MEMÓRIAS DE UM ADICTO

Apresentação

O objetivo deste livro é alertá-lo para o perigo que corremos, quando ingerimos bebidas alcoólicas ou outras drogas.

É na adolescência que nos tornamos vulneráveis. Neste período de transição e dúvidas, tornamo-nos presas fáceis. Pessoas inescrupulosas aproveitam aquele difícil momento para aliciar-nos. Outro motivo que pode levar à dependência é a timidez. Ao usarmos bebidas alcoólicas, sentimos uma falsa impressão de blindagem, habilitando-nos resolver ou fazer coisas que jamais faríamos sóbrios, dando-nos a sensação de poder. Minhas experiências, no campo do alcoolismo e das drogas químicas, mostram-me que, embora a maioria dos casos se dê na adolescência, tenho dados de clinicas de recuperação em que há casos de internamentos de crianças de dez anos e de senhores com mais de setenta, e todos chegaram ao fundo do poço. Por conseguinte, acreditamos que adicção é uma doença que não respeita idade, posição sócio-econômica, cor, nacionalidade, nível cultural ou credo religioso. A adicção é um mal que, às vezes, os pais custam-lhes perceber que os seus filhos estão envolvidos e, há muito mais tempo, para que possam entender e aceitar tão temível doença.

O AUTOR

MEMÓRIA DE UM ADICTO

Capítulo 1

Gritos, desesperos,

Invadem-me.

Procuro o silêncio.

São amontoados de lamúrias e pânico.

Eu, meio perdido ao relento,

Soprado ao longe,

Como papel, do lixo ao vento.

Sou adicto à mercê do nada

Sou filho do caos,

Cuspido, sofrido e jogado

Defronte à temível encruzilhada...”

Meus pais, desolados, impotentes e sofridos, buscavam culpas que não eram suas. Assistiam, entristecidos, aos meus sonhos enquanto viam-me as realizações se escoarem pelo ralo da inexistência. Na rua, o que eu ouvia eram palavras adjetivadas que circulavam em minha cabeça, como um carrossel em movimento. “Vagabundo, safado, mau caráter, cachaceiro, drogado, louco, mendigo, bandido”. São tantas “qualidades” que me confundiam. Na verdade, faziam-me acreditar que tudo isso, realmente, era eu! Minha alma, aos berros, pedia um pouquinho de paz.

Eu quero silêncio!

No silêncio, serei paz;

Com a paz, serei anjo;

Como anjo degustarei o amor

E o amor é de Deus.

Silêncio não é a ausência do barulho:

É o colo que embala o sono;

É o sono que desperta a vida;

É a vida buscando os sonhos.

São asas da alma que alçam

Como beija-flor

Beija-vidas

Vida minha, vida nossa!

Venha conhecer o meu mundo! Lá é uma prisão sem grades; um labirinto aberto, sem paredes, onde o sonho é apagado pela terrível esponja do pesadelo. É lá que os nossos ideais se vão pelos esgotos do tempo... É um lugar tão triste onde não se prendem os homens, mas escravizam-lhes as almas. O árido pensamento busca, incessantemente, as substâncias malditas.

Nem sempre foi assim! Sou filho de uma família modesta financeiramente, estruturada, religião definida. Tive colo de mãe quentinho, afago, beijos, muitos carinhos, um “Deus te abençoe”, dito pelo coração daquela que deveria ser a rainha do lar; hoje... Caçadora de esperanças. Estudei em bons colégios; fui destaque nos eventos estudantis; campeão de futebol da cidade. Elogiado por tudo e todos, inferindo-me um futuro que acreditavam ser promissor. Eu era o orgulho da família. É, mas a vida nos prega peças (em mim não pregou nenhuma), pensava eu. Fui vítima de minhas próprias fraquezas, envolvi-me com as drogas químicas, bebidas alcoólicas. O que mata os adictos são a prepotência, a arrogância, a timidez, a autopiedade, a falta de Deus e, principalmente, o orgulho que nos consome, legando-nos à condição de escória da sociedade.

CAPÍTULO 2

Tudo começou quando eu passei no vestibular da federal. Que festa! Que alegria! Cartazes e faixas parabenizavam-me. Eu era todo sorriso e esperanças.

Ó mãe! Que saudades daquele tempo! Que dias maravilhosos! Sentia-me privilegiado por Deus. Era como quem ganhara um par de asas maiores que as do albatroz. Elogios não me faltavam. Meus pais eram só sorrisos. A vida me abrira um caminho reto, ornamentado de flores, tapete vermelho, em direção do sucesso infinito. Eu olhava para todas as direções. Tudo era encantamento, e parecia que, até as estrelas, naquela noite fria, brilhavam muito mais, conspirando a meu favor.

Eu havia chegado ao topo, sem pensar que o meu caminhar ainda seria longo e árduo, com grandes desafios e descobertas. Eu estava pronto para o sucesso, e não havia me preparado para as adversidades que, por certo, viriam. Derrotas... Nem pensar, mas hoje sei que elas só existem para aqueles que se rendem a elas, e eu acabei por me render. Eu era só orgulho.

Na faculdade, eu me tornei um aluno exemplar, referência da sala, bom e dedicado em tudo que fazia. Tornei-me popular, ajudando os colegas em dificuldades. Um universitário completo.

Em pouco tempo, enamorei-me de uma bela jovem! Ela era a garota mais disputada da escola. Filha de um rico industrial, trajava-se sempre com elegância, sorriso fácil e simpático, mas muito tímida. Seus pais receberam-me com carinho, fui convidado a estagiar em sua empresa. Tudo acontecia como eu sonhara. Namoramos durante dois belos anos.

