[LIVRO] Ah fantastica historia de um ex-caipira. (capitulo 1)
Um caipira que não sabia ler nem escrever, herdeiro de enorme fortuna, parecia presa fácil para o advogado que pensava ludibria-lo e para o tio que, julgando-o morto, pretendia ficar com a herança. Os fatos porem surpreenderam a ambos. Esta historia envolve romance, drama, e nos faz meditar, compreender a luta do homem do campo as dificuldades, e como eles são felizes com o pouco que tem. Encorajando-nos a manter a confiança na grande bondade e inteligência de Deus.
Capitulo 1
Ponto terminal. A estrada acabava ali. Pequena vila no interior da Paraíba, logo depois caatinga seca desolada quase impossível de se viver, mas mesmo assim misteriosa, e em alguns lugares nas cabeceiras dos rios era rica cheia de animas e alguns aventureiros que por ali viviam. Na pequena vila alguns casebres de pau-a-pique, construídos sem alinhamento ou cuidados. Uma rua que era a própria estrada de terra, uma bodega onde podia-se comprar o fumo, o sal, a cachaça e algumas vezes um pedaço de charque ou rapadura.
A maioria dos moradores eram ex-trabalhadores de grandes fazendas da região, algumas que já não existiam mais, e dessa forma na triste seca e algumas vezes até fome daquele cariri, começaram a povoar o lugar.
Alguns desses moradores tinham plantação de batata-doce, milho, jerimuns, feijão e algodão, Os mais abastados, galinhas, e só “Seu Cazuza Gurjão”, de vez em quando, criava um porco que era sempre de pouca engorda.
Embora carente, Timbauba dos Gurjão (era o nome da vila) abrigava algumas famílias ordeiras e pacatas. Pouco exigiam, limitando-se as plantações nos sítios e criações de bodes, ovelhas e bois, e a algumas viagens na cidade de Campina Grande, que distava uns dois dias a pé, para vender ou troca seu algodão pelos gêneros ou objetos de que necessitavam.
O apelido curioso de Timbauba dos Gurjão devia-se a primeira fazenda que ali veio habitar, tendo muitos trabalhadores que quando o dono da fazenda morreu, viraram forasteiros e povoaram o lugar com suas famílias.
Muitos deles aceitavam a vida dura e pareciam não ter outras ambições ou aspirações senão continuar ali, sobrevivendo ao sabor da sorte; outros, porém, os jovens principalmente, se iam da vila, sonhadores de conhecer o resto do mundo, que para eles era o Rio de Janeiro e São Paulo.
Sebastião morava só. Cuidava do seu próprio sustento plantando um pouco de feijão e milho. Casando para matar o tédio e ter a “mistura” na hora do almoço, vadiando, dormindo na rede ou mourejando na cacimba quando tinha fome, e na roça, quando vinha a disposição.
Tinha apenas 25 anos, mas seu corpo alto e magro parecia mais velho.
O rosto, queimado de sol, parcialmente coberto por uma barba mais escura do que seus cabelos castanhos. Sebastião não nascera em Timbauba dos Gurjão; chegou inicialmente em São João do Cariri há mais de 18 anos, trazido por seu pai ainda bem pequeno, e depois que a fome bateu a porta, foram procurar emprego na fazenda Timbauba, que pertencia a família dos Gurjão, e lá seu pai construiu a cabana onde sempre tinham morado. Seu pai não era homem de roça como os habitantes da pequena vila, tinha maneiras e era letrado. Porém, demonstrava grande desprezo pelo mundo e pelos homens. Inculcara em Sebastião verdadeiro horror à vida na cidade, o pessimismo em relação à humanidade e o desprezo pelas conquistas do progresso.
Acostumou-se à natureza, ensinando o filho a viver de maneira primitiva e rude.
Sebastião aceitara aquela vida, amava o cheiro da terra, os pássaros, os animais. Alma de poeta, vibrava ante a beleza do cariri da Paraíba, e ficava maravilhado em ver na terrível seca o mandacaru desabrochar, e ficava feliz pois sabia que depois seria tempo de fartura com a tão esperada chuva. Adorava aventurar-se pelo mato seco e hostil da caatinga desbravando-a pelo prazer de vencê-la.
