras de trigo.
Quando deu por si, estava banhado em lágrimas e soluçava com o coração sangrando, na esperança que um dia voltassem a ser felizes. Levantou-se, olhou a movimentação de tratores, máquinas e implementos, a movimentação no curral, ovelhas sendo tangidas mudando de pasto e a manhã já se fazia rápida, o chiar da chaleira de ferro, o mate já curtido agora não tinha o mesmo amargo.
Levantou-se, enxugou as lágrimas com as mãos, respirou fundo, alinhou os cabelos e saiu para a lida do dia a dia.
Ao chegar ao galpão, o cavalo crioulo já estava encilhado a sua espera. Delicadamente puxou-o pelo cabresto, para fora. Montou e saiu sem rumo, a passo lento, sem forçar a marcha. Andou por algumas léguas e parou. Apeou do baio e sentou a beira do açude, onde o vento provocava pequenas ondas e alguns marrecos vindos do Uruguai ali faziam sua estação de reprodução. Ficou a pensar, a recordar e as lágrimas a escorrer pela face queimada pelo sol. Sentia uma paz incrível e uma emoção sem fim.
Uma brisa leve, como que de repente começou a soprar. Trazia no ar um aroma, uma fragrância, um cheiro gostoso e conhecido.
Sentado absorto em pensamentos ou viajando no tempo, não pressentiu que algo começava a mudar, a não ser o perfume inebriante que enchia o ar. As pequenas ondas formadas pelo vento, agora já não mais existiam. A superfície da água era como um espelho de fundo azul, refletindo os raios do sol, as aves que haviam pousado algumas plantas ribeirinhas. Mas ao firmar melhor a vista, como diziam por lá, notou que uma sombra se projetava naquelas frias águas. Um sentimento de pavor, medo e horror começou a se fazer real.
Levantou-se rápido e apavorado, no firme propósito de encarar a situação, um tanto estranha, quando não surreal.
Mas algo o fez ficar estático. Na realidade, pasmo.
Estava ali. De corpo presente, como dizem por aquelas bandas. Linda, maravilhosa, inocente e carinhosa.
A mulher dos seus sonhos, na sua presença, naquela manhã fria e ensolarada.
As mãos estendidas se tocaram e um abraço terno e cheio de amor, foi completado com um beijo cheio de saudades, de afeto e paixão.
Aos poucos foi tomando pé da realidade. Ela viera ao seu encontro. Anos passados, solidão sofrida. Coração em frangalhos. E ela agora ali estava.
Amor? Sim amor. O sentimento que nunca havia desaparecido, agora ressurge de forma inesperada.
E então a pergunta: Sabes por que voltei? Voltei para lermos juntos nossas cartas de amor e viver tudo o que nela escrevemos.
E naquela noite fria, frente à lareira, leram as cartas de amor.
E entre uma carta e outra um beijo, um abraço, um ato de amor.
E no ar o inesquecível perfume de Chanel Nº 5.
E o Erdernirso, não cabia em si de tanta felicidade e amor.