O sábado
Hoje é sábado. Fim de semana de verão na cidade. O hospital atende os pacientes desde muito cedo. Desde as três, a emergência está repleta e os leitos vão lotando depois deste horário.
Durante os fins de semana, o movimento ruidoso de macas e pacientes na emergência é mais intenso. Normalmente não há soro para todos, e a demora do atendimento soma-se aos gritos, uma situação já comum para os médicos ainda residentes; Ali, jovens de aparência abastada e se unem às frívolas enfermeiras veteranas.
Na portaria, o carro da polícia e sua sirene barulhenta alertam para a chegada de alguns assaltantes feridos. Vinham de um confronto com policiais após um assalto ocorrido numa delicatessem da orla cidade...
O movimento na emergência parece ficar mais tenso agora. O chão se derrama em sangue e alguns meliantes têm seus braços amarrados às algemas enferrujadas. O que revelam são punhos negros e falidos, já sem armas.
Policiais obscuros, quase suspeitos, entreabrem a porta da enfermaria. As armas sobressaem à farda chamuscada de pólvora e sangue. Parecem estar vivas,ainda quentes pelas fagulhas das balas recém-atiradas. Elas parecem conversar com os bolsos folgados e gastos daqueles homens tão suspeitos quanto os feridos da viatura.
Os barulhos deste lugar agora se misturam àquela atmosfera ácida e hostil onde todos lutam por suas vidas. Nos corredores, estão prostrados os dois assaltantes da delicatessem.
Em seus rostos, hematomas sobrecarregam ainda mais as feições insatisfeitas devido à presença inquisidora do policial de média estatura e barrigudo. Este tinha uma pele enrugada, e sua arma se sobrepunha à calça jeans encardida.
Os cenários se compõem. Podemos sentir os aromas de éter e de outras substâncias que se familiarizam bem com o ambiente. Num corredor próximo, há uma senhora negra e exígua. Além dela, há outros que assistem às ameaças feitas aos marginais cabisbaixos. Calados e rendidos, eles parecem ouvir com atenção as lições do robusto policial que permanece de pé, assegurando que os dois continuem imóveis.
O sangue, que cai em pingos, empoça aos poucos o chão onde suas macas se acomodam. Mas o soro fisiológico, aplicado à veia que dorme, reaviva os rostos negros dos dois homens.
Há uma senhora gorda e de pele sardenta que sussurra baixo gritos de dor. São as dores de mais uma de suas crises urinárias. Por isso, ela tem uma enorme bolsa à beira das ancas vultosas, onde urina incessantemente.
Os braços da senhora gorda, presos pelas agulhas do soro, se seguram aos ferros da maca, enquanto ela informa à enfermeira que seus urinóis precisam ser trocados.
Em um dos cantos azulejados, dois homens de meia idade conversam. Estão juntos, sentados. Estão à espera do radiologista de plantão. Já se sabe que os radiologistas sempre chegam atrasados nos fins de semana.
Enquanto reclamam da demora do radiologista, explicam à Creuza, uma das enfermeiras, o famigerado ocorrido.
Mas a mulher, que os olha de soslaio e desconfiada não parece querer ocupar-se deles. Um deles, Firmino, mais diligente, trata-se das explanações tão indesejadas sobre a briga com as prostitutas da Gamboa. E assim prossegue Firmino, explicativo e quase metalinguístico na sua narração incômoda.
Desta vez um engenhoso intento. Certamente haviam esquecido que as mulheres da Gamboa não aceitavam ser enganadas, muito menos durante os fins de semana. Nestes dias, estavam sempre vistosas e bem vestidas. Era normal que cobrassem mais pelos seus serviços nestes dias...
Para a infelicidade e incompreensão dos dois noctívagos, foram surpeendidos pela fúria e ardil de uma meretriz raivosa, que meticulosamente ensaboou o chão na saída da casa, esperou que caíssem no chão e rolassem pela Rua do Poço abaixo para assim arremessar mesas e cadeiras em suas cabeças e braços.
Antônio, um dos assaltantes da delicatessem, tem uma bala alojada no braço esquerdo e tenta com algum esforço mover-se em direção à maca, local onde o médico começa os procedimentos.