Quando seu pai adoeceu, queria transportá-lo à São João do Cariri, mas o velho José recusou-se decididamente a ir. Desacreditava da medicina. Preferia as beberagens do mato que aprendera com um índio de quem era amigo. Apesar disso, elas foram insuficientes. José, minado pela febre, veio a falecer. Ajudado por alguns amigos, Sebastião enterrou-o ali mesmo, na beira do rio Taperoá. A vida continuou igual, dentro da velha monotonia de sempre.
Não pensou em retirar-se embora. Para onde iria? Não sabia ler nem escrever. Ali, tinha sua casa, seus amigos com os quais pouco conversava. Tinha o que lhe bastava, para que mais?
Deitado na rede grosseira à noite, gostava de olhar o céu pontilhado de estrelas através da janela da cabana. O que haveria lá em cima? Como aquilo não caia?
Ficava pensando, pensando... Quem teria feito tudo aquilo? Seria Deus mesmo?
Não sabia responder. O pai nunca lhe ensinara nada a respeito de Deus. Ouviria dos amigos que fora ele o criador de tudo. Como poderia ser? Se fosse verdade que poder teria!
Cismava, cismava. Às vezes sentia-se só, mas aceitava a solidão como penúria sem remédio. Casar seria bom, mas tinha medo. O seu pai sempre recomendava-lhe fugir das mulheres, figuras fúteis e traiçoeiras.
Poucas moças na vila, feias e sem graça. O jeito era ficar só mesmo. Melhor do que sofrer.
O tempo ia passando, passando, na monotonia da roça, e Sebastião deixava-se ficar, aceitando a vida, contentando-se com o pouco que ela lhe oferecia.
Era tarde amena de novembro, e o Sebastião, na rede, cochilava embalado pelo pipilar dos pássaros que em bandos passavam sobre as árvores.
Parecia até milagre, mas chovera durante vários dias, e agora o sol tinha brilhado, enchendo os pequenos córregos e riachos e se ouvia em toda parte o cantar dos sapos alegres com a chuva tão esperada, as folhas verdes recendiam ainda o aroma peculiar das plantas molhadas, exibindo agradável frescor.
Ele colocara a rede debaixo de um pé de cajueiro, usufruindo as delicias da natureza. Foi quando um ruído desagradável veio arrancá-lo da modorra, fazendo-o abrir os olhos, surpreendido.
Quebrando o silencio campestre, da paisagem, um jipe descia a estrada. Apesar de não ser usual um carro naquelas paragens, Sebastião não se moveu. Limitou-se a olhar em silêncio.
O jipe aproximou-se e parou em frente a sua casa. Havia três homens dentro dele, e Sebastião reconheceu o Raimundo do Córrego Seco, de São João do Cariri, com o qual já trocara alguns mantimentos. Seu pai era quem o conhecia melhor, uma vez que quando iam a vila tinham demoradas conversas com ele.
Calmo, esperou. Raimundo chegou-se, chapéu entre os dedos, sorriso mostrando alguns dentes amarelos do fumo.
–¬¬ ¬Oh! Bastião...
O interpelado sentou-se na rede, olhando o interlocutor, calado.
– Oh! Bastião – repetiu ele – careço falá com ocê. Assunto sério e particulá.
– Pode falá home.
– Esses dois home que tão no carro tão procurando ocê. Viero de Recife, esperciar, só pra lhe vê.
– Sebastião alçou o olhar desconfiado para o jipe parado, onde os dois homens estavam tranquilamente.
– Num conheço eles. Pra que tão me procurando?
– Num sei não. Parece que viero trazê noticia de parente seu da cidade...
– Bobage. Num tenho ninguém. Só sozinho no mundo.
Raimundo baixando a voz e, colocando a mão sobre Sebastião, disse em tom intencional:
– Sabe, eles são gente rica. Tem dinheiro pra se vê. Gastam sem pena. Pra eu trazê eles aqui e ensiná sua casa me dero dois conto.
E, vendo que o outro olhava desconfiado, completou:
– Eu só truxe pruque eles são gente direita. Queria falá com ocê.
Sebastião deu de ombros.
– Num tenho nada pra falar co’eles.
