LEMBRANÇAS

          A tarde seguia amena e agradável na grande praça do centro da Cidade, muitos passavam e poucos permaneciam; sentou-se em um daqueles bancos oferecidos ao descanso e a meditação, pensava nos vãos e desvãos da vida; não foi por um acaso que ali sentara, não. Buscava, propositalmente, um local onde pudesse estar e pensar acerca da vida e suas alegrias e surpresas. Constatou, não sem surpreender-se que estava velho, já não tinha o mesmo brilho de anos atrás, nem trazia às faces o mesmo fulgor; já não trazia mais o mesmo riso largo e há algum tempo não ouvia de si, a gargalhada sonora e debochada que permitia-se em momentos de alegria e descontração; já não tinha mais o entusiasmo de quem começa e busca conhecer cada meandro, cada centímetro daquele  novo empreendimento. Envelheci, pensou! Ao redor crianças brincavam alegres e inocentes nos velocípedes, nas pequenas bicicletas, nos patins, corriam atrás de pássaros e pombos que insistiam em pousar buscando alimentos, jovens e adultos ali se misturavam, num frenesi de vida e ansiedade, as pessoas tinham ânsia em viver. 
           As árvores bicentenárias davam ao grande jardim um aspecto cordial e acolhedor; mais adiante um lago artificial, criado especialmente para a observação e deleite de quantos por ali passassem, acolhia pequenos e médios peixes, que movimentavam-se serelepes, por vezes escondendo-se entre pequenas pedras, propositalmente postas ao fundo, para servir-lhes de pequenos esconderijos, profundos conhecedores que eram do seu habitat. As flores vermelhas, amarelas, azuis, roxas, brancas reinavam em toda a sua plenitude, dando ao local um colorido esfuziante; ali, mais adiante, as fontes coroavam o ambiente, e jatos d’água dançavam e serpenteavam distribuindo gotas prateadas que resplandeciam ao sol. Como música, reinava o canto dos rouxinóis, dos colibris, dos bem-te-vis; dos azulões, das lavadeiras, dos sanhaços, das andorinhas, dos sabiás, dos pintassilgos... Ocorria de num mesmo momento, todos cantarem ao mesmo tempo numa alegre sinfonia que nos remetia a lembrança à grandiosidade da vida e da criação. Tudo, tudo ali, era beleza e plenitude. A barba por fazer, denunciava preocupações que os dias anteriores lhe traziam. Quando a conheceu, pensou que tivesse acertado todos os números de uma loteria, cujos prêmios estavam acumulados, sim mas, ao conhecê-la mais ainda, teve a certeza de que era muito mais do que isso. Trazia ela consigo, o encanto das manhãs ensolaradas que se renovam, a alegria do entardecer em paz, o encantamento das noites iluminadas pela luz das estrelas; a tinha em conta, de um ser quase perfeito, não fossem as pequenas frases que delineavam o desgosto, com os seus atrasos constantes; mas, ele a desculpava dizendo-se: “Não há motivos para aborrecer-me, em verdade, ela tem razão”. Tinha ele por costume, atrasar-se mais que o tolerável, porém, buscava compensar estes incômodos, exacerbando-se nos mimos e atenções, fora isso, só risos e contentamentos. Durante um bom tempo, fora assim, dessa forma, pequenos passeios, pequenos encontros, pequenos gestos que desembocavam em grandes juras, imensas carícias, grande paixão. Ainda que lá fora o desencontro existisse, cá dentro, entre eles, viviam a plenitude daquele amor, um amor sereno, forte, maduro, que com o decorrer do tempo, fora sofrendo pequenas ranhuras que renitentes ampliaram-se, quedando ao ostracismo. Sorriu, marcas profundas sulcavam-lhe rosto, o casaco de frio,marrom, destoava com o entardecer ensolarado; descompromissados freqüentadores da praça, caminhavam lentamente, na malemolência que o clima e o humor lhes permitiam. Avec mês souvenirs, relembrar os bons momentos vividos com ela, permitiam-lhe de uma certa forma, ser feliz de novo, ainda que, depois, a dor da separação, se fizesse mais intensa.Sorriu, sorriu o riso amargo dos que contendem consigo mesmo e num átimo, lembrou-se dos momentos em que estiveram juntos; momentos de intensa emoção. Lembrou-se do dia em que levou o par de anéis que marcaria aquela aliança; lembrou-se da alegria