Vieram então as festinhas e éramos sempre convidados por todos. Os colegas nos ofereciam drogas, segundo eles, eram leves. Diziam que nos tornariam felizes e calmos. Nosso orgulho de adolescentes não nos permitia recusar. Caso as não usássemos, estaríamos por fora. Sentíamos como astros em meio à sua platéia. Requisitados a cantar juntos, eu pegava o violão, e a duas vozes exibíamos o nosso talento. A galera nos aplaudia... Era a nossa consagração. A cada festa a que íamos, ofereciam-nos bebidas alcoólicas: cerveja, chopp, ponche, batidas, bebidas nacional e importadas, e tudo mais que altera o comportamento. Minha namorada, por ser tímida, descobriu que, quando ela cheirava, fumava ou bebia, sua voz saía com facilidade. As bebidas não lhe davam coragem, mas tirava a sua timidez. Para não ficar para trás, eu a acompanhava. Começamos a nos embriagar. Paulatinamente as doses aumentavam, diminuindo o espaço de cada bebedeira. O que eram, apenas, fins de semana, passou a ser semana sem fim.

Vieram os vexames... Nossa! Como é sofrido amanhecer, todos os dias, com ressaca moral! Sentir vergonha de si a cada manhã; faltar coragem para encarar-se no espelho e constatar o em que você está se transformando. Quem já passou ou passa por isso, é capaz de entender. Começamos a mentir para nós mesmos, e, o pior: passamos a acreditar nas nossas próprias inverdades.

É o início de um caminho sem estradas, de dias sem brilho, de noites sem poesia, de um futuro sem o amanhã. É sentir-se só na multidão, o mesmo que despertar-se sem “acordar”, sem dar cor à vida. Aí é que transformamo-nos em nosso próprio juiz e carrasco. Como nos tornamos cruéis com nós mesmos! Em julho, minha namorada veio a engravidar-se, e foram dias de tormentos e brigas. Bebidas e outras drogas, agora, eram nossas inseparáveis companheiras. Embriagar-se, já é por si uma tragédia, mas, o que poucos sabem, é que o álcool se constitui na ponte que nos liga com o lado obscuro de outras drogas e, com certeza, ele é a mãe de todas as outras.

Gradativamente, embarcamo-nos nesta canoa furada. Aprendi gírias, parti para as tatuagens, piercings, assustando a meus pais que, então, tentavam aprender a arte de se enganarem. Queriam acreditar que aquilo fazia parte de uma etapa da adolescência. Fui demitido pelo pai de minha namorada que, muito decepcionado, não queria e nem podia aceitar a nossa transformação. Começamos a viver na ante-sala do inferno. Minha namorada, grávida, foi forçada a viajar para a Europa, para a casa de parentes. Lá, ela iria se tratar e continuar seus estudos, levando para longe o nascituro que estava prestes a vir ao mundo.

Meu Deus! Que sofrimento! Eu estava marginalizado; ninguém me convidava para as festinhas; meus únicos convites eram para cheirar drogas, fumar e beber com os desesperançados como eu. Eu havia chegado ao princípio do fim. A universidade já fazia parte de um passado remoto. Eu me sentia um lixo, quando via meus colegas estudando e seguindo adiante. Eu estava jogando todo o meu futuro e minha vida ao acaso.

Eu fui chutado, espancado por aqueles que ajudaram a conduzir-me às minhas masmorras. Eu lhes implorava: dêem-me uma dose, uma pedra, qualquer coisa que me desse “prazer”, ainda que momentâneo. Eu não tinha mais dinheiro para satisfazer a meu triste vício. A opção era vender meus pertences. Quando não me restava mais nada, comecei a tirá-los da família e, depois, restaram-me fazer pequenos furtos, não para mim, mas para pagar as bocas de fumo e os botecos.

Meu Deus! Meu Deus! Quanto sofrimento! Com frio e fome, sujo, só e sem esperanças, vagava ao deleite dos demos da mente, dormindo ao relento ou debaixo de marquises e viadutos como mendigo. Como é fácil julgar e condenar os infelizes que percorrem estes labirintos da vida e que se encontram à margem do caminho, padecendo deste mal! O difícil é dar a mão àqueles que estão passando pelo crivo da dependência. Era alvo de pessoas maldosas que me queimavam, enquanto dormia, espancando-me por pouco ou por nada, humilhando-me apenas para se mostrar ou divertir-se às minhas custas. Meus pais tentaram tudo que lhes foi possível. Internaram-me em clínicas psiquiátricas, casas de recuperação. As mais diversas religiões, fizeram tudo o que podiam ou imaginavam e nada adiantou.

O orgulho não me dava chance de querer aprender. Eu era o retrato da prepotência. Sofria por não encontrar um pouquinho de humildade. Nem Deus podia ajudar-me. O livre arbítrio para o mal, fatalmente, levar-me-ia à morte.

CAPÍTULO 3

Meus pais eram verdadeiros heróis da fé, da perseverança e da esperança. Eu era só orgulho, vivia de meu sucesso precoce do passado. Eu me sentia muito importante, inteligente e por que não dizer, o centro do universo?

Não precisava aceitar ajuda daquelas pessoas que me pareciam medíocres. Eu nunca me renderia à ajuda dos Alcoólicos Anônimos, ou Narcóticos Anônimos. Pensava: ”logo eu, misturar-me com aquele bando de cachaceiros e drogados? Nunca!”

Em uma manhã de setembro, eu disse para meu sofrido pai que iria ganhar o mundo e que, decerto, o meu empecilho eram aquelas pessoas que não tinham o que fazer e viviam a preocupar-se com minha vida. Eles tinham inveja de mim, pensava eu. Meu pai, homem simples, sábio, implorava-me uma mudança de vida, enquanto as lágrimas despencavam-lhe no rosto sofrido. “Haveremos de arrumar uma saída”, dizia ele. Aconselhar um dependente é ofendê-lo profundamente. Não há nada que se diga ao adicto que ele não saiba: aconselhá-lo é muito fácil; entendê-lo, é difícil. Eu, em minha arrogância, gritava, insanamente, que iria voltar e mostrar a ele e para toda a gentalha daquela cidade o meu grande potencial. Meu pai me disse: lembre-se, meu filho de que “o cachorro, aonde vai, ele carrega as suas pulgas.”