– Ocê num vai agora mandá os home imbora sem conversá. É farta de inducação. Dispoi, eles viajaro muitas léguas, tão cansado. Se ocê num qué dá atenção preles, deixa só descansá um pouco que agente vorta prá trás.
– Ta certo. Ocê num vai dize que sou mal inducado. Chama eles.
Raimundo saiu com sorriso amável a distender-lhe o rosto moreno e ossudo. Os homens saltaram do jipe e, com fisionomia aparentando estar com medo, aproximaram-se. Um era jovem ainda, menos de trinta anos; o outro beirava os 45. Vestiam roupas de brim, mas o corte e a qualidade eram de muita classe. Pela aparência, homens da capital, cultos e elegantes.
Sebastião colocou-se de sobre aviso.
– Esses são os home que querem lhe conhecê – apresentou Raimundo, meio sem jeito.
– Pruque? – fez Sebastião, olhando-os bem nos olhos.
Apesar de homens desembaraçados, os dois ficaram sem saber como começar.
A pergunta direta foi feita com rudeza, mas sem agressividade.
– Posso explicar – tornou o mais velho com voz delicada. – Meu nome e Olavo Rangel, advogado. Meu amigo e Juvenal Dias, jornalista de Recife. Temos um assunto de seu interesse para conversarmos. Viemos de longe à sua procura. Estamos cansados. Se permitisse gostaríamos de descansar um pouco.
Sebastião olhou-os de frente. Depois resolveu.
– Tá bem. Vamo lá pra dentro. Casa de pobre. Num se ocês vão ficá a gosto.
Levantou-se e conduziu-os ao casebre humilde. Dentro, uma mesa tosca, duas cadeiras que o pai trouxera ainda quando tinha ido para lá, um pequeno armário, uma arca de madeira e nada mais. A um canto, um fogão de lenha que ele mesmo tinha feito com algumas pedras e barro.
Ofereceu-lhes as cadeiras enquanto tomava assento na rede, que também lhe servia de cama. Raimundo ficou de pé mesmo.
– Muito bem – tornou o advogado em tom profissional –, seu nome todo é... Preciso saber se estou falando com a pessoa que procuro.
– Meu nome é Sebastião.
– Temos ai um problema. Eu acho que seu nome é outro. Sei que seu pai mudou o seu nome quando deixaram São Paulo.
– Parece que o sinhô sabe mais do que eu.
– Acho que sei. Seu nome é Geraldo Tavares de Lima. E seu pai Euclides Marcondes de Lima. Sebastião foi apelido que ele lhe deu, na mesma época que passou a se dizer José.
Sebastião interessou-se. Seu pai nunca lhe contara as razoes pelas quais tinham deixado São Paulo quando ele tinha cinco a seis anos e resolvera morar ali. Varias vezes quisera saber, perguntar-lhe, mas o assunto o irritava tanto que acabava desistindo. Agora, aquele estranho aparecera com aquela historia. Deveria acreditar? O homem parecia serio e de bem.
– Num sei se é verdade, inda era muito pequeno, num lembro.
Olavo ficou preocupado.
– Faça um esforço seu pai nunca deixou nenhum guardado, como papeis, documentos, etc.?
– Sebastião esforçou-se para lembrar.
– Acho que não. Ele tinha raiva de papeis, dizia que atrapalhava a vida.
– Procure lembrar-se do que aconteceu quando chegaram aqui – tornou o jornalista, persuasivo. – nunca viu nada de estranho com ele?
Sebastião pensou, pensou, até que se lembrou:
– Um dia ele chegou da vila feito doido. Trazia um jorná que lia muitas vezes com fúria.
– Você sabe o que dizia?
– Num sei lê. Ele nunca deixou eu aprendê. Depois mandou eu ir buscar água na cacimba, mas eu fui logo. Tava assustado co’ele e me escundi pra vê o que ele fazia. Vi quando pegou uma caxa e foi pro mato. Enterrou ela e depois vortô. Parecia mais sussegado. Fiquei pensando na caxa, e quando ele foi durmi de tarde, fui lá e desenterrei pra vê o que era. Tinha só papé, e eu interei ela de novo, cum medo dele me batê. Ele era homem bom mais muito brabo.
Olavo animou-se.
– Lembra-se de onde esta caixa esta enterrada?
– Faz muito tempo, mas acho que se percurá nóis acha.