O plantonista inicia os procedimentos. Retira do músculo rígido o projétil calibre 38. Para Elias, plantonista de 26 anos, há quatro meses residente no hospital este exercício era de tamanha paciência e atenção. Ele o executava com notável concentração.
O olhar de Elias percorre a superfície escorregadia e negra da pele ferida enquanto as mãos acalmam-lhe a dor sob a ação de anestésicos dispostos na mesa ao lado da maca onde o meliante se acomoda.
Elias inquieta-se com aquele encontro, contudo mentem discrição corretiva. O estudante recém-formado se esforça em conter os espasmos que o acometem enquanto delineia a carne daquele homem temido e perigoso.
O queria profundamente agora. Mais que perto ele assim o queria... perto quanto se quer os amante nas madrugadas que duram eternidades..
O médico tem agora as batidas de seu coração mais aceleradas. Cada vez mais velozes, elas aceleram sua alegria contida e esta era expulsa pelo suor que sentia fluir por dentro da pele sob a luva coberta pelo sangue do marginal. Enrubesce.
Antônio, o meliante cortejado, sente-se tranqüilo agora. Ele está medicado e absorto pelas dores nem um pouco desconhecidas para ele, pois que não se tratava de um infrator iniciante. Antônio se sente profundamente agradecido. Está à vontade agora e ligeiramente sonolento. Sob os efeitos das reações medicamentosas presentes em seu corpo, assistimos uma mudança na tez do assaltante.
A sua figura se transforma pelas carícias do médico em uma energia naturalmente corajosa e excitante, acometendo o ato cirúrgico a uma nítida intenção sexual, contagiante, plástica e irresistível. A expressão inebriada do assaltante anestesiado e salvo faz-se, é notável.
Envolto pelo realismo fantástico dos delírios, a memória de Antônio traz à tona uma figura fascinante. Antônio agora dorme. Em seu sono profundo, vê-se luzes vermelhas.
Está na casa de encontros Avallon, no largo Dois de Julho. Frequentador assíduo da casa, Antônio seduziu-se pela figura de Samantha. Era uma figura de traços masculinos interessantes. A rigidez de sua face e as feições imponentes se combinavam à disposição das maçãs do rosto coloridas e redesenhadas pelo pankeik rosa médio.
Antônio galanteia o transformista e olha para sua figura feminina languidamente e assim, Samantha estimava-se pelos carinhos do homem. Sentiu que devia dar a ele sua atenção.
O vapor que saía do seu hálito levemente alcoolizado pela bebida ainda em seu copo inflamava a pele de Samantha, temperada por volúpias e pela estima de si mesma. A pele, pulsante, rega-se da saliva intermitente que invadia a boca e o carmim do batom minuciosamente desenhado a boca.
Neste momento, o casal revela a intimidade dos seus corpos cada vez mais anexos, amparados pelos carinhos cúmplices e pela confissão dos seus corpos descobertos e invencíveis. Os corpos masculinos pretendiam um ao outro numa dança quase rítmica e pueril.
A profusão dos pêlos masculinos atira Antônio à cama. Rendido pela figura espetacularmente fetichista, agora vestida apenas com uma peça vermelha que esconde o seu órgão sexual quase extinto de tão escondido e murcho debaixo da renda e devidamente acoplado às roupas para não parecer estar ali.
Satisfaz-lhe, finalmente, o homem. Tanto as vontades do corpo como a dos desejos. Retribuem um ao outro em alto grau tal paixão. Eles parecem fortes homens, confidentes, aliados. Guerreiam em seus universos... Férteis, másculos, profundos e cheios da força que fertiliza o mundo. Assim fizeram-se, eternos, felizes...
Não há mais ninguém por perto. Antônio chama uma enfermeira.
Pois bem. Ainda há pessoas sentadas em um banco de azulejo azul e frio, estes já medicados exibem um sorriso amarelo, breve.
Elas exalam a graça de terem sido abastecidos pelas fartas vasilhas de soro da tarde. Essas pessoas exibem em amarelos rostos de peles macilentas e espetadas, a quietude de serem salvas pelas milagrosas agulhas que anunciam a volta tranqüila para casa. Hoje ainda é sábado.