Na época, não entendi direito mas, hoje, vejo o seu significado. Fui para uma cidade grande, uma metrópole, “lá onde o filho chora e os pais não escutam”. Peguei algum dinheiro com meu pai, e ali estava eu em busca dos meus sonhos.

A princípio, morei em uma república. Matriculei-me em uma escola profissionalizante. Lutei desesperadamente para arrumar trabalho. Tudo eram sonhos. Em pouco tempo, consegui emprego, não era o que eu queria, mas eu precisava de algo para começar. Iniciei meu trabalho em um grande estacionamento. Eu morria de inveja dos jovens, cujos carros ali eles estacionavam dirigindo-se para a faculdade do outro lado da rua. Meu Deus, pensava eu: “que injustiça! Sou muito mais inteligente que estes caras! Eu só não estou ali, porque eu não tenho dinheiro. Até quando terei que sujeitar-me a esta vida?”

Aqueles questionamentos consumiam-me como fogo. Meus colegas de serviço, coitados! Eu os desdenhava e os humilhava, querendo mostrar-lhes o quanto eu lhes era superior. “Dizem que, no mundo, nós devemos aprender tudo o que a vida puder nos ensinar, para, quando chegarmos perto de outros seres humanos, sermos apenas humanos”. Infelizmente, o adicto perde a sanidade. O pior dela é fazer as mesmas coisas erradas, querendo resultados diferentes.

Em pouco tempo, eu estava gerenciando aquele lugar. Os empregados sofriam com os meus modos desequilibrados. A cada dia, o patrão mais se enriquecia. Eu era o seu braço direito, ou melhor, seu cãozinho de guarda. Os dias se passaram... Estava conseguindo conter o monstro da obsessão. Parecia que uma luz tímida começava a aparecer, ainda que em meio à névoa. Dizem que temos de levantar os olhos para a luz e, ainda que ela não esteja lá, com certeza, saberemos a sua direção.

Dia dezenove de fevereiro, meu patrão chamou-me para lhe fazer companhia em um jantar comemorativo com os seus amigos. Senti-me o máximo! Eu sendo mais novo funcionário e cotado, indiscutivelmente, como o melhor, era demais para mim. Minha vaidade cresceu como erva daninha. Teria sido uma noite de glória, mas as coisas não foram como pareciam. Nos reunimos em um pequeno restaurante, que também era do patrão e, aos poucos chegaram os seus amigos, convidados e fornecedores.

Achei bonito o modo como se comunicavam: muitas gírias, e palavras codificadas. Fui apresentado como seu homem de confiança. Antes de nos servirmos, resolveram brindar o sucesso. Eu não sabia o porquê da comemoração. Não quis beber, mas aqueles senhores insistiram: Beba apenas uma dose, uma só, não fará mal algum! Meu lado alcoólico pensou: quem sou eu pra recusar? É tão fácil convencer alguém a beber, principalmente, quando se é alcoólatra. Assim começou novamente o meu calvário. Nos dias que se seguiram, eu tentava beber com responsabilidade, mas, na verdade, passou a ser o dia todo, em pequenas doses. Todas as noites, antes de fechar os portões do estacionamento, chegava um carro importado e luxuoso que estacionava no fundo do pátio. Minha função era abrir o porta-malas e retirar uma maleta de couro, parecida com uma valise de médico, levando-a para a sala dos fundos, onde era guardada dentro de um pequeno cofre, escondido atrás do armário.

Eu nunca consegui ver o condutor daquele veículo, que os vidros eram escuros, impossibilitando-me a identificação dos seus ocupantes. Na noite de primeiro de março, chegou, em seu carro, um de nossos clientes. Era um advogado com um invejável poder aquisitivo. Não advogava mais: Estava totalmente dominado pelo alcoolismo. Havia perdido a sua família, clientes e estava prestes a perder a vida.

Trazia consigo uma bondade sem igual. Adorava-me e, naquela noite, trouxe-me uma garrafa de conhaque “dos bons”. Isto que é “bondade da boa”! Enquanto eu esperava o carro da maleta, abri a garrafa e pensei em beber apenas um gole. O que desperta a obsessão alcoólica é a primeira dose. Para nós, alcoólicos, uma dose é demais, e vinte não nos satisfazem. Dizia um certo jornalista, já falecido: “O alcoólico tem dentro de si um tubarão adormecido, quando ingerimos a primeira dose, de qualquer bebida alcoólica, nós o despertamos e ele se torna insaciável levando-nos à bancarrota”. Naquela noite, tomei o maior pileque da minha vida.

Quando o carro chegou, eu, embriagado, fui até ele, peguei a maleta e caminhei a passos oscilantes para a sala dos fundos, a fim de guardá-la como de costume.

Desde o primeiro dia de serviço, eu estava curioso do enigma que rondava aquele procedimento.

Naquela noite, eu não me controlei, estava muito louco para avaliar as conseqüências de meus atos. Peguei a maleta, coloquei-a sobre a mesa, tentei abri-la, porém, estava trancada. Minha insanidade chegou a tal ponto, que tomei de uma chave de fenda, forcei o fecho até que o estourei. Quando olhei dentro dela, que felicidade! Que visão celestial! Era cocaína e muitas pedras! “Que sorte eu tenho”, pensei! Usei todas de que dei conta. Não sei nem contar o que sucedeu neste período. Quando voltei à vida, estava em um hospital, numa cama com a cabeça atordoada. No meu corpo, não havia locais que não doessem. Porque eu fora impiedosamente espancado. À porta, um policial, em silêncio, guardava-me. Eu não podia nem imaginar o que ocorrera. Naquele instante, um médico jovem e brincalhão, entrou no quarto. Ele perguntou ao soldado como estava o Lázaro. Este prontamente lhe respondeu que eu acabara de acordar. Fiquei pensando: “será que estou maluco? Meu nome não é Lázaro!”