– Sabe, Sebastião, é muito importante sabermos se você é mesmo filho do
Euclides Marcondes de Lima. Para isso viemos à sua procura.
– Tá certo. To querendo conhecê o que meu pai num quis-me contá. Vamo lá.
– Levantou-se, apanhou a enxada e dirigiu-se para fora. Os outros o seguiram em silencio. Notava-se-lhes a preocupação no semblante.
Sebastião caminhou, para pequena plantação sem presa, obrigando os outros a moderarem a marcha. Ao fundo, sobre uma arvore, parou coçando a barba.
– Acho que foi aqui. Faz tempo, mas eu num esqueci. Deixa oiá bem pra vê... è, acho que foi aqui.
– Os olhos ansiosos dos três iam de Sebastião ao chão coberto de mato. Ele começou a cavar. Em nenhum momento pareceu apresado. Lentamente, foi sulcando a terra com certa facilidade, por causa da chuva do dia anterior. Sebastião cavava e nada.
Ia com cuidado, atento para não danificar a caixa quando achasse.
– Acho que era mais pro lado.
– Será que seu pai não a retirou daqui? – inquiriu o advogado, preocupado.
– Num acredito. Pra quê? Se enterro foi pra se livrá dela, num foi pra guardá. Olha aqui, parece que aqui tem coisa... É, acho que encontrei.
– Cuidado, para não estragada, deve estar velha.
– Num carece preocupá. Sei lidá co’a terra.
Realmente, em poucos minutos, um objeto escuro surgia aos olhos curiosos dos presentes. Não era bem uma caixa, mas uma bolsa rústica de couro cru que, apesar de suja e úmida, estava intacta.
Sebastião largou a enxada e limpou as mãos na calça surrada.
– Deixa eu limpa ela pro forá procês num sujá as mão.
– Não importa – tornou o advogado, impaciente. – Vamos abrir para ver o que contem.
Sebastião abriu-a com cuidado e certa dificuldade, e um grosso rolo envolto em um pano sujo surgiu. O advogado desenrolou-o e alguns papeis amarelecidos do tempo apareceram. Rápido, Olavo os manuseou, e sua fisionomia distendeu-se em triunfo.
– Acho que encontramos. Esta aqui o que precisamos.
Sebastião olhou-o desconfiado.
– O que ta escrito aí, seu dotô?
– São documentos, certidões, vamos até a casa. Lá, poderemos examiná-los minuciosamente.
– É mió mesmo. Ta ficando escuro e num dá pra enxergá.
Com a calma que lhe era particular, Sebastião apanhou a enxada e tapou o buraco, enquanto os outros homens, impacientes, encaminhavam-se para a casa modesta. Vagarosamente, Sebastião aproximou-se, entrou na cabana e acendeu o lampião.
Sob sua luz bruxuleante, o advogado, com emoção e certa impaciência, examinou um por um daqueles documentos, sacudindo a cabeça afirmativamente e olhando satisfeito para o jornalista, que, sobre seu ombro, também inteirava-se do seu conteúdo.
Apesar de curioso, Sebastião não fez nenhum gesto. Observava tudo em silencio, olhos, cerrados, esperando.
É tal qual eu esperava. Você e mesmo Geraldo Tavares de Lima, nascido em São Paulo a 18 de junho de 1908, filho de Euclides Marcondes de Lima e de D. Carolina Tavares de Lima.
– Como sabe? – perguntou Sebastião.
– Estão aqui as certidões. Esta e do seu nascimento, esta a do casamento do Dr. Euclides, a 15 de maio de 1900, na comarca de Itu. Tem também outros documentos importantes, eu vou dar-lhe a melhor das noticias. Prepare-se, Sebastião, sente-se para não cair.
Sebastião olhava meio assustado.
– É com você, sim. Seu nome e Geraldo e de hoje em diante deverá ser chamado assim.
Juvenal pegou-o pelo braço, forçando-o a sentar-se em uma das cadeiras. O advogado, diante do espanto de Raimundo e de Sebastião, continuou:
– Você e um homem rico, homem! Podre de rico, que se quiser, pode comprar uma cidade inteira.
Sebastião olhava sem entender.
– Num pode sê. Ocê tá enganado. Meu falecido pai era muito pobre. Num tinha dinheiro nem pra comprá o fumo.