que teve ao experimentá-los, lembrou-se da promessa de amor eterno; lembrou-se dos projetos de viagem à França, ao Mont Saint- Micheal ; à Grécia, os mares da Grécia são os mais belos do mundo, disse-lhe ela. Lembrou-se, e como poderia esquecer, que no pequeno espaço que foi deles, Saramago ocupava, na pequena estante, lugar especial; Edith Piaf no pequeno CD, cúmplice paciente e compreensiva, por isso a escolheram por madrinha, preenchia os espaços ainda vagos com toda a emoção que a caracteriza, non, jê ne regrette rien , sim, ele não lamentava nada; absolutamente nada, por muitos momentos fora feliz; por muitos momentos soube o que é ser amado e o que é ser feliz, mas, o tempo, o tempo é dinâmico e flui e marca e passa; jê me fout de passe, ah! sim, o passado, como ele se ri do passado. Quando tudo terminou, não teve a coragem de despedir-se daquele lugar onde foram tão felizes, negava-se a reconhecer que tudo acabou ali, ainda que, por meses quisessem prolongar ou reviver o que haviam vivido, mas, algo havia se partido, como um cristal que se quebra e não é mais possível reconstituí-lo. Veio um homem e sentou-se ao seu lado, cumprimentou-lhe com um leve aceno de cabeça, abriu o jornal, por segundos distraiu-se roubando do vizinho, as manchetes do seu jornal, lia-as, não com a avidez e curiosidade que antes lhe caracterizara, mas, com a mornosidade de alguém que lê por ler, e olha por olhar, como olha por olhar para aquelas moças que passam e repassam à sua frente e não lhes chamam a atenção; virou-se para o outro lado, retomou o fio das suas elucubrações. Lembrou-se de quando vinham àquela praça, que na verdade é um jardim, e estavam juntos e felizes e quanto tinham para buscar e trocar, mas, de quando em quando ela o surpreendia ao dizer-lhe: Não é bem assim, as coisas não são bem assim...Às vezes, parecia-lhe tão fácil, às vezes, parecia-lhe tão difícil. Estava tão absorvido em seus pensamentos, que não notou o insistente vendedor de amendoim, que já há alguns segundos lhe falava: Moço, amendoim de primeira, vai querer ? Balançou a cabeça negando. Resolveu levantar-se, mãos no bolso do pesado casaco, cabelos grisalhos, barbas por fazer, atraiam os olhares dos passantes sobre si, mas, ele não se importava; caminhou querendo talvez, quem sabe, no seu íntimo, encontrar a pessoa que invadia-lhe o pensamento, sem a menor cerimônia, quem sabe, contaria com a ajuda extraordinária do acaso, assim como o acaso os uniu. Seguiu pelos atalhos e veredas antes caminhados por ambos, buscou atrás das árvores, parou em frente às barracas de peças antigas: santos, tesouros, espadas; esquadrinhou bugigangas: bolsas, lenços, cachecóis; invadiu livrarias: Saramago, Machado,Drummond; teatros, trens, restaurantes. Nos olhos, só lhes cabia o olhar dela; apreciava a arte, mas, preenchia-lhe o olhar dela que havia perdido; Moço, uma fitinha do Bonfim; uma fitinha só, do Bonfim, leve de lembrança, é boa, dá sorte! Concordou, consentiu, comprou-a, é boa para dar sorte...e quem sabe....Já noite, bem tarde, retomou o caminho de casa; não sentia o cansaço físico, mas, o desencanto da partida, tirou dos pés os sapatos, largou o casaco numa cadeira, acendeu as luzes, foi ao banheiro, retornou; jogou-se na poltrona, sentiu-se tão só quanto a própria solidão, mais do que nunca desejou ardentemente que ela estivesse ali, com ele; de repente, um vizinho do térreo, desses que sonham em fazer sucesso como cantor, põe-se a cantar e palavra após palavra ele reconhece trechos de uma música que muito ouviram, gostaria de ter-lhe escrito os versos:Non jê ne regrette rien, car ma vie, car mês joies, pour aujourd’hui ça commence avec toi. (Não eu não lamento nada, pois minha vida, minhas alegrias hoje, começam com você).Lembrou-se do cuidado que ela tinha, ao manusear o cd e  escolher a faixa que lhes  chamava a atenção, je ne regrette rien.  Suspirou, virou-se de lado, ajeitou-se na poltrona confortável, dormiria por ali mesmo, afinal, o bom da vida, o boom da vida, é que todos os dias ela se renova, e amanhã certamente será outro dia.