O médico perguntou-me se estava tudo “bem” comigo? Eu lhe disse que meu corpo todo doía e que ele havia se enganado: eu não me chamava Lázaro. Ele deu um largo sorriso, respondendo-me: você, porque continua vivo, é um novo Lázaro que foi chamado da morte à vida.

Aí, lembrei-me de Lázaro das Escrituras Sagradas. De pronto, eu avaliei que, não tendo perecido por espancamentos brutais e overdose, reavivou-me o sopro da vida o Deus Criador. Enchi o doutor de perguntas. Quase nada me respondeu. Indagou-me se eu me lembrava dos acontecimentos que me jogaram numa cama hospitalar. Entrei no labirinto da memória, nada! Certifiquei-me de que, com a justiça, eu estava muito encrencado e que há mais de sessenta dias, eu jazia convalescente naquele leito. Eu não sabia porque razão, Deus tinha poupado a minha miserável vida. Mistérios insondáveis de Deus?

CAPÍTULO 4

Permaneci no hospital por mais quarenta e sete dias. Ao sair, fui conduzido para um presídio. Fui julgado e condenado por tráfico de drogas. No meu julgamento, não abri a boca. Sabia que, se eu entregasse alguém, assinaria a minha sentença de morte. Meu Deus! Como sofri naquela prisão! Perseguido por traficantes, fui espancado por várias vezes. Tentaram matar-me. Cheguei a pensar que Deus havia-me poupado a vida, para que eu pagasse todos os meus pecados, ou que, decerto, Ele se esquecera de mim.

Sentia vontade de morrer. Pensei até no auto-extermínio. Os dias se passaram. Minha família, aflita e sofrendo, acompanhava todo o meu suplício. “Não é justo, meu Deus, que todos os amigos e familiares que me amam paguem, com sofrimento, por meus erros.”

Lá no cárcere, fica-se cada vez mais insano. Morrer, naquela circunstância, seria lucro. Eu, sentado em meu canto, tentava escrever as minhas amarguras que estavam paralelas ou tão próximas à loucura.

Lendo hoje esta seqüência de versos, vejo que lá era isso que a vida me inspirava. Sentia-me tão desprovido de sentimento, que a única voz a me invadir o coração era a do medo, da solidão e da eterna amiga tristeza.

Minha alma não fazia silêncio, gritava estarrecida! E eram gritos de terror. Os fantasmas me rodeavam como uma roda gigante.

Comecei então a passar, para o papel, meus medos, meus pedidos e a minha insanidade.

Quem sou eu, meu Deus?

Serei um nada à mercê do tempo?

Sou trevas sem silêncio

Um vácuo no meio do nada.

Com certeza

Viandante sem estrada.

Meu sol não brilha e nem me aquece.

Sou o resto do luxo,

Refugo do lixo.

Sou o nada...

Escória da vida

O “Eu” esquecido

No lixão do acaso.

O que me reserva a vida?

Meus olhos aflitos,

Minha alma aos gritos,

A toalha e o manto

Da indiferença de tantos

Enxugam meu pranto.

/-/-/

Devaneio escuro

Apalpo, procuro

A musa ilusão.

No grilhão do anelo,

Sigo seguro.

Não é preciso muito

É claro!

Pouco me basta

Um sorriso largo, pequeno,

Por entre os dentes,

Não me importa.

O terreno é sonho,

Repleto e baldio,

Imagem do belo

Por hora vazio.

Realidade, companheira fria,

Desmonta o alado sonho.

Espreita-me a insana verdade.

É um rosto oculto

De homem-solidão.

-/-/-/

Mãe do céu! Mãe da terra!

Que choram meu tormento.

Peçam a Deus que me leve,

Amenizando-me os sofrimentos.

CAPÍTULO 5

Durante todo aquele tempo, meus sonhos, já distantes, foram macerados e incinerados, detonando toda a minha fé. Meus pais tinham vendido e, gastos seus bens, pagando advogados, propinas para presos, levando presentes para “os donos” ou mandões do presídio. Eles queriam, apenas, comprar a minha proteção. Eu sofria muito. A única consciência minha era que meus pais, dia-a-dia, iam morrendo de desgosto. Não era fácil recebê-los nos dias de visitas, dentro de um presídio. Ou vendo eu filho se definhando, revoltado e só, junto aos piores elementos produzidos pelas sociedade? Aquilo ali não foi feito para gente. Cenas de terror locais ficam gravadas, no seu subconsciente, para sempre.

Eu estava prestes a completar cinco anos enclausurado. Dia dois de fevereiro, apareceram algumas pessoas de uma ONG INTERNACIONAL que queriam conhecer aquela masmorra.

Havia, entre eles, uma senhora alemã, muito simpática, que achou algo em mim. Fizemos uma amizade muito sincera.

Meu pobre pai, levado pelo sofrimento, teve um AVC, (acidente vascular cerebral), e a minha mãe não podia visitar-me, pois não tinha com quem deixá-lo. Esta senhora se tornou minha madrinha e protetora. Era a minha única visita. Trazia livros, frutas e um bom papo. Com certeza, era ela o meu anjo da guarda. Ela começou a reabrir-me horizontes. Houve dias em que eu chegava até a sorrir e acreditar que dias melhores viriam. Ela representava a bandeira da minha esperança.

Ao completar eu seis anos, de presídio, expediram-me alvará de soltura. Meu Deus! Que medo! Que dificuldades para eu me adaptar à nova vida! Que falta de perspectiva, pensava eu. Sem dinheiro, ex-presidiário, alcoólatra, usuário de todos os tipos de drogas e sem motivação para lutar, eis-me no negrume de uma noite sem saída. Qualquer lugar em que eu procurasse emprego, a resposta seria não! Peguei meus pertences, uma velha carteira vazia, alguns objetos de uso pessoal. Não sentia prazer algum em estar livre. Encaminhei-me para o portão principal. Eu sabia que minha vida, dali em diante, valeria pouco ou nada.