– Engano seu. Seu pai era medico e muito rico. Pertencia a uma das melhores famílias de São Paulo, nunca lhe contou?
– Custa acreditá. Medico? Acho que ocês tão enganado. Ele num gostava da medicina não. Dizia que os medico num sabe de nada. Sempre se tratou côas erva dos índios e eu também, nunca tomávamos droga de farmácia.
– Mais uma razão para acreditar no que eu digo. Ele era medico, mas que se formou para contentar a família, não gostava da profissão. Apesar disso, cuidou de você.
– É, ele cuidou. Conhecia muitos remédios, mas só de mato – coçou a cabeça sem entender. – mas se era rio e medico, pru quê veio pra cá nessa vida dura e sem conforto?
– Aí é que esta, não sabemos bem o que aconteceu. Parece que um dia teve que socorrer um amigo que hospedava em sua casa e não conseguiu evitar sua morte. Desgostoso, passou a mão no filho, e sumiu de casa. Inúteis todas as buscas de D. Carolina, estava inconsolada, desesperada. Colocaram anúncios nos jornais, contrataram gente da policia para procurar, nada. Ninguém sabia informar onde o Dr. Euclides escondera-se com o filho. D. Carolina, fechou a casa e nunca mais tirou o luto. Segundo eu seu ela só tiraria no dia em que encontrasse o filho, único amor de sua vida. Com a morte do avô pai de Euclides, ela herdou imensa fortuna, propriedades que vieram a aumentar muito o patrimônio da família.
Sebastião ouviu pensativo, quase sem acreditar que aquela historia fosse a de seu pai. O advogado continuou:
– O velho Dr. Marcondes de Lima, pai de Euclides, seu avô paterno, portanto era advogado hábil e de posses. Viúvo tomou conta dos negócios da nora quando seu pai saiu de casa, em que procurou consolo para a separação do filho predileto. Bem aplicada e administrada, a fortuna aumentava sempre. Mas D. Carolina não demonstrava alegria, raramente saia era vista muito pouco, não freqüentava a sociedade nem abria seu palacete da avenida paulista, em São Paulo, para os velhos amigos e conhecidos. Era conhecida como excêntrica. Quando perdeu o sogro ficou ainda mais melancólica. Faleceu a cerca de seis messes. Você é o único herdeiro de uma das maiores fortunas do Brasil.
Sebastião não se sentiu alegre. Pressentia sempre um mistério na ida de seu pai para aqueles sítios. Se tudo aquilo fosse mesmo verdade, o que teria acontecido para o pai ter abandonado tudo, pai, esposa, dinheiro, tudo? Qual o mistério que havia por trás de tudo aquilo? Não pensava no dinheiro. Não tinha ambições. Preocupava-se mas a mãe, de quem lembrava senão vagamente, de rosto jovem e alegre, debruçada sobre ele.
Era das poucas lembranças que conservava daqueles tempos. O pai havia-lhe dito que estava morta, e se tudo fosse verdade, se o advogado não estivesse mentindo, quem mentira fora ele. Ele que tinha horror a mentira. Renegava a sociedade e o mundo, pela mentira dos homens, pela hipocrisia. Queria ficar na simplicidade da natureza para fugir aos que enganam e fora o primeiro a mentir a enganar. Ele que gostava tanto da mãe, que sempre sofrera sua falta.
Sentia-se profundamente decepcionado. A mãe, sempre querida e recordada no silencio de suas noites solitárias. Sentira-lhe a falta durante aqueles anos, mas conformara-se, julgando-a morta. Fora enganado! Ela usara luto por ele, sempre fora mãe amorosa, e ele, seu único filho!
Seu coração apertou-se. Um sentimento de revolta começou-lhe a brotar de seu peito oprimido.
Dr. Olavo admirou-se.
– pensei que minha mãe tivesse morrido há muito tempo. Primeiro ocê me diz que ela tava viva até pouco tempo, pra depois dizê que agora já tá morta. Acha que posso tá alegre por isso?
O advogado trocou um olhar surpreendido com o jornalista. Quem não entendia era ele. Julgo não estar tratando com pessoa normal.
– Você não sabia que sua mãe era viva? – perguntou Juvenal com voz conciliadora.
