Sob o lençol
Passaram o domingo ao sol, de bar em bar entornando cachaça e esquadrinhando o que seria o começo do fim. Decidiam, buscando frieza em lugares onde ainda havia sentimento, quem ficaria com o que, e tentavam exercer a praticidade que os manteve juntos por dezoito anos.
Quem os assistia não podia imaginar que se tratava de uma separação. Isso ficou claro quando o garçom lhes disse que ficava feliz em revê-los ali, juntos... Sorriram. Para o garçom e um para o outro, sem graça.
Naquela mesa passaram os anos divididos, as boas aventuras e muitas mágoas silenciadas dentro do peito, que agora ganhavam a liberdade das palavras para esmaecer feito pó no ar.
Ainda trocavam carícias, o que os confundia sobre qual o real sentido daquela conversa, mas algo já estava rompido. Os carinhos e sorrisos eram na verdade reminiscências de uma história bem vivida, mas que chegava esgarçada no último fio do tecido.
Ele foi quem propusera o fim. Mas suas palavras vinham tão cheias de dúvidas quanto de rancor, e ela percebia. Percebia e entendia, ajeitando seus sentimentos redondos dentro de molduras quadradas onde sobravam, vazios, os espaços entre as arestas.
Foi amor. Disso não havia dúvidas. O difícil era identificar o momento exato em que o verbo se conjugou no passado. “A culpa é sua” era o que cada um queria dizer ou mesmo ouvir. A dificuldade de identificar essa autoria os atormentava. Ela se sabia culpada. Nunca conseguiu se moldar ao desenho convencional do casamento. Tinha uma inquieta alma de artista, uma equilibrista de sentimentos. Por diversas vezes sua alma abandonava o corpo inerte e “fugia com o circo”. No seu lugar ficava um sopro de vento, que ele não podia deter ou possuir.
Ele era ainda jovem e bonito e, apesar da desilusão, sua crença no verde da esperança persistia. Ela tinha medo. Medo das noites solitárias, das contas pra pagar e das crises de dores nas costas sem que ele a amparasse. Mesmo assim, estavam dispostos a tentar.
Nada estava certo, exceto o desejo de se libertarem e a cruel dúvida do que os esperava a seguir.
Chega a noite e dividem a cama, como de costume. Ela engata os pés entre suas pernas a fim de aquecer o seu frio. Ele, feito uma concha, a acomoda dentro de seu abraço. Nada parecia diferente. Senão pelos olhos abertos, o silêncio da respiração pesada e a nítida sensação de cacos de vidro sob o lençol.