Aqueles que estavam envolvidos no tráfico e que tiveram muito prejuízo por minha causa, esperavam-me ansiosos. Ao chegar à rua, vi a minha amiga esperando-me no seu carro. Levou-me para um hotel no centro. Fiquei sem palavras. Jamais pensei que alguém, que não fossem meus pais, poderiam interessar-se por mim. Ela era uma pessoa especial. Também teve uma vida muito sofrida: perdeu seu único filho, ainda muito jovem, para as drogas. Eu liguei para meus pais. Chorando, eles me abençoaram. Contaram-me que a minha amiga os tinha ajudado, levando uma vida normal. Pediram que eu sumisse por um longo tempo, que traficantes rondavam aquela região. Uma sensação de medo, junto à falta de identidade, levaram-me a Deus. Mais uma vez passei tudo para o papel.

=EU DE NÓS=

Sou eu, meu Deus.

Sou eu outra vez!

Sou eu sempre!

Eu interrogação

Eu pouca ação,

O Eu dos por quês.

Neste teu mundo mágico

De tantos e quantos,

De sorrisos e prantos

Onde o amor é dos loucos

É de tão poucos

Vê-se o ódio, tão comum,

Entre os “normais”

Dê compreensão a este louco

Muita sabedoria e ação

Para eu semear

De cada bom sentimento

Um pouco.

Que eu enxergue

Com os olhos do coração

A razão.

Tantos vírus e pestes

Uma delas o desamor

Assolam este mundo

Trazem sofrimento

Trazem dor.

Conceda aos homens,

De todo o universo,

Humildemente te peço,

A santa loucura

Do saber amar.

CAPÍTULO 6

Minha amiga, madrinha e anjo da guarda, havia preparado metas seguras para nós. Levar-me-ia para Alemanha, arcando com as despesas todas. Fiquei muito feliz com aquela possibilidade. Sem demora, fomos às compras. Eu estava desprovido de roupas. Depois, foi só o prazo de tirar meu passaporte e, dia vinte de outubro, partimos para a Alemanha. Não foi fácil adaptar-me àquele país: sua culinária, sua cultura e, até mesmo, uma certa frieza aparente daquele povo que, mais tarde, vim a entendê-lo, admirá-lo.

Com o passar do tempo, eu já estava vivendo e me sentindo como um deles. Um certo dia, por um descontrole emocional, quase tive uma recaída e comecei a ter uma terrível obsessão, uma grande fissura, pelas drogas. Chamei minha madrinha e expus-lhe tudo. Ela entendeu o meu atroz sofrimento, convidou-me para uma conversa, bastante franca.

O nosso relacionamento era regado pela verdade. Contava-lhe o que sentia ou fazia. No mesmo dia, ela me acompanhou até os “Alcoólicos Anônimos”. Meu Deus! Nunca tinha visto nada mais perfeito que aquela irmandade, uma obra que não me exigia nada, e seus ensinamentos, basicamente centrados na humildade e amor.

Hoje, sei que a humildade é o pilar-mestre, onde poderemos edificar nossas sagradas vidas, acima de tudo, com plenitude. Passei a participar e atuar como membro, o que, até aos dias atuais, continuo fazendo. Minha vida começou a fluir, tomando rumo. Eu estudava e trabalhava na própria universidade. Parecia um sonho...

Naquele tempo, apesar de não ser poeta, eu escrevi algumas coisas que guardei, não pela beleza dos versos, mas pela importância do momento. Hoje, estou convicto de que a boa semente, lançada em meu coração, operou nele grandes mudanças no meu destino.

A BUSCA

Vidas e “vidas”.

A cores,

Às vezes bicolores.

Outras, um arco-íris,

Que nos encantam a cada dia.

De pequenos momentos,

Vive

A eterna felicidade.

De que material somos feito?

Fomos criados perfeitos

Pelo Pai da criação.

Sou apenas um ponto

Que parte.

São vários os caminhos

Que se cruzam:

O que leva ao sofrimento,

Atraía-me,

Como o doce, a formiga.

Vivo o imaginário.

Tudo quero.

Pouco faço.

Verdade, simplicidade

E humildade

Que exalam

Cheiro de bondade.

É luz de liberdade.

O fim de busca

Encontro com a felicidade.

=///=

=Verdades=

Há um canto

Na encosta da vida,

Lá onde o tempo deposita

Conhecimento, sabedoria, amor e verdade.

É lá, onde o homem, meio que de lado, dá uma pequena espiada.

Meu caminho é longo...

Não sou eu, o matusalém,

Vivo muito aquém

Do amanhã que virá.

Na matéria, marcas profundas;

No eu, um pequeno acerto e aprendizado.

O tempo é o espaço entre

O nascer, o aprender, o sofrer,

O crescer e o renascer.

Não é o tempo que passa:

O que segue, é a vida como um trem de carga.

Nele viajamos por um breve espaço de tempo.

A bordo, rimos, despedimos, choramos e sonhamos.

Despachamos tudo que é sentimento.

Somos tripulação e passageiros,

Que partem, no único trem derradeiro.

Sou um ser em estudo

Que, ao certo,

Ainda estarei inacabado.

Junto ao meu aprendizado, encontrei esta prece que me direciona no caminhar da vida. Ei-la!

Oração da Serenidade que é rezada pelos Alcoólicos Anônimos:

“Concedei-nos Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar; coragem, para modificar aquelas que podemos e, sabedorias para distinguir uma das outras.”

CAPÍTULO 7

Formei-me médico. Comecei a trabalhar como residente num dos melhores hospitais de Berlim. O tempo correu... Fazia parte da equipe efetiva daquele grande hospital. Que mudança de vida! Eu consegui muito mais que merecia. Certo dia, fui convidado pelo diretor a participar de um congresso.