– Não. Num sabia. Senão tinha ido lá buscá ela pra morá comigo.
– Acha que ela viria para este buraco? – fez o advogado com ironia.
Sebastião olhou-o bem de frente.
– Era minha mãe – tornou ele, muito serio. – Se gostasse de min, haveria de querê ficá comigo.
– Bem, pode ate ser – fez o advogado, mais interessado em tratar dos seus negócios do que nos problemas daquele Matuto. – Mas agora viemos buscá-lo para tratar da herança. Você é um homem muito rico, precisa ir a São Paulo para tomar posse de tudo. Podemos ir amanha mesmo. Cuidarei de tudo. Você não tem por aqui muitos valores, pode deixar tudo isso e comprar o que quiser assim que chegar-mos à cidade.
Calmo, Sebastião esperou que ele terminasse e depois declarou:
– Quem lhe disse que vô?
– Como?! Certamente que irá. Sua fortuna é na base de 50 mil contos de réis!! Se não for, não recebe nada.
– Não careço de nada. Tenho tudo que quero. Num sinto farta. Aqui, os amigo e verdadero, gente boa de bem e nossa vida é sussegada. Num gosto da cidade. Só tem farcidade e hipocrisia. Que vô fazê pru lá?
– E o dinheiro?
Sebastião deu de ombros.
– Num tem importância. Num sei gastá ele mesmo. Ia-me da muito trabalho. Vô ficá aqui mesmo. Levá minha vida. Se a mãe tivesse viva eu ia, mas ela já ta morta, então, num carece de i...
Dr. Olavo trocou olhar desanimado com o jornalista. Sentou-se, sem saber que dizer. Jamais pensara encontrar tanta ignorância. Talvez ele fosse um deficiente mental. Para recusar tanto dinheiro, preferir tal miséria, só havia uma explicação: a imbecilidade. A incapacidade para avaliar o que estava fazendo, esnobando tanta riqueza.
Por outro lado, um homem tão ingênuo seria fácil de manejar, principalmente na administração de seus bens, o que era seu objetivo principal. Por isso, calou-se e permaneceu pensativo, durante alguns minutos. Depois tornou:
– Bem, quanto ao trabalho não precisa ocupar-se com nada. Tenho um escritório em São Paulo e poderia tratar de tudo para você. Acontece que se você não for receber esse dinheiro, não se apresentar dentro do prazo legal, quem vai herdar tudo é a família de seu tio José, irmão de seu pai, e isso não era do gosto de sua mãe.
Sebastião fixou-o com curiosidade.
– D. Carolina não apreciava o cunhado por que ele botara fora toda parte da herança que recebeu, joga muito. Seu filho também e sem juízo. Estão arruinados e loucos para receber o dinheiro de sua mãe.
– Depois – aduziu o jornalista –, não é só o dinheiro. Vão morar na casa dela, ficar com as jóias dela, as roupas, os moveis, tudo que era dela que é seu.
Sebastião estremeceu. Tocaram-lhe o coração o ponto fraco. Gostaria de ter alguma lembrança da mãe.
– Se você gosta de sua mãe, não deve deixar que pessoas das quais ela não gostava e vivia tomem conta de tudo.
– É – fez ele, pensativo. – Ela num ia gostá.
– Então – tornou o advogado, com habilidade –, você vai conosco amanhã, toma posse de tudo. Depois, pega o que desejar, e se não quiser ficar por lá, volta pra cá. Você não e obrigado a ficar lá. Precisa ir por que sua presença e importante para fins legais. Decidira o que quer. Ninguém pode obrigá-lo a nada. Se resolver da toda sua fortuna, ninguém tem nada com isso.
Sebastião permaneceu pensativo, indeciso.
– Vai, home – animou Raimundo, cujos olhos miúdos vibravam de cobiça. – Se quisé, eu posso i junto. Eu num deixava essa dinheirama pra esses parente que sua mãe num gostava. É desaforo.
– É – disse o advogado, com astúcia, – tem razão. Eles abriram o inventario, alegando que você esta morto e que os únicos e verdadeiros herdeiros são eles.
– Mas eu tô vivo – tornou Sebastião, irritado. Tinha raiva dos ambiciosos e interesseiros.