Estaria lá uma convidada especial, palestrante ilustre. Era uma doutora formada na Itália, especialista em doenças degenerativas. Fui meio insatisfeito, pois eu não estava a fim. Chegando, encontrei vários ex-colegas de faculdade.

Quando ela se apresentou, fiquei sem fôlego. O mundo caiu sobre a minha cabeça. Era ela! Ela mesma! Fora minha única paixão e namorada. Por sinal, eu a engravidara na adolescência. Estava ainda mais bela! Fiquei a ouvi-la, admirando a sua beleza e capacidade. Eu não acreditava que tudo aquilo estivesse acontecendo. Meu coração estava em chamas. Batia tão forte, que senti medo.

O que acontecia é que, agora, a vida realmente estava me pregando uma peça, e que bela peça! Ao terminar suas narrativas, suas experiências e teorias, ela foi aplaudida de pé. Eu a seguia com os olhos. Não sei bem o que eu queria, estava atordoado pela emoção. Ao sair grupos de jornalistas procuravam se aproximar dela para colher, pelo menos, algumas informações. Os seguranças impediam-nos de se aproximar. Corri atrás dela, queria vê-la de perto e conversar. Novamente, os seguranças obstaram-me o intento. Aos poucos, vi o meu sonho se perder na multidão.

Corri muito para alcançá-la, mas, quando cheguei à rua, tinha ela acabado de entrar no carro que arrancou imediatamente. Sentei-me na calçada. Um grande nó apertava-me a garganta. Era como se eu tivesse voltado ao passado não resolvido. Voltei para casa, sentido, derrotado. Será que a vida é tão cruel, que tira, pela segunda vez, a minha maior paixão? Tudo se passava em minha cabeça, desde um reencontro apaixonado, até a uma ferida desilusão. Tudo era possível.

Com certeza, ela se casou e é muito feliz, pensei. Sentia feliz de tê-la visto, e agoniado pelo tipo de vida ou com quem estaria vivendo. Cheguei a casa mal humorado, querendo um canto para coordenar minhas idéias. Minha amiga inseparável, conhecedora de todos os meus sentimentos, perguntou-me se queria conversar sobre o ocorrido. Não! Respondi-lhe rispidamente. Ela, sabiamente, sacudiu os ombros e saiu.

Passados alguns minutos, fui ao encontro dela, pedi-lhe desculpas e comecei a falar. Contei-lhe tudo que havia acontecido e o quanto o presente agitou-me o passado. Minha amiga, maravilhosa como sempre, mostrou-me que aquilo não era o fim, que poderia ser o começo de uma nova vida. Ponderei tudo, entendi que ela me cobriu de razões, porque minha amada ali, tão perto de mim e, verdadeiramente, o futuro se descortinava promissor à minha frente.

CAPITULO 8

Alguns dias após, eu ainda dormia, quando o telefone tocara insistentemente. Minha madrinha o atendeu e, correndo, chamou-me. Contou-me que o hospital ligara, solicitando minha presença com urgência. Havia acontecido um acidente aéreo. Muitas pessoas mortas, e outras tantas lotando os hospitais da cidade.

O avião, com cento e oitenta passageiros, proveniente da Suíça, caiu na cabeceira da pista. Fui correndo para o hospital. A cena lembrava uma guerra, com tantas pessoas pedindo ajuda. Meus colegas trabalhavam com rapidez, não sabiam nem a quem deveriam atender primeiro. Atroz luta sagaz contra a morte. Eu entrei em ação. Não havia tempo para sentir pena de ninguém.

Naquele dia, nem um café me foi possível tomar. O centro cirúrgico ficou repleto de acidentados.

Em um dado momento, ouvi alguém que me chamava desesperadamente: -Doutor! Doutor!... Fui ao encontro da ambulância que acabava de chegar. Dela desceram alguém na maca: um rapaz, ainda muito jovem, estava sem pulso; o coração estava muito fraco. Tinha ele uma perfuração nas costas e sangrava muito na cabeça. O caso era crítico. Mandei que o levassem rápido ao centro cirúrgico.

Meu coração entrou em desespero. Vi que aquele jovem, forte e bonito, estava morrendo. Não apresentava mais que vinte anos. Com certeza, cheio de sonhos. Minha decisão foi operá-lo, apesar de colegas não concordarem, achando que, no seu estado, seria perda de tempo.

Eu não quis aceitar isto, ele era tão jovem com direito à vida e não à morte. Eu o operei. Naquela noite, ele teve três paradas cardíacas, mas graças à sua juventude e à sua vontade de viver, ele sobreviveu, pelo menos, ao dia subseqüente.

Pernoitei a seu lado. Chorei de pena dele e o sentia, como se fosse o meu próprio filho que as minhas drogas solaparam de mim. Como seria ele? Será que é feliz? Meu Deus, quando passar isso, vou revirar o que ficou pendente no meu passado, e, talvez, isto, que está acontecendo, tenha sido uma mensagem de Deus. Olhei outra vez para ele. Examinei-o. Constatei que o seu estado continuava crítico, mas estável. Fiquei até às quatro da tarde ao seu lado. Meu superior me abraçou e falou-me que era hora de descansar, porque “saco vazio não pára em pé”. voltei à minha casa, fiz uma boa refeição e fui dormir. A imagem no entanto, daquele jovem invadia a tela das recordações minhas. Minha amiga sentou-se à beira da minha cama. Conversamos um pouquinho. Falei-lhe do estado do jovem. Logo que ela saiu, tomei um sedativo e apaguei. Dormi o resto do dia e a noite toda. Quando acordei, olhei o relógio e me assustei. Jamais na vida havia dormido tanto. Tomara um banho, escovara os dentes, bebera café com minha amiga e falamos sobre um pouquinho de cada coisa e do que passava no hospital.

Saí logo para o meu trabalho. Estava ansioso para rever aquele paciente. Ao chegar, alegrei-me por vê-lo com uma ligeira melhora. O diretor chamou-me à parte, parabenizou-me por meu trabalho e dedicação frente àquela tragédia. Considerou um milagre o que eu fizera para salvar a vida daquele jovem, e que o amor e a dedicação me nortearam as atitudes médicas.