– Eles não tem certeza se você e vivo ou morto. Mas ao invés de procurar descobrir, eles querem lhe passar a perna. Afirmam em oficio que você esta morto. E como esta desaparecido a 18 anos, se não aparecer com os documentos provando que esta vivo, eles herdarão tudo.
– Como foi que me descobriu aqui? ¬– perguntou Sebastião, desconfiado.
– Conheci sua mãe. Fui amigo dela. Sempre procurou saber onde estava o filho. Fui encarregado de procura-lo. Mas infelizmente, só depois de seis meses consegui acha-lo. Se ele fosse viva, como ficaria feliz!
Sebastião tranqüilizou-se, se era amigo de sua mãe devia ser gente de bem. Depois, eles tinham razão. Seria doloroso que esses parentes sem escrúpulos, ambiciosos, que se alegraram com a morte dela e apressaram-se a dize-lo morto, ficasse com tudo. Não era justo. Não gostava da cidade. Encarava o povo da metrópole como um ninho de assaltantes e hipócritas. Mas era homem de coragem. Ia até lá, recebia tudo. Resolvia o destino que daria aos bens e depois voltaria para sua casa, com o dinheiro para viver tranqüilo, suprindo as próprias necessidades.
– Tá certo, dotô. Eu vô. E num preciso doce, Raimundo. Vô só. Vô e vorto logo que desocupá.
– Muito bem – fez o advogado, satisfeito. Fico contente que tenha concordado. Assim e melhor. Agora vamos indo. Amanha cedinho voltaremos.
Sebastião abanou a cabeça.
– Mior ficá por aqui. Essa hora e perigosa. Fiquei sabendo que tem um bando de cangaceiros pela região, vindo lá das bandas de Taperoá, noite passada eles roubaram a fazenda de seu Antonio Matias, bem pertin de Juazerinho.
– É verdade – confirmou Raimundo. – Eu num arrisco, o dianteira do bando e um tar de Lampião, disseru que ele matou os assassinos dus pai e lhes comeu o figo com cachaça. O mior e ficar aqui hoje e manhã cedinho nois vai simbora.
Não lhes agradava passar a noite na tosca cabana, mas sabiam que o lugar era perigoso e a cara dos dois não era de brincadeira.
– Então vamos no jipe apanhar a comida e alguns objetos.
– Pera um pouco.
Sebastião pegou uma lamparina que estava sobre o fogão e acendeu-o.
– Agora eu vô na frente. Ocês vão comigo de olho aberto, bem perto.
– Esta certo. Vá você Juvenal, eu espero aqui.
Com a lamparina acesa foram até o jipe, de onde o jornalista apanhou alguns sacos de viagem. Depois foram pegar a rede que estava em baixo do pé de cajueiro. Voltaram para casa. Comerão pão e outras guloseimas que tinham trazido enquanto Sebastião servia o café, e depois da porta bem trancada, acomodaram-se.
Sebastião numa rede, o advogado nas outra. O jornalista colocou seu cobertor de viagem no chão duro, procurando ajeitar-se, enquanto Raimundo acocorava-se a um canto.
Deitado na rede, Sebastião não conseguia conciliar o sono. Tantas idéias em sua cabeça deixavam-no aturdido. Em poucos minutos sua vida calma transformara-se.
Nunca tinha ido a cidade. Parecia-lhe tão distante, como se fosse um outro planeta, quase inatingível. Seu pai sempre lhe comentava a vida em sociedade com pessimismo. Os homens da cidade eram todos hipócritas e perversos. Quem quisesse sossego devia viver longe da civilização. Sua vida não era ruim. Tinha saúde, tranqüilidade, o céu, as arvores, os animas. Era livre. Fazia o que lhe dava vontade.
Horrorizava-o a idéia que na cidade os homens tinham que se submeter aos patrões com hora para tudo. Às vezes ficava imaginando como deveria ser a vida por lá. Mulheres pintadas como vira em uma revista na vila. Mas, mesmo que sentisse alguma curiosidade em ver como era, não tinha dinheiro para uma viagem dessas. Agora, quando menos esperava, tudo tinha se arranjado, não só para conhecer como para morar se quisesse. Palacete e tudo.