Saí dali confiante, com a auto-estima em alta. Fui até o CTI dei uma olhada no garoto e fui ver outros pacientes, pois eu era o plantonista diurno. Estava atendendo a uma senhora idosa, quando uma enfermeira veio chamar-me. Disse-me que alguém da família do rapaz estava ali e queria conversar com o médico que o atendera. Dirigindo-me ao consultório, pedi-lhe que entrasse. Era uma senhora simpática, dizendo ser tia-avó do rapaz. Mostrava-se nervosa, bem aflita. Tentei acalmá-la e, aos poucos, aquietou-se. Informou-me que a mãe do garoto estava vindo para cá. Voltava para a Itália, quando ouviu notícias sobre o acidente. De lá, soube que o filho estava a bordo da aeronave acidentada. Muito angustiada, tomou o primeiro vôo de volta e deveria chegar a qualquer momento. Inteirou-se do estado do rapaz bem instável e delicado. Eu a levei até ele. Chorou muito ao vê-lo, ele estava muito inchado, com uma faixa envolvendo-lhe a cabeça. Depois saiu, ficou no saguão do hospital à espera de alguém.

Trabalhei o dia todo. Sempre que podia, visitava o garoto, pegava-lhe a mão. Tocava-lhe o rosto e murmurava baixinho: “força, campeão, você é um vencedor! Vamos, cara, reaja! Quero conversar o seguinte com você: -Eu tenho um filho que deve ter a sua idade. Em minhas férias, irei conhecê-lo, beijá-lo, abraçá-lo e dizer-lhe que, posto não o conheça, eu o amo.

Algo estranho: sentia tanto carinho por aquele garoto, que achei estivesse ficando louco: a cada minuto, eu me afeiçoava mais a ele. O dia passou rapidamente. Chegou a hora de regressar à casa. Fui ao quarto dele, prescrevi-lhe alguns medicamentos e saí. Soube que a mãe dele havia chegado, mas não a vi. Incrível entender o fato de o garoto não sair do meu pensamento. Naquela noite, não consegui dormir direito, desejando estar ao seu lado. O rapaz aguçara meu lado paternal.

No dia seguinte, cheguei cedo ao hospital; visitei meus pacientes; olhei a agenda do dia e fui ao CTI para examinar o meu paciente. Examinando-o, constatei-o estável. Eu atendi a outros do mesmo setor.

Pouco depois, a enfermeira chamou-me, afirmando que o meu jovem paciente passava por enorme agitação, como se fosse, uma convulsão. Não corri, voei ao CTI. Ele se contorcia, chamando o pai, num desespero que fazia pena. Peguei-lhe a mão entre as minhas, pus sua cabeça no meu peito como quem, mecanicamente, dissesse: “o papai está aqui! Não tenha medo, filho! Reaja! Volte, filho, precisamos de você!” Osculei seu rosto, e devagar, sem medicamentos, ele se acalmou, até que, tranqüilamente, adormeceu.

Eu não havia percebido a presença de uma médica junto ao nosso diretor. Eles observavam emocionados aquele quadro. Ela, antes que eu me virasse, falou-me: disse “obrigada, doutor, pelo carinho e devotamento médicos a meu filho! Grata sou-lhe por ter salvo a vida dele! Deus o abençoe sempre!” Quando virei para respondê-la, levamos mutuamente um grande choque, dizendo-nos ao mesmo tempo: “Você!” Tamanho o susto pelo qual fomos tomados! Eu me refiz aos poucos; ela, no entanto, tornou-se lívida de alto a baixo, como se fosse moldada na forma das ceras mortuárias. Quedamo-nos mudos. Entre nós, havia um espaço aproximado de

dezessete a vinte anos que nos apartamos. O diretor, sem entender nada, ficou mudo à espera de uma explicação.

Aos poucos, as coisas foram tomando forma. Caminhei na direção dela, estendi-lhe a minha mão e disse: “tudo bem com você?” Minha vontade era de abraçar e beijar aquela que ainda era minha doce paixão.

O diretor nos cobrou uma satisfação, queria saber se já nos conhecíamos. De pronto, difícil uma resposta adequada.

Ela tomou a iniciativa. Disse que sim e que, na verdade, eu era o pai de seu filho. Eu não me contive: senti-me mal e tive que ser amparado, para que não tombasse inerte. Aos poucos, fui recobrando as forças.

Eu estava cuidando de meu próprio filho. Fomos levados para o escritório administrativo, e lá contamos a nossa história para o diretor que, igualmente, se associou a nós dois, tomado de lágrimas. Ele saiu dali para que pudéssemos conversar à vontade. Falamos um longo tempo... Contei a ela tudo que me havia acontecido. Ao fundo do poço, chegara eu, quando fui preso. Falei também da senhora que se fez a minha protetora e madrinha, e que, até hoje eu era membro atuante dos “Alcoólicos Anônimos”.

Ela, por sua vez, também me contou toda sua trajetória: fora internada para livrar-se da adicção e que, também, fazia parte de “Narcóticos Anônimos”; encontrara a felicidade, de viver limpa ou sóbria e que conseguira muito mais que almejava. Indaguei-lhe o porquê de nosso filho estar naquele avião e ela me disse que ele estudava na Suíça, e viera a Berlim atrás de seu sonho, mas que este, só a ele cabia desvendá-lo.

Saímos dali e fomos ao quarto de nosso filho. Meu coração batia na garganta. Só eu sei o tamanho da minha emoção. Eu a deixei lá e fui cumprir com meu trabalho diário. Os dias se passaram... Continuávamos juntos. Íamos às reuniões de “AA e NA;” ao cinema, teatro e ópera, ou a qualquer lugar. Só queríamos estar juntos.

Era como que revivêssemos a nossa adolescência. Vieram os carinhos, os beijos e, também, a chama ardente daquele amor juvenil e puro, que fora cortado, abruptamente, pela força do vício.