Sebastião remexeu-se na rede, aflito. Pensará estar só no mundo. De repente surgem parentes, dinheiro, posses... Custava-lhe acreditar. Parecia-lhe mentira. Mas como não acreditar? O advogado conhecia a vida do seu pai muito mais do que ele próprio. Conhecera-lhe a mãe, o avô, a família...
Sentiu certa curiosidade. Gente fina, por certo, gente rica, letrada, da cidade. Como iria recebê-lo?
Remexia-se na rede, sem conseguir dormir. Era noite alta quando finalmente pode conciliar o sono. Sono inquieto, em que as fisionomias misturavam-se à sua frente. O rosto do pai, barbudo e enérgico, o rosto suave da mãe, o advogado, o jornalista, não lhe permitindo um repouso tranqüilo.
Quando os galos começaram a cantar, abriu os olhos em sobre salto. Foi à janela. Cinco horas, com certeza. Acendeu o fogo e colocou água para o café.
Raimundo abriu os olhos com vivacidade. O cheiro gostoso do café sempre lhe animava. O jornalista também acordou. Apesar do chão duro, o cansaço o fizera durmir profundamente.sentia-se bem disposto, voltar a cidade era uma boa perspectiva. Havia um mês que procuravam por Sebastião nas redondezas. Finalmente podia voltar, e que reportagem faria! Pensando bem, talvez a fortuna de Sebastião precisasse de administradores. O advogado esperava passar a mão em grande parte daquele dinheiro, um vez que o pobre caipira era imbecil a ponto de nem querer recebe-lo. Ele não pretendia largar o osso. A final, largara tudo e trabalhara intensamente nessa busca havia vários meses. Dr. Olavo prometia-lhe largo furo de reportagem, mas agora ele achava que podia conseguir muito mais.
Bem-humorado, acordou o companheiro e apressaram-se a tomar breve refeição.
– Vamos embora – fez Dr.Olavo com decisão. Temos algumas horas de estrada e pretendo chegar em Recife antes do anoitecer.
Sebastião vestiu a melhor roupa. Vendo-o, o advogado esclareceu:
– Essa roupa decerto não serve para a cidade. Quando chegarmos lá, vqamos comprar tudo novo.
Sebastião olhou-o com calma.
– Num carece. Num tenho dinheiro.
– Bobagem, você e homem rico. Eu tenho e vou emprestar para as primeiras despesas. Depois você me paga.
– Sebastião abanou a cabeça:
– Num preciso. A roupa serve só pra agasaiá o corpo. Essa é muito boa.
O advogado irritou-se, mas o homem era teimoso. Melhor não contraria-lo. Procurando imprimir um tom calmo à voz, tornou conciliador:
– Não e isso. Na cidade, as pessoas usam roupas diferentes. Se você aparecer assim por lá, todos vão olha-lo e pensar que e um mendigo. Eles dão muita importância às roupas, e enquanto estiver lá e preciso que se vista bem. Afinal, você agora é um homem muito rico.
– Isso não muda nada, sou o mesmo de sempre. Num sei calça aqueles sapatos, neim vesti roupa cheia de capricho. Depois, sou assim e num vô mudá. Quem acha ruim que coma menos. Ninguém vai me obriga a fazer o que eu num gosto.
O advogado achou prudente calar-se. Estava irritando , e se ofende-se aquele maluco era bem capaz de desistir da viagem. Ai adeus dinheiro, adeus posição, adeus tudo.
– Esta certo, seja como você quiser – murmurou, conciliador.
Decidiu não dizer mais nada. Contrariado, viu Sebastião colocar uma muda de roupa numa toalha e fazer uma trouxa. Teve que esperar com paciência que ele fosse chamar um seu vizinho, autorizando-o a baldear as galinhas para o seu galinheiro, cuidando delas até que voltasse. Podia lucrar os ovos e comer os frangos que ficassem no ponto. Pediu-lhe para olhar a casa até a volta.
O dia já tinha amanhecido de todo quando os quatro homens instalados no jipe iniciaram sua viagem. Olhando as paisagens familiares e queridas que iam deixando para trás, Sebastião sentiu um aperto no coração. Mas, ao mesmo tempo um sentimento de curiosidade pelo mundo do outro lado daquelas matas começou a brotar, vivo e ansioso, em seu peito oprimido.
Como seria esse mundo que iria conhecer?