É manhã.

A vida nos convida,

Naquele instante,

Às carícias derradeiras.

Você se vai

Eu vazio

Criança assustada.

Esvai a coragem.

Agonia funesta.

Busco lenitivo pra vida,

Como um bêbado

Em fim de festa.

Dia infindo

Palavras balbuciadas

Perdem-se.

Da vida quimera.

Desentoa a existência

Entre o tudo e o nada,

O talvez.

A brisa tardia

O grande lençol negro desata.

É noite.

Do reencontro

Novas fantasias.

São sonhos derradeiros

De um amor alucinado.

Juntos

Palavras, sentimentos,

Gestos e desejos

Se fundem

Vida amiga

De eterna

Cumplicidade.

Dia vinte e quatro de maio, chegando ao hospital, pude ver meu filho com os olhos abertos, curioso com tudo que lhe acontecia. Sua mãe era só felicidade. Contou-lhe que eu salvara vida dele, e quem salva uma vida é responsável por ela, como o pai cuida dos filhos.

Ele me olhou carinhosamente, agradeceu-me por salvá-lo. Disse que estava muito feliz, mas, pai, ele tinha só um, e, com certeza, ainda o encontraria. Considerar-me-ia como seu herói, mas pai, só o biológico, aquele, sim, era o seu sonho de infância reencontrá-lo.

Meus olhos choravam, mas meu coração pulava e sorria de alegria. A mãe o abraçou e, entre lágrimas, disse que eu, o seu médico, era, realmente, seu pai biológico. Por razões que só o “Grande Mestre” poderia responder, Ele promovera, de forma surpreendente e milagrosa, aquele íntimo colóquio entre pais e filho. Foi lindo assistir ao renascimento do meu filho e maravilhoso dizer-lhe com orgulho de homem de bem: SEU PAI ESTÁ AQUI!

Num instante, nossos corpos se uniram em abraços cálidos, num êxtase de altíssima emoção que a tudo extrapola a razão da humana gente. Era a concretização de um sonho, há tempos desejado. Médicos, enfermeiras e pacientes entoaram conosco cantos e aplausos, quando pai, mãe e filho, pródigos entre si, agora atados pelos laços familiares, ali, e, para sempre, bebíamos, na taça da felicidade, enleados pelo amor, o néctar e eterno do mesmo amor.

=========FIM=========

Comentário

Pois bem, meu amigo(a), eu gostaria de exterminar, de vez, com esta prisão sem grades; Com labirintos sem muros, com “as drogas” que trituram e exterminam todos os nossos sonhos, mas sei que é impossível. São labirintos e prisões particulares e singulares, que nós mesmos criamos. Provavelmente, estarão sujeitos a se encrencarem os que, ainda que cheios de boas intenções, tentarem invadi-los. Os guardiões fiéis destes sinistros lugares são: o orgulho, a vaidade, a prepotência, a timidez, a arrogância e mais uma série de defeitos de caráter que se tornam peculiares aos adictos. Os únicos antídotos contra todos estes males são: a fé e a humildade. São muitas as armadilhas que nos atraem. Não começamos como dependentes. Muitas vezes, somos aliciados (involuntariamente), desde crianças. Quando assistimos aos nossos pais fazendo uso e apologia às bebidas alcoólicas. Ao vê-los, com seus amigos, bebendo, jogando, rindo ou cantando, achamos tudo isso o máximo. Daí pensarmos: quando eu crescer, farei como eles. O que as pessoas ignoram é que o alcoolismo é uma doença de difícil diagnóstico e quase todos a escondem. A única e objetiva maneira, de evitá-la é não beber. Nós, alcoólatras, começamos em casa, nas festinhas, fins de semanas, ou em ocasiões especiais, nas passagens de ano, festas familiares, carnaval. Quantos bons rapazes de famílias abastadas ou de modestas, estudantes das melhores escolas se diluíram pela vida, perdendo-a ou ficando mutilados por acidentes automobilísticos; matando pessoas, por causa de bebedeiras e brigas, separação de famílias e tantos outros males. A palavra “álcool” significa “coisa sutil,” e, realmente, faz jus ao nome. Dificilmente aceitamos nossa falta de condição para dirigir, porque perdemos o senso de responsabilidade. Nunca aceitamos o fato de que bebemos em demasia. Muitos não terão problemas com bebida. Meus avós, por exemplo, tomaram vinho e cerveja em pequenas quantidades, ao longo de suas existências e nunca se embriagaram. O que nos difere dos outros bebedores é o descontrole emocional; bebemos uma dose e despertamos um monstro insaciável. Aí, pensamos que somos melhores motoristas; procuramos ser o foco das atenções; contadores de piadas; fazemos-nos o centro das atenções. Desinibidos e desbocados, capacitamo-nos até para falar em público. Esta ilusão vai aumentando gradativamente. À medida que o tempo corre, de bebida precisamos de mais e mais, até que percebemos ou não que passamos do limite. Não é apenas o álcool, mas as drogas em geral. A busca por momentos de prazer, às vezes, nos leva as conseqüências das mais indesejáveis. Alcoólatra é como marido traído: é sempre o último a saber. Se você tem este problema, não se acanhe! Procure ajuda nas religiões, medicina, nas salas “Alcoólicos Anônimos” ou dos “Narcóticos Anônimos.” Para nós, o melhor seria que procurassem ajuda em todos estes lugares. Alcoolismo é uma doença, física, mental, emocional e espiritual. É irreversível e, se não for cuidada, conduz o usuário a fins fatais. Qualquer alcoólico pode evitar o primeiro gole, mas, depois do primeiro, advirão as conseqüências, mais adversas, solapando-lhes a vida e preparando-lhes, mais cedo, um “aqui jaz...” Pense nisso!

Tonho Tavares

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 22/04/2009
Reeditado em 03/12/2010
Código do texto